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    Ilustração: Carvall

questões educacionais

Três mitos sobre o ensino público – e o que fazer para mudar a educação no Brasil

Investir em gestão, professores, primeira infância e educação profissional é saída contra efeitos da pandemia e desmonte promovido por Bolsonaro

Priscila Cruz | 16 dez 2021_11h36
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Nesses vinte anos de trabalho pela melhoria da Educação pública, ouvi todos os dias relatos sobre sua importância e sobre a pouca prioridade e urgência dada à área. Mas percebo que há três falsas crenças muito comuns que ajudam a manter as coisas como estão e que, portanto, precisamos derrubar.

A primeira crença é que a escola pública no Brasil não tem jeito (“escola pública na minha época era boa, hoje é um desastre e só piora”; “aumentamos recursos e os resultados continuam horríveis”). Incorreto. A “escola boa na minha época” era, na verdade, uma escola excludente (em 1970, 52% das crianças e jovens de 4 a 17 anos estavam fora da escola, em 2019 eram menos de 3%). A escola pública tem respondido, sim, ao aumento dos investimentos nas últimas décadas e à progressiva melhoria da gestão. Na média nacional, o atingimento do nível adequado na aprendizagem em língua portuguesa saltou de 28% dos alunos em 2007 para 61% em 2019, como resultado de diferentes políticas públicas como os fundos de redistribuição de recursos educacionais (Fundef, Fundeb e agora Novo Fundeb), do aumento da transparência e responsabilização (avaliações de aprendizagem,  mecanismos de acompanhamento e controle), crescente foco na alfabetização, instituição do piso nacional do magistério e maior colaboração dos estados nas gestões municipais, para citar apenas algumas. Embora tenhamos uma fotografia ainda crítica e com alarmantes desigualdades quando consideramos variáveis como nível socioeconômico e raça/cor, é possível mudar o quadro.

A segunda falsa crença é pensar que melhorar a Educação pública demora demais (“nunca verei os resultados”). O salto na aprendizagem descrito acima ocorreu em pouco mais de dez anos; nesse mesmo período tivemos avanços vigorosos no Ensino Fundamental I, expressos pelo Indicador de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb, que vai de zero e dez), em municípios como Coruripe/AL (de 4,9 para 8,5), Teresina/PI (capital com melhor resultado na educação, de 4,2para 7,4) e Sobral/CE (de 4,0 para 8,4). É preciso dizer que a média nacional avança mais lentamente, em grande medida porque alguns municípios simplesmente estão estagnados ou retrocedendo: 25% deles apenas na gestão municipal anterior, de 2015 a 2019. Ou seja, é possível avançar e rápido, e o retrocesso não pode ser tolerado.

A terceira é a percepção que a elite tem, que inclui os tomadores de decisão do país, de estar protegida porque é servida pelas escolas privadas. Mesmo que não publicamente expressa, a ideia de que “esse problema da Educação pública não me atinge” traz conforto e, portanto, pouco engajamento e cobrança. Autoengano. A ausência de um patamar mais alto de qualidade educacional para todas as crianças e jovens lega um país – para todos – com teto mais baixo de crescimento econômico, mais informalidade e piores empregos, indicadores mais graves de violência (notadamente homicídios), menor prevenção a doenças e piora na saúde pública, maior devastação de florestas e menor compromisso com a conservação do meio ambiente, além de menor engajamento cívico e qualidade da cidadania e, consequentemente, instituições e a democracia fragilizadas e em constante risco.

A melhor bola de cristal para enxergarmos como será o Brasil daqui a dez anos é olhar para o que acontece neste momento nas escolas brasileiras. A geração que lá está logo chegará ao mercado de trabalho, formará famílias e terá filhos, viverá e reconstruirá o País pós-pandemia, pós-alçapão-no-fim-do-poço que parecemos entrar todos os dias. 

Pois bem, sabemos que é importante, que é possível em menos tempo e que faz sentido para todos nós. Falta falarmos sobre como fazer daqui em diante e partir para ação.

 

Precisamos colocar em prática uma agenda referenciada nas melhores evidências e experiências daqui do Brasil. Antes, é importante apresentar duas premissas. Primeira: a enorme complexidade inerente ao funcionamento de um sistema educacional exige que sejam refutadas formulações simplistas e necessariamente erradas. Desconfiem de frases que comecem com “basta fazer…”. Segunda: a qualidade da educação vai muito além do que avaliações e indicadores são capazes de captar, especialmente a educação que rompe ciclos de pobreza e exclusão e prepara para o conhecer, fazer, coexistir e ser no século XXI e para as transformações que virão. A educação tem múltiplas missões: transmitir a herança sociocultural da humanidade, promover equidade, ser emancipadora e preparar para um futuro incerto. Dito isso, uma agenda para a aprendizagem é basilar – não o todo – e deve ser implementada em caráter de urgência.

Para reduzir os efeitos da pandemia na educação, destaco duas estratégias: ampliação da jornada escolar e recuperação ao longo do ano letivo. 

O modelo de ampliação de jornada escolar aqui defendido tem como premissa o conceito de Educação integral, que combina proposta pedagógica multidimensional, conectada ao projeto de vida, à realidade dos jovens e ao desenvolvimento de suas competências cognitivas e socioemocionais. 

No Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2019, esse modelo específico de Ensino Integral para o Ensino Médio, nascido em Pernambuco em 2004 e atualmente replicado por praticamente todos os estados (o modelo já responde por 12,4% das matrículas de Ensino Médio nas redes estaduais de todo o País), foi maior que a média do ensino regular em 13,44 pontos em matemática e 12,41 em língua portuguesa. Na escala Saeb, 12 pontos equivalem a um ano na escola. Com a implantação e ampliação do modelo a partir das áreas de maior vulnerabilidade socioeconômica, foi também importante redutor das desigualdades.

Mais tempo na escola viabiliza também um processo mais intenso de recuperação e aceleração da aprendizagem dos estudantes. No Todos Pela Educação, temos estudado e disseminado os fatores que explicam o sucesso das redes de ensino de maior êxito no País. Nessas redes, um fator que chama atenção, pela centralidade que possuem nos resultados, é um obstinado trabalho ao longo do ano para não deixar nenhum aluno para trás, com intervenções constantes nas lacunas de aprendizagem.

 

Pois bem, mitigar os efeitos da pandemia é obrigação, mas não será suficiente para mudarmos de patamar. À luz do contexto atual, o Todos Pela Educação relançou a agenda estratégica e sistêmica que defendemos para a Educação Básica, o “Educação Já!”. Essa nova edição, atualizada e fortalecida, já contou até aqui com a participação de dezenas de especialistas, acadêmicos, gestores educacionais, professores e – lembrando da premissa de que não há solução fácil para problemas complexos – é composta por dez medidas estruturais. A saber: 1. Fortalecimento da governança nacional da Educação Básica, com ênfase para um bom Sistema Nacional de Educação; 2. Modernização da gestão dos órgãos da administração pública educacional; 3. Implantação de um financiamento mais distributivo e indutor de qualidade, alcançado com o desenho do Novo Fundeb aprovado em 2020; 4. Fortalecimento da profissão docente; 5. Profissionalização da gestão escolar; 6. Implementação dos currículos alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC); 7. Educação Infantil de qualidade, articulada a um atendimento integral na Primeira Infância (educação, saúde, assistência, cultura e esporte); 8. Colaboração entre estados e municípios para a melhoria da Alfabetização; 9. Construção de uma nova proposta de escola para os Anos Finais do Ensino Fundamental; 10. Implementação de mudanças profundas no Ensino Médio.

Não tratarei de todas as medidas neste artigo. A despeito do princípio já repetido aqui de abraçarmos e enfrentarmos a complexidade, darei destaque a quatro temas que nessa nova versão do Educação Já ganham contornos ainda mais fortes: Gestão da Educação, Professores, Primeira Infância e Ensino Médio. 

A necessária modernização da gestão pública, principalmente na área da Educação, deve passar pelo fortalecimento da capacidade de liderança e de mobilização de toda a cadeia de implementação (notadamente órgão central da Secretaria, órgãos regionais e gestão escolar). Mudanças estruturais, que se sustentem ao longo do tempo, dificilmente se materializam sem que haja um profundo senso de apropriação da agenda de transformação por aqueles que efetivamente as implementam nas escolas e nas salas de aula – os professores. O propósito coletivo compartilhado pelos atores da rede com relação ao que se pretende alcançar é fundamental e demanda pactuação de metas, formações constantes e focadas, incentivos financeiros e não financeiros, seleção técnica de gestores, descentralização coordenada da gestão. Fica claro que isso contempla, mas exige muito mais que a lógica da “administração gerencial”. Logo chegamos à conclusão de que, entre outros aspectos, é absolutamente necessário promover contínua qualificação do quadro de pessoas que trabalham nos órgãos públicos educacionais e, sempre que possível, uma carreira específica de gestor público nas secretarias de Educação, bem desenhada e atrativa. Não tenho dúvida que muitos jovens, bem formados e cheios de energia de mudança, topariam o desafio de irem trabalhar em secretarias de Educação com a missão clara de assegurar a aprendizagem de todos os alunos.

Se a modernização da gestão é o que cria chances de mudanças em nível de rede de escolas, a boa pedagogia é o que materializa a transformação em cada uma das salas de aula. Entra em cena o professor. Professores não são heróis nem coitados, e deveriam ser considerados e tratados como os principais profissionais do país, com um forte desenvolvimento profissional, que começa na formação em pedagogia ou licenciatura.

O Brasil passa por uma grande expansão de cursos de formação inicial de professores, hoje com 2/3 das matrículas na rede privada e, dessas, 73% na modalidade Educação a Distância, sem avaliações consistentes de sua qualidade e sem regulação adequada. Formação inicial dos professores da Educação Básica é responsabilidade direta do Governo Federal, que deve, de uma vez por todas, subir as barreiras dessa oferta que engorda os bolsos das universidades privadas. Ao lado de coibir cursos de baixíssima qualidade, o próximo Ministério da Educação precisa incentivar e subsidiar a oferta de formação dos futuros professores que garanta que esses estudantes tenham residência pedagógica em escolas públicas desde o início da graduação, currículo que articule teoria e prática, formação em tempo integral, preferencialmente com bolsa para não terem que reduzir o tempo de estudo com trabalhos em outras áreas. Um curso que realmente prepare o professor para uma atuação que é muito mais complexa do que a maioria das pessoas supõe.

Já falei aqui de dois pilares que sustentam as políticas educacionais, a gestão e os professores. Mas como os alunos chegam às redes de ensino, às salas de aula? Aí entra com força a política de Primeira Infância. Evidências abundantes mostram que intervenções adequadas durante a Primeira Infância (do zero aos seis anos) têm efeitos de longo prazo sobre os indivíduos. Um primeiro eixo é, com a colaboração dos estados, municípios ampliarem o arco de atendimentos prestados dentro das creches, da educação infantil passando também por refeições saudáveis ao longo de todo o dia, acesso a expressões culturais diversas, vacinação, acompanhamento de saúde e orientação às famílias. Além disso, e sobretudo nas áreas com mais crianças pobres e que ainda não contam com uma infraestrutura de atendimento multissetorial consolidada, ampliar a oferta de um equipamento público que começa a ganhar destaque em algumas regiões do país, os “Centros de Desenvolvimento Infantil”, espaços para a leitura e “contação” de histórias, esportes, teatro, cinema, música, para crianças e famílias.

Por fim, a juventude. O Ensino Médio é a etapa da Educação Básica com resultados mais críticos. Há uma modalidade que precisa ser valorizada, abraçada e perder seus estigmas de uma vez por todas: a Educação Profissional e Tecnológica (EPT). Atualmente, a participação de alunos brasileiros de Ensino Médio em programas educacionais profissionalizantes é de apenas 11%, contra mais de 20% na média da América Latina e 40% nos países da OCDE. Mais do que ampliar a oferta, precisamos de cursos de qualidade, que façam sentido ao Brasil e aos jovens, especialmente agora que a evasão está explodindo em todo o território nacional. Algumas áreas reúnem importância para o país e interesse dos jovens, como economia digital, economia verde, economia criativa e economia do cuidado, e podem ser vetores da modernização da EPT.

Os anos de desmonte promovido pelo governo Bolsonaro na educação, muitos meses de pandemia com escolas fechadas por tempo excessivo e aulas remotas com aproveitamento baixo, bem como a piora nas condições socioeconômicas das famílias dos estudantes – cujo impacto na aprendizagem infelizmente é muita alta –, são uma carga grande demais para crianças e jovens suportarem sem o nosso incondicional, persistente e cotidiano compromisso.

É possível mudarmos a Educação para melhor, pelo presente e futuro de cada criança e jovem. O Brasil tem jeito, sim. Tem jeito, se finalmente resolvermos investir nas pessoas e colocarmos a Educação como prioridade.

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