Pintura de São Jerônimo, autor da vulgata, texto reconhecido pela Igreja Católica como a primeira tradução da bíblia do hebraico para o latim Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images
Oi metafrastes kathistoun ti logotechnia pagkosmia*
Com calotes de editoras e o avanço da inteligência artificial, tradutores brasileiros enfrentam uma temporada difícil
*Em grego: “os tradutores fazem a literatura universal”, frase de José Saramago
No início de 2022, a jornalista e historiadora Paula Carvalho recebeu uma proposta de trabalho: escolher e traduzir um livro do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam, autor inédito no Brasil que escreve sobre história da economia e os impérios europeus do início da Era Moderna. O convite veio da editora Âyiné, conhecida no meio editorial pela boa curadoria, especialmente para títulos de não ficção, com escritores como Simone Weil e Giorgio Agamben.
Na época, Carvalho era editora da revista literária Quatro Cinco Um, e costumava escrever sobre os temas que também pesquisava, como história islâmica e da Ásia. A tradução de Subrahmanyam, que publica em inglês, seria a oportunidade de unir seus interesses acadêmicos à perspectiva de abrir uma nova janela na carreira profissional. O título escolhido foi Europe’s India: words, people, empires, 1500-1800, de 345 páginas na edição original da editora Harvard. Todo o acerto foi feito via e-mail, e o contrato enviado pela editora previa pagamento em duas parcelas para 30 e 60 dias após a entrega. O valor do trabalho era de 32 reais por lauda traduzida, ou 11.040 reais no total.
A tradução foi entregue em abril de 2023. Dois meses depois, Carvalho enviou um e-mail para o dono da Âyiné, Pedro Fonseca, perguntando sobre o pagamento. Ele pediu que ela emitisse a nota fiscal e aguardasse. Em outubro do mesmo ano, sem que nenhum real tivesse pingado em sua conta, ela questionou Fonseca novamente. “Sempre tinha alguma desculpa”, disse Carvalho à piauí. Depois de insistir, ela recebeu uma primeira parcela de 1,5 mil reais em janeiro de 2024. “Pensei: pelo menos um pouquinho por mês eles vão pagar. Aí, no mês seguinte, não pagaram novamente.”
Até setembro do ano passado, Carvalho havia recebido 3,5 mil reais (incluídos os 1,5 mil reais pagos em janeiro) pela tradução que ainda não foi lançada. Frustrada, ela decidiu mover uma ação judicial contra a editora para receber o valor restante. A primeira tentativa de acordo judicial, em fevereiro deste ano, não deu certo (nenhum representante da Âyiné compareceu à audiência), e a tradutora acabou ganhando o processo por dano material, pelo qual deveria receber 8.900 reais (a quantia que faltava, em valores corrigidos). Seu advogado só conseguiu fechar um acordo com a editora para o recebimento desse valor em agosto: cinco parcelas de 2 mil reais – até o momento, duas parcelas foram pagas sem atrasos. “Ninguém tem muita energia para entrar na Justiça. Tradutores formam um nicho pequeno, e ninguém quer ficar mal falado”, diz Carvalho.
A piauí localizou outros oito tradutores que prestaram serviços à Âyiné e aguardam ainda para receber – valores parciais ou integrais – por trabalhos realizados. Depois de ser contatado pela reportagem, Fonseca procurou ao menos cinco profissionais que denunciaram o calote para acertar os valores pendentes. Um dos profissionais contou ter ouvido do editor que só quitaria o débito se a entrevista não fosse concedida. Indagado pela piauí novamente, Fonseca não se pronunciou.
Os problemas dos tradutores para receber pelos trabalhos não se limitam à Âyiné. Três profissionais que prestaram serviços à editora Leya Brasil – hoje independente do grupo português LeYa – também reclamam de pagamentos com atrasos de dois anos. O valor a ser pago para cada um deles gira em torno de 7 mil reais. “Como não é uma editora desconhecida, não me preocupei em formalizar a proposta em um contrato, um ato de total imprudência, depois de tantos anos de carreira, apenas fiz e enviei a nota fiscal para pagamento”, afirmou um dos tradutores, que, assim como os outros dois colegas ouvidos, prefere não ter seu nome revelado, para não ser estigmatizado pelo mercado. A piauí procurou a editora por e-mail e telefone, mas não obteve resposta.
A reportagem não tem notícia de atrasos de pagamento da Ayiné e da Leya Brasil para outros serviços.
Em meados de 2023, um grupo de tradutoras (hoje formado por 63 mulheres) fundou o coletivo Quem Traduziu, que cobra das editoras melhores condições de trabalho e atua para tornar o ofício mais visível ao público. Até o começo de outubro, 639 tradutores haviam assinado o manifesto do coletivo, lançado em junho. “Não são incomuns as situações de atrasos no pagamento da tradução e mesmo de calotes, prática inadmissível, que prejudica uma das pontas mais frágeis da cadeia do livro: profissionais que trabalham de forma autônoma, sem garantias nem direitos trabalhistas, precisando com frequência conciliar esse trabalho com outras atividades remuneradas”, diz um trecho do manifesto.
O documento apresenta treze demandas, boa parte delas acerca de uma remuneração justa e contratos mais vantajosos aos profissionais. O coletivo defende a previsibilidade dos pagamentos por parte das editoras e uma fatia dos ganhos quando a tradução for vendida para países de língua portuguesa e para outras editoras brasileiras. Pede também que o nome do tradutor apareça na capa da obra e em materiais de divulgação. “No Brasil, quem traduz literatura vive então um paradoxo: ser peça-chave da indústria livreira enquanto sofre com a invisibilidade e a desvalorização profissional”, diz outro trecho do manifesto.
A principal demanda é a de que o valor da lauda seja corrigido anualmente, de acordo com a inflação, “permitindo que a tradução literária seja uma profissão economicamente viável”. O Sindicato Nacional dos Tradutores (Sintra), com cerca de quinhentos associados, estabelece um valor de referência de 43,02 reais por lauda (2,1 mil caracteres com espaços) para tradução a partir do inglês, espanhol, francês e italiano. Em caso de originais em outras línguas, como japonês, russo e o árabe, com menos profissionais disponíveis, a entidade sugere que o valor pago por lauda tenha um acréscimo de 30%.
Segundo Debora Fleck, tradutora do inglês e do francês, professora do curso de formação de tradutores da PUC-Rio e integrante do Quem Traduziu, na prática os 43,02 reais funcionam mais como teto do que como piso – é comum que se pague menos. Ela pondera ainda que o valor está defasado, dado o tempo e a dedicação exigidos para uma tradução de boa qualidade. Os prazos de um trabalho variam de acordo com o tamanho e a complexidade da obra, mas, em média, a tradução de um livro de duzentas páginas do inglês para o português pode levar dois meses se houver dedicação exclusiva do profissional.
A aposta é que, em grupo, a categoria tenha mais poder de barganha do que as negociações individuais. “Juntas, temos mais voz e musculatura para reivindicar nossos direitos profissionais”, diz Mariana Sanchez, tradutora com 25 livros publicados do espanhol, em especial de autoras latino-americanas.
Neste ano, nove representantes do coletivo estiveram na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) para apresentar a mesa A tradução literária como trabalho autoral. Nela, defenderam a importância do tradutor no sucesso de um autor estrangeiro (Sanchez, por exemplo, traduziu as obras da espanhola Rosa Montero, uma das escritoras mais celebradas na Flip deste ano).
Fleck diz que o trabalho coletivo tem dado frutos. Conta que, na Flip de 2023, que homenageou Annie Ernaux, não ouviu ninguém mencionar a tradução em alguma mesa. Em 2025, teve outra impressão: os tradutores foram citados nas discussões e, em um evento pós-festival, ela viu colegas tradutores autografando livros junto com o autor.
No Brasil, a Lei de Direitos Autorais (9.610/98) reconhece a tradução como uma obra derivada, mas dotada de autoria própria: o tradutor é considerado autor da versão traduzida, com direitos morais (como o de ser creditado) e patrimoniais (como autorizar ou negociar sua reprodução). No momento que o tradutor negocia os direitos de seu trabalho, as editoras pagam um valor fixo pelos direitos patrimoniais. O que os profissionais defendem é que, além desse pagamento, seja incorporado aos contratos um percentual decorrente da venda dos livros, como é feito geralmente com o autor da obra. “Em quase todos os contratos, quem traduz cede às editoras, em caráter definitivo, os direitos patrimoniais de sua tradução. […] Mesmo que o livro traduzido seja um sucesso de vendas, ganhe novas tiragens e prêmios ou seja adquirido por programas do governo, quem o traduz não recebe nada além do valor inicial”, diz o manifesto do coletivo Quem Traduziu.
Para Ana Beatriz Dinucci, presidente do Sindicato Nacional dos Tradutores, esse é um tema “delicado”, já que nenhum profissional quer se indispor com as editoras – por isso a entidade é cautelosa na discussão*. Ela diz que tem projetos sobre o tema para o próximo ano. Nos contratos de editoras estrangeiras, a realidade em geral é outra. A australiana Alison Entrekin, que verteu para o inglês livros de Chico Buarque e Clarice Lispector, é integrante do coletivo Quem Traduziu e conhece as diferenças entre suas condições de trabalho e das colegas brasileiras. Ela diz que há pelo menos vinte anos não recebe nenhuma proposta de tradução sem royalties das editoras para quem trabalha nos Estados Unidos e no Reino Unido.
Foi o caso, por exemplo, de sua tradução de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa — há uma tradução de 1963. A obra foi arrematada por duas editoras: a Simon & Schuster, para o mercado americano, e a Bloomsbury, para Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia, ambas com a mesma tradução de Entrekin. Nos dois casos, além do pagamento pela tradução, ela receberá um percentual de direitos autorais das vendas do livro. A tradutora também vai participar de uma série de eventos no lançamento de Vastlands: the crossing (o título em inglês do livro de Guimarães Rosa), no ano que vem, quando se celebrarão os setenta anos da primeira edição brasileira.
Além de se preocuparem com essas demandas, os tradutores estão atentos aos avanços rápidos da inteligência artificial. Em julho, a Microsoft Research, braço de pesquisa da Microsoft, publicou um estudo que analisou 200 mil interações entre pessoas e o chatbot Copilot. A pesquisa mapeou quais profissões têm maior possibilidade de sobreposição com tarefas que as IAs já conseguem executar – ou seja, aquelas que correm mais em risco com o avanço dessa nova tecnologia. A categoria dos tradutores e intérpretes é a mais ameaçada (alcançou o índice de 98%, na escala da pesquisa).
No início do ano, causou burburinho no meio literário o lançamento de dois livros de não ficção – Um ciclista contra o nazismo, de Alberto Toscano, e A história das espiãs da CIA: secretas e fatais, de Liza Mundy –, do selo Amarylis, do grupo editorial Manole, cujos créditos de tradução indicavam: “Departamento editorial da Manole com auxílio de ferramenta de inteligência artificial”. Ambos os livros foram traduzidos do inglês.
Amarylis Manole, presidente da casa fundada por seu pai há 55 anos, diz que o uso da inteligência artificial para traduzir os dois títulos foi uma “experiência”. Ela contou à piauí que a equipe editorial utilizou uma ferramenta de inteligência artificial chamada DeepL, que, segundo ela, é destinada à tradução de textos literários, pois promete captar nuances de linguagem e tem recursos próprios para diagnosticar textos mais formais (muito embora os dois livros citados acima sejam de não ficção).
Amarylis Manole avaliou que o resultado foi “muito bom”, ainda que o texto precise de revisão final. “Não é que você pega o livro, põe lá [na ferramenta de inteligência artificial] e publica. Tem todo um trabalho do editor parágrafo por parágrafo.” Ela disse que, depois as críticas que a editora recebeu nas redes sociais, decidiu repensar a estratégia, ao menos nesse momento. No seu entender, porém, o trabalho dos tradutores vai mudar depois da difusão da IA. “O tradutor vai precisar de novas habilidades. Ele vai ter que aprender coisas básicas de programação em inteligência artificial e usar essas ferramentas. É inevitável.”
Para Dinucci, “metade das pessoas” está deslumbrada com a inteligência artificial e metade está apavorada. Ela defende que a tecnologia, ainda que útil, “nunca substituirá completamente o trabalho do ser humano”. Sanchez, do coletivo Quem Traduziu, pensa o mesmo. “A inteligência artificial está muito longe de responder satisfatoriamente aos desafios da tradução literária, por sua complexidade e sofisticação. Afinal, é justamente na singularidade da linguagem que está o trabalho da literatura”, disse.
Fleck é menos otimista. Para ela, apesar de ainda estar “engatinhando”, a presença da inteligência artificial será cada vez maior. Com isso os tradutores “não podem dar mole”, ela diz, “ou fingir que não está acontecendo”. Ela acredita que o avanço da tecnologia poderá tornar a tradução humana uma “grife” no campo da literatura. “Será quase um fetiche.”
“Os escritores fazem as literaturas nacionais e os tradutores fazem a literatura universal”, disse o escritor José Saramago É fato, pois o trabalho de tradução não consiste apenas em transpor de um idioma para outro. Costuma envolver uma ampla pesquisa, e não apenas das palavras exatas, mas de contextos sociais, históricos e geográficos.
O jornalista Jerônimo Teixeira conta (piauí_189, de junho de 2022) que José Francisco Botelho, um dos principais tradutores de Shakespeare no Brasil, recorreu ao cinema para encontrar a melhor expressão em português de um diálogo de Júlio Cesar. “Ouvindo Marlon Brando e Charlton Heston no papel de Marco Antônio em Júlio César, Botelho decidiu mudar uma fala do personagem em seu monólogo junto ao cadáver do César assassinado”, conta o jornalista. “O que era “grita ‘devastação’ e solta os cães de guerra” tornou-se “grita ‘matança’ e solta os cães de guerra”. A tônica na segunda sílaba de “matança” deixaria a frase mais próxima do grito de guerra do original em inglês, cry havoc.” A mudança exemplifica um trabalho minucioso, que na maioria das vezes passa despercebido ao leitor.
O americano Gregory Rabassa, que traduziu para obras de Julio Cortázar, Machado de Assis e Mario Vargas Llosa, comparava o ofício ao de um artista. Sua tradução de O jogo da amarelinha entusiasmou Cortázar, que se tornou seu amigo. Gabriel García Márquez também tinha grande admiração por Rabassa. Em entrevista à revista Paris Review, em 1981, o escritor colombiano disse que Cem anos de solidão havia sido recriada em inglês pelo tradutor americano. “A impressão que tenho é que ele [Rabassa] leu o livro e depois o reescreveu a partir de suas lembranças.”
“Tradução é como atuar. Você se torna o autor. Você está escrevendo o romance dele em inglês e precisa saber o que ele está fazendo. Quando você faz Hamlet, você se torna Hamlet”, afirmou Rabassa ao site The Common, em janeiro de 2016, ao descrever seu método de trabalho. Para ele, mais do que verter as palavras, era preciso captar as intenções do autor.
Em Cem anos de solidão, por exemplo, Rabassa optou por traduzir o verbo espanhol conocer (conhecer), que em inglês seria to know, como to discover (descobrir). Essa versão já aparece na tradução da abertura do romance, quando o coronel Aureliano Buendía recorda o dia em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Rabassa entendeu que “descobrir” capturava melhor o significado de experimentar algo pela primeira vez, já que Buendía era uma criança.
A ponderação de Rabassa se aproxima daquilo que o escritor e tradutor Caetano Galindo definiu sobre o tradutor ser um coautor da história que está vertendo para sua língua: o “autor da pele do texto”. Galindo precisou de uma década para traduzir Ulysses, de James Joyce. A versão publicada em 2012 pela Companhia das Letras foi premiada pela Academia Brasileira de Letras e a Associação Paulista de Críticos de Arte. “Traduzir literatura é fuçar embaixo do capô, lidar com as pecinhas, é ter que reproduzir coisas muito delicadas e fazer com que elas continuem funcionando em português”, afirmou Galindo ao site do Itaú Cultural no ano passado. “Cada vez que você for elogiar o estilo de um autor ou autora que está lendo em tradução, saiba que esse estilo foi filtrado por outra pessoa, e foi essa pessoa que reagiu bem ou mal, competentemente ou não, àquele estilo.”
Na mesma entrevista, Galindo avaliou que o mercado editorial está aprendendo a valorizar o trabalho da boa tradução. “À medida que esse mercado amadurece, a qualidade desse serviço aparece, e forma-se um grupo de leitores também mais conscientes dessas figuras.” É uma visão otimista. Espera-se que não demore a se tornar realidade no Brasil.
*Versão anterior deste texto dizia que o Sintra preferia não se envolver na discussão sobre direitos autorais. O que Dinucci disse, na verdade, é que a entidade é cautelosa sobre o tema. A informação foi corrigida às 13h55 de 29 de outubro de 2025.
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