Danilo e amigos comemoram o resultado da audiência em frente ao Fórum de Niterói Foto: Pedro Tavares
Três vezes suspeito, três vezes inocentado
A verdadeira história de um educador negro processado por assalto apenas com base em uma foto
Era um domingo nublado de setembro de 2018, mas o auxiliar administrativo Danilo Félix Vicente não lembra o dia exato. Ele e um amigo combinaram de se encontrar numa quadra esportiva perto de onde moravam, na favela do Morro do Estado, em Niterói, no Rio de Janeiro. O tempo mais frio que de costume trouxe a Danilo a ideia de sair com uma jaqueta corta vento verde neon, alegre e chamativa. Até porque aquele era um dia especial: sua esposa, Ana Beatriz Sobral, que estava grávida, acabara de contar que ele seria pai de um menino.
Encontraram-se em frente à loja ParaSom, um pequeno estabelecimento especializado em conserto de aparelhos de rádio e televisão, negócio familiar administrado pelo pai de Danilo e por um primo de Ana. Dali foram ao campinho de futebol de terra, gasto pelo tempo e pela falta de conservação, praticamente em frente à loja. A notícia foi dada com alegria. Entre os abraços, concluíram que a ocasião merecia uma foto e uma postagem na rede social. Danilo pediu a Bruno que caprichasse, e o resultado agradou. No mesmo dia a foto estava em seu perfil no Facebook com a legenda “Papai do Miguel”.
Niterói, 2 de julho de 2020. Por volta de 22 horas, um homem sofre um assalto a mão armada. O ladrão levara sua motocicleta, celular e dinheiro. Poucos dias depois, ele vai à 76ª Delegacia de Polícia, para registrar a ocorrência. A vítima descreve o assaltante como “pardo, cabelo curto e bigode fino”. Os policiais solicitaram a ele que olhasse o arquivo de fotografias da delegacia para apontar possíveis suspeitos. A vítima aponta uma foto de um jovem de casaco verde neon. O assalto ao motociclista foi mais um episódio dentre os 513 roubos de veículos que Niterói registrou no ano de 2020.
Naquele mesmo dia, Danilo estava em sua casa com a esposa, o filho, já com um ano de idade, seu irmão Diogo e seus pais. A pandemia estava no auge. Danilo vinha se recuperando de um acidente ocorrido em março, quando caiu de moto e quebrou o tornozelo. Por conta disso, se afastou do trabalho e passou a receber auxílio do INSS. Ele trabalhava na UFF (Universidade Federal Fluminense), como terceirizado por uma empresa do setor administrativo. Durante a pandemia, além do trabalho na UFF, Danilo passou a ajudar a esposa, Ana Beatriz, no comércio de roupas online.
Em 6 de agosto, um mês depois do roubo da motocicleta, Danilo Félix foi abordado por policiais à paisana enquanto caminhava no centro de Niterói. Levado à delegacia, recebeu voz de prisão, acusado de ser o autor do roubo. Da delegacia foi encaminhado para um presídio em Benfica, onde passou por uma triagem e ficou poucos dias. Depois foi levado ao Presídio Isap Tiago Teles de Castro Domingues, em São Gonçalo, que foi onde passou os piores dias. Como a pandemia ainda estava no início, e os protocolos eram rígidos, ele teve que passar por um isolamento antes de ingressar no presídio. “Ali eu comecei a sentir sintomas da Covid: febre, dor de cabeça, dor no corpo. Eu dividia o espaço com mais umas quinze pessoas. O lugar em que a gente ficava isolado era muito precário, a água que recebíamos era barrenta, e a comida praticamente todo dia estava estragada.” Danilo passou quinze dias nessas condições e não conseguiu o resultado do exame de Covid porque, antes que saísse o laudo, ele foi transferido para o presídio Evaristo de Moraes, o Galpão da Quinta, em São Cristóvão, onde ficou até ser solto. Foram 55 dias encarcerado. Danilo guarda com tristeza o dia em que recebeu uma carta de Ana Beatriz contando que o filho tinha dado os primeiros passos. “Receber aquilo e não estar do lado do Miguel pra ver foi uma pancada muito forte. Ali eu tive um sentimento de impotência”, lembra.
Depois de quase dois meses, a vítima do assalto, chamada para novo reconhecimento em audiência – agora na presença de Danilo – disse não ser capaz de apontá-lo como criminoso. Nos dois anos entre a foto e o crime, o jovem estava mais “gordinho”, como ele mesmo descreveu, e já não usava o cabelo raspado, mas sim dreads.
Em 28 de setembro de 2020, Danilo foi absolvido pelo primeiro crime pela juíza Juliana Bessa, da 1ª Vara Criminal de Niterói. Depois de deixar a prisão, Danilo recebeu a notícia de que responderia a outros dois processos por roubos ocorridos em julho de 2020: um no mesmo dia 2 e outro no dia 14. Mais uma vez, o único elemento probatório contra ele era a foto no álbum da delegacia. Porém, nessa mesma audiência que resultou na sua libertação, a Justiça mandou devolver o segundo processo para a delegacia, pois não aceitou o reconhecimento fotográfico como única prova. Danilo foi liberado, e o processo arquivado. Foram duas vitórias no mesmo dia. Mas ainda faltava um processo.
Em 18 de fevereiro de 2023, Danilo foi novamente intimado para uma audiência em abril, relacionada ao terceiro caso: o roubo de uma mochila e de uma aliança de um casal no dia 14 de julho de 2020. Novamente, a única referência para a acusação era a mesma foto de 2018 publicada no Facebook, tirada no campinho no dia em que o rapaz descobriu que seria pai de um menino. “A dinâmica é sempre a mesma. Terceira vez vivendo esse pesadelo. E todos os crimes no mesmo período. Eu não entendo isso. Se eu não tava no primeiro, não tava no segundo, eu também não tava no terceiro”, afirmou Danilo antes do início da audiência, realizada em 11 de abril deste ano no Fórum de Niterói, no Centro da cidade.
A revolta do jovem de 27 anos se mistura ao medo de voltar injustamente à prisão. ”Eu não quero que ninguém passe mais por essa covardia. Foi horrivel”, lamentou em frente ao Fórum, minutos antes de entrar na sala de audiência para ser, pela terceira vez, acusado de um crime com base no reconhecimento fotográfico. Ao lado dele, sua esposa, Ana Beatriz Sobral, se mostrava apreensiva. “Pegaram uma foto do Facebook. Eu quero saber como uma foto de Danilo Félix foi parar no álbum de fotografia da 76a DP. Quero respostas disso”, lastima Ana. De tão chateado com o destino da foto, Danilo apagou a imagem de suas redes. Danilo ainda teve seu perfil do Facebook hackeado.
No Brasil, polícia e Justiça usam três procedimentos no reconhecimento de suspeitos de crimes. O primeiro e mais tecnológico é o reconhecimento facial, realizado por algoritmos. Os softwares fazem levantamentos a partir de bancos de dados na internet, coletam o maior número possível de fotos das pessoas e desenham um perfil que vai ser a base para o reconhecimento. O segundo é o reconhecimento presencial: a vítima é posta diante de um certo número de pessoas e aponta, entre eles, quem reconhece como sendo o autor do crime. O terceiro modo, herança de um distante mundo analógico, é o reconhecimento fotográfico, a partir do chamado álbum de fotografias da delegacia, seja ele físico ou digital. É esse o mais vulnerável.
O Código de Processo Penal brasileiro é de 1941. Mesmo defasado, está em vigor até hoje. Estabelece alguns parâmetros a serem seguidos nos casos que exigem a necessidade do reconhecimento de acusados. Diz, por exemplo, que o reconhecimento fotográfico tem que ser seguido pelo reconhecimento presencial. Também exige que a vítima realize uma descrição falada da pessoa reconhecida. No caso de Danilo Félix, nos três casos em que ele foi apontado como suspeito, o reconhecimento fotográfico não foi seguido do reconhecimento presencial, diz a advogada da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Sônia Ferreira, que acompanhou o caso. ”Esses processos nem deveriam existir. O único elemento probatório é nulo, que é o mero reconhecimento fotográfico. E isso é ilegal. A lei diz que o reconhecimento fotográfico, obrigatoriamente, deverá ser acompanhado do reconhecimento presencial, para que esses dois processos sejam complementares e reduzam as chances de erro”, explica Sônia.
Um trabalho realizado pelo Innocence Project, um instituto de Nova York fundado em 1992 e voltado para denunciar condenações injustas, mostra que, em 375 casos analisados e nos quais ficou comprovada a inocência de uma pessoa injustamente condenada por meio de exame de DNA, a principal causa do erro foi o reconhecimento fotográfico equivocado. Um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostrou que, entre os anos de 2014 e 2019, mais de cinquenta pessoas foram acusadas de forma equivocada a partir de reconhecimento fotográfico. A maioria ficou presa de forma preventiva, assim como Danilo nos 55 dias de cárcere. Esse mesmo estudo aponta que 80% dos acusados erroneamente eram pessoas negras, o que traz um ingrediente ainda mais perverso à metodologia policial: o viés racista no reconhecimento de possíveis criminosos. No Rio, erros semelhantes em casos de reconhecimento fotográfico aconteceram com o motorista de aplicativo e montador de móveis Jeferson Pereira da Silva, de 29 anos, no início de setembro de 2021. O jovem foi surpreendido por uma abordagem policial em um shopping em Del Castilho, na Zona Norte do Rio. Jeferson fora reconhecido como autor de um roubo de quinze anos atrás a partir de um registro fotográfico 3×4. Ele passou seis dias preso injustamente.
Doutor em ciência política pelo Iesp-Uerj e coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Pablo Nunes, diz que esse caminho da foto, das redes sociais até o álbum, acaba sendo uma prática comum nas delegacias. “Acontece muito, por exemplo, os policiais monitorarem perfis de jovens no Facebook e no Instagram. Alguns deles fazem exposição de armas e drogas nos seus perfis, outros não; Danilo por exemplo não tinha nada disso que pudesse indicar. São apenas garotos negros de favelas que eles julgam suspeitos e incluem no album”, explica.
Doutor em Psicologia Cognitiva pela PUCRS e coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Cognição e Justiça (CogJus), um projeto de direitos humanos com foco no aperfeiçoamento do sistema judicial, William Weber Cecconello explica que o método de reconhecimento fotográfico, conhecido como “show up”, é inevitavelmente sujeito ao erro e por isso não pode funcionar sozinho. “Essa prática é inapropriada porque ela dá duas opções: reconhecer ou não reconhecer. A vítima pode acabar reconhecendo um suspeito mas porque ficou na dúvida e não pela certeza da lembrança”, explica William. Além disso, o ambiente da delegacia, a chateação e o desconforto de passar por essa experiência, ampliados pelo sentimento “vingativo” por parte da vítima, podem aumentar a possibilidade de surgirem as chamadas “falsas memórias”. A vítima se sente no dever de reconhecer algum dos suspeitos apresentados pela polícia. No fim, qualquer característica que se assemelha com a mais sutil lembrança que ela tenha do autor do crime será o suficiente para que ela aponte de forma enfática evidenciando indício de autoria. Os índices de erro são drásticos. “Podemos comparar com uma questão múltipla escolha de uma prova escolar: se o aluno tiver duas opções A ou B, a chance dele acertar é 50%, se ele não souber vai chutar e ainda assim tem grande chance de acertar, caso aumente o número de opções as chances vão se reduzindo”, pontua William.
Outro ponto chave para a fragilidade desse processo é a própria expectativa da população sobre a Polícia Civil e a elucidação de crimes. A ideia corrente é que o trabalho da polícia é investigar e prender – ou seja, quanto mais investigações e prisões fizer, mais o seu trabalho é visto como eficaz. E a expectativa facilmente se transforma em pressão, afirma Nunes. “Claro que existem problemas estruturais e estruturantes na polícia. Mas dessa polícia sucateada é exigido que solucione números gigantescos de crimes. Isso alimenta esses expedientes de pressionar a vítima para que aponte um suspeito.”
Eram 15h15 quando os advogados Juliana Sanches e Djeff Amadeus, do Instituto de Defesa da População Negra, desceram sob aplausos e gritos a escadaria do Fórum de Niterói, na tarde de 11 de abril. Do lado de fora, parentes, amigos e uns poucos jornalistas. “As vítimas não reconheceram o Danilo!”, afirmou Sanches sob aplausos. Sanches e Amadeus resumem o que aconteceu. “O PM não lembrava de nada, nem da prisão nem do reconhecimento nem do caso. Era uma testemunha de acusação que não se lembrava de nada. Isso foi muito positivo para nós”, explicou Sanches. “Das vítimas, primeiro foi ouvido o homem que também disse que não lembrava de características do acusado”, complementa. A segunda vítima do assalto, a esposa, disse que na hora do crime não viu nada, pois estava bem escuro. E, de acordo com a advogada, ela foi ainda pressionada para reconhecer Danilo, mesmo ela dizendo que não lembrava de nada.
Além de inocentar Danilo, as vítimas reconheceram outro suspeito. Assim, em vez de arquivar o caso, a juíza Juliana Grillo El-Jaick decidiu fazer uma sentença por escrito, e por conta disso, o resultado pode demorar cerca de um mês e meio ou dois. Até lá, Danilo Félix Vicente continua réu, mas responde em liberdade, confiante na absolvição. Ele trabalha atualmente como educador de um abrigo para adultos em situação de rua, no Centro de Niterói.
A Secretaria da Polícia Civil afirmou ter orientado delegados para que tenham muita prudência e sejam contidos ao indiciar com base no reconhecimento fotográfico. Procurada pela piauí, a 76a DP não respondeu quando questionada sobre como a foto de Danilo Félix foi parar em seu álbum de suspeitos. A Polícia Civil informou que a foto dele não está mais nos álbuns da corporação.
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