Os passageiros espremidos num vagão da SuperVia Foto: Thallys Braga
Trem das dores
Em 55 km e 33 paradas, exaustão e distanciamento zero nos trens que cortam o subúrbio do Rio
Uma passageira do trem que partiu de Bangu às 6h56 da sexta-feira, 10 de dezembro, estava gripada. A moça miúda, de 30 e poucos anos, espirrava e assoava o nariz com uma toalhinha de tecido. Não usava máscara. Era uma manhã nublada e fresca, mas as janelas vedadas não permitiam que a brisa entrasse nos vagões. O ar só circulava quando o trem abria as portas para entrada e saída de passageiros dos ramais Santa Cruz e Deodoro, linhas que atendem as zonas Oeste e Norte do Rio de Janeiro. No chacoalhar da viagem, a moça doente parecia se concentrar para não pegar no sono.
Quando o trem se aproximava da estação Vila Militar, ela soltou uma tosse seca. Um rapaz que estava em pé ao seu lado, de máscara, a encarou com as sobrancelhas franzidas. Ela tossiu de novo. E mais uma vez, agora tapando a boca com a toalhinha. A senhora sentada ao seu lado esticou a coluna e ajustou o traseiro no assento. A moça voltou a tossir. Cleidiane de Arruda, passageira que viajava em pé do outro lado do corredor, tirou os olhos do celular por um segundo para encarar a enferma. Os olhares delas se encontraram, e Arruda, constrangida, voltou depressa a encarar o telefone.
Mesmo se quisessem manter o distanciamento da mulher gripada, o rapaz sisudo, a idosa e Arruda não conseguiriam. O vagão estava tão cheio que, se tirassem os pés do chão, era arriscado não ter espaço para colocá-los de volta. Adesivos espalhados pelos vagões alertavam sobre os riscos da Covid-19 e a importância de usar máscara, mas cerca de metade dos passageiros estava com o rosto desprotegido. De acordo com Arruda, que pega o trem todos os dias para ir ao trabalho, aquela era uma sexta-feira incomum. “Você veio num dia bom”, ela disse. “Geralmente, nesse horário, isso aqui fica tão cheio que não tem onde enfiar gente.”
Há alguns anos os serviços da SuperVia, empresa responsável pela operação de trens na região metropolitana do Rio de Janeiro, não inspiram elogios nos cariocas. Na pandemia, o que era ruim piorou. A operadora suspendeu o serviço expresso do ramal Santa Cruz, a linha verde, responsável por conectar alguns dos bairros mais populosos da cidade à Central do Brasil. Para completar, também interrompeu o funcionamento do ramal de Deodoro, a linha vermelha, como linha independente para atender os moradores da região Norte. Agora, a linha verde é responsável por transportar passageiros de dois ramais. Os trens, que paravam em 21 pontos, agora param em 33 e atendem clientes das zonas Oeste e Norte da cidade.
De Santa Cruz ao Centro do Rio, são quase 55 km de viagem. A cada parada, os passageiros têm de se espremer para caber mais gente. Seja às oito da noite ou às seis da manhã, a exaustão de todos é visível. Na pandemia, a SuperVia também reduziu o número de viagens e o tamanho da frota. De acordo com dados obtidos pela piauí, a operadora disponibilizou para serviço uma média de oitenta trens por dia em 2019. Na manhã daquela sexta-feira, 10 de dezembro, enquanto a moça resfriada e Cleidiane de Arruda viajavam, só 72 trens estavam circulando.
Para chegar ao trabalho às 8h30, Arruda pula da cama às 5h. Como mora longe, a carioca de 37 anos precisa pegar um ônibus até a estação da SuperVia. De lá, se desloca de trem para Deodoro. Depois embarca em outro até Austin, onde trabalha como analista de recursos humanos em uma rede de supermercados. Acorda cedo “para fazer as coisas com calma”, mas também porque sabe que o serviço da SuperVia pode atrasar. Ela conta que, em setembro passado, houve uma paralisação do tráfego de trens, e ela só conseguiu bater ponto no trabalho à uma da tarde. “Não adianta se programar, sair de casa vinte minutos mais cedo, nada. Quando eles querem, atrasam a viagem, e a gente que se vire.”
Atrasos e cancelamentos de viagens não são novidades nem para os clientes nem para a SuperVia. Procurada, a operadora disse que é comum problemas técnicos e imprevistos afetarem o funcionamento do sistema de transporte. No final da tarde da sexta-feira passada (17), por exemplo, a empresa suspendeu a circulação de todos os trens por causa de uma tempestade que atingiu o Rio.
Mesmo depois de contrair Covid e precisar ser entubada, Arruda teve que continuar andando de trem. A empresa de que é funcionária não aderiu ao modelo remoto de trabalho. Hoje, pouco mais de vinte meses depois do início da pandemia, ela ainda não se sente segura ao transitar nos vagões da SuperVia. Só viu agentes da operadora higienizando o interior dos veículos uma vez, no ano passado. “É sempre assim, abarrotado de gente em pé e sem máscara. Eu coloco a minha vida em risco quando manuseio isso aqui”, desabafou, batendo três vezes a mão direita no balaústre. Depois puxou, com a mesma mão, a máscara frouxa de tecido para proteger o nariz.
A Região Metropolitana do Rio de Janeiro mal se recuperou dos estragos causados pelo coronavírus e foi acometida por outra epidemia, a de gripe. Três dias depois de, pela primeira vez desde o começo da pandemia, a capital do estado não registrar nenhum óbito por Covid-19, a prefeitura foi às redes sociais convocar a população para se vacinar imediatamente contra a gripe. Postos de saúde e hospitais ficaram sobrecarregados, e a Secretaria de Saúde teve que montar tendas de atendimento para dar conta do aumento súbito de casos.
Vinícius Benevides, que trabalha como camelô nos vagões da SuperVia, foi infectado pelo vírus da gripe no começo deste mês. Ele virou camelô em 2016, depois de perder o emprego de pedreiro numa empresa do setor de construção civil. Desde então ele circula pelas estações do ramal Santa Cruz. Mas ser ambulante nunca foi tão difícil quanto agora. Devido à redução da frota e à interligação com a linha de Deodoro, os corredores dos trens ficam lotados a ponto de os camelôs não conseguirem andar. “Na hora do rush, tenho que implorar pra rapaziada me deixar passar. É complicado, porque se eu não ando, os clientes não me veem. E se eles não me veem, não compram a minha mercadoria. Aí não dá, né?”, explicou, com a voz abafada pela máscara.
O vendedor de 44 anos não tem jornada de trabalho definida. Nos dez primeiros dias de cada mês, quando os passageiros do trem estão com o bolso cheio, as mercadorias acabam rápido, e ele caminha pelas composições durante cerca de dez horas. No resto do mês, a coisa complica. “Aí, meu amigo, são doze, quatorze horas de trabalho por dia”, explicou. No começo da pandemia, o camelô conseguiu fazer um bom dinheiro com a venda de álcool em gel, mas depois as vendas caíram, e ele se viu obrigado a aumentar o tempo de serviço.
Como mora de aluguel e tem um filho de 7 anos e uma esposa para sustentar, Benevides não cogitou deixar de trabalhar nem no pior momento da crise sanitária. Mas foi obrigado a parar em dezembro de 2020, quando contraiu Covid. Na época, Benevides ficou parado durante um mês. A família, que mora em Campo Grande, Zona Oeste do Rio, só segurou as pontas por causa do auxílio emergencial do governo federal. “Nós, pobres, tivemos que enfrentar esse vírus na marra. Quem acredita que teve lockdown no Brasil não andou nestes trens aqui, não.”
Em nota, a SuperVia disse que implementou a interligação dos ramais Deodoro e Santa Cruz para melhorar a operação dos trens. “Antes, as composições dos ramais Santa Cruz e Japeri, que transportavam maior quantidade de clientes, dividiam as mesmas linhas e perdiam mais tempo no percurso”, diz o comunicado. Sobre os passageiros sem máscara, a empresa esclareceu que a fiscalização é responsabilidade da Polícia Militar, mas que apoia as medidas de proteção e vende passagens apenas aos clientes que usam o item no ato da compra.
A piauí também conversou com uma porta-voz da SuperVia por telefone. Sobre as aglomerações, a assessora disse que os trens estão operando dentro das regras estabelecidas pelos órgãos reguladores e que os vagões não estão lotados, só ficam mais cheios que o normal quando há algum problema técnico. Disse que a empresa tem recebido reclamações de clientes sobre o aumento no tempo das viagens depois da interligação dos ramais Santa Cruz e Deodoro, mas esclareceu que se trata de um engano: segundo ela, o aumento do número de estações passa a impressão de que a viagem ficou mais longa, mas a duração é a mesmo que antes, às vezes menor. Por fim, disse que não há planos de retomada do serviço expresso para o ramal Santa Cruz e da linha exclusiva de Deodoro.
“É impossível contar quantos passageiros cada trem leva”, disse à piauí um funcionário da Agetransp, que falou sob a condição de anonimato para não ser prejudicado no trabalho. A agência reguladora é responsável por acompanhar o fluxo de pessoas e garantir que a SuperVia não transporte mais passageiros que o recomendado pelas autoridades.
Diariamente, fiscais utilizam uma metodologia criada durante a pandemia para calcular a taxa de ocupação dos trens. Para isso, usam dados fornecidos pela própria SuperVia. “A conta nos ajuda a ter noção do fluxo de passageiros por dia e horário, mas não dá pra saber com exatidão o número de pessoas que viajou em cada trem. Foge do nosso controle”, explicou o funcionário da Agetransp.
Diariamente, a agência reguladora se certifica de que a taxa de ocupação dos vagões não passou de 60%. O controle até hoje é feito seguindo as instruções de um decreto de junho de 2020, apesar de ele ter sido revogado pela Secretaria de Transporte em outubro passado. Acontece que o governo estadual cancelou as regras anteriores, mas não criou novas. A determinação atual, bastante genérica, diz apenas que é preciso “adotar medidas de proteção à vida” nos serviços de transporte coletivo.
Procurada, a Agetransp afirmou que a SuperVia está seguindo as recomendações e mantendo o fluxo de pessoas abaixo do patamar estabelecido. Também disse que, no início da pandemia, o conselho diretor decidiu abrir um processo regulatório para cada um dos modais de transporte intermunicipais do Rio de Janeiro. Todas as falhas e infrações às regras estão sendo documentadas, e a taxa de ocupação é um dos itens analisados. No entanto, os processos só deverão ser preparados para análise quando a pandemia acabar. A agência reguladora ainda não recebeu da SuperVia informações sobre o fluxo de passageiros do dia 10 de dezembro de 2021.
Naquela manhã do dia 10, enquanto tentava se equilibrar no balançar do trem, Arruda contou que já teme uma nova alta no preço do bilhete. A SuperVia anunciou recentemente que precisa de socorro financeiro do governo do estado e sugeriu um aumento de 40% na passagem, subindo o valor de 5 para 7 reais. “O preço só sobe, e a qualidade só cai”, reclamou Arruda, mantendo a voz serena apesar da indignação.
O trem foi se enchendo um pouco mais ao longo da viagem. A maioria dos passageiros, incluindo a moça resfriada, estava em silêncio, encarando a tela do celular. Às 7h10, já não era possível ignorar a circulação de vendedores ambulantes nos corredores, oferecendo de fones de ouvido a chocolate, passando por pomadas, salame, carteiras, dipirona e chinelos.
As portas se abriram mais uma vez quando o veículo chegou a Deodoro. Como estava perto da saída, Arruda foi uma das primeiras a deixar o vagão. Em seguida, dezenas de passageiros entraram no trem, e ele partiu. Arruda caminhou a passos lentos até o outro lado da plataforma para fazer uma baldeação. Dali, pegaria um trem expresso e mais vazio da linha Japeri até o trabalho.
Nos alto-falantes, uma voz feminina transmitia avisos e indicava os horários das viagens seguintes. “A Covid-19 ainda está circulando pelo Rio de Janeiro”, disse a locutora em certo momento, enquanto alertava que o próximo trem do ramal Santa Cruz com destino à Central do Brasil chegaria dentro de doze minutos. O próximo recado soou como deboche: “Use máscara e, sempre que possível, mantenha 1,5 metro de distância dos outros passageiros dentro dos vagões. Proteja a sua saúde e a das pessoas que você ama.”
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