Música: o compositor, cantor e instrumentista Cartola em sua casa, no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro (RJ), durante a comemoração do seu aniversário de setenta anos. (Rio de Janeiro, RJ, 11.10.1978. Foto de Ubirajara Dettmar/Folhapress)
Um acorde do Cartola
O gênio de Cartola se manifesta logo na primeira aparição da palavra “minha”.
A tonalidade de uma canção indica uma série de relações de distância em relação a um centro, que é a tônica. Os acordes (agregados de notas) compõem campos de força que se definem pela relação que mantém com o centro tonal – o qual guardamos intuitivamente como ponto de referência durante o percurso de uma música. Em cada tonalidade há um jogo de polaridades que funciona de acordo com princípios de atração e repulsa (lembrando um pouco os princípios da mecânica newtoniana). O acorde de dominante, por exemplo, cria no ouvinte um forte sentimento de movimento na direção da tônica – é atraído por ela –, enquanto outros acordes poderão gerar uma sensação de distanciamento da tônica, ou mesmo de negação da tonalidade.
Pelos graus de distância e parentesco em relação ao centro tonal, os acordes podem ser vistos como as províncias numa geografia sonora. A percepção fina dessas relações de proximidade e distância, atração e repulsa, é uma das principais ferramentas na criação de sentidos entre o som e a palavra, entre o discurso musical e o conteúdo verbal das canções. Um exemplo magistral é dado pela colocação precisa de uma única palavra sobre um acorde, ou província sonora, na canção Minha, de Cartola. O pronome possessivo “minha” é o centro estrutural da canção, e não à toa lhe serve de título. Repetida no início de cada estrofe, sempre de forma destacada, ela concentra em si o drama descrito pelo narrador – o drama da eterna impossibilidade de posse do objeto amoroso.
O gênio de Cartola se manifesta logo na primeira aparição da palavra “minha”. Trata-se do primeiro verso (algo minimalista), que estabelece, num único golpe, toda a atmosfera da música. Não quero soar exagerado, mas esse me parece um dos pontos de maior concentração na história da música popular brasileira. Pouco importa sua breve duração, pois seu momentum se amplia indefinidamente em nossa memória, como se fosse um big bang que cria o microcosmo da canção, ou um fantasma que não cessa de perseguir os versos subsequentes.
Que sensação eu tenho quando ouço o “minha” que abre a canção de Cartola? Que ele conseguiu concentrar nessa palavra sua pungente negação; que conseguiu afogá-la com o chumbo da frustração; que ele nocauteia, logo no primeiro round, com um soco forte, de som abafado, todas as esperanças do narrador; que delineia de modo claro e estranho uma espécie de “antiênfase”, ancorando a canção num anticlímax; que é a própria voz da derrota que canta. Depois desse derradeiro início a música prossegue, com versos magníficos que contam a saga das ilusões perdidas (“como mentiam as cartomantes / como eram falsas as bolas de cristal” etc.), e com a própria palavra “minha” ganhando nuances menos densos. Mas nada supera o choque inicial.
E como Cartola logrou esse efeito? Cavando um abismo debaixo do verso, deixando a palavra “minha” totalmente desamparada. E fez isso usando o ritmo – a palavra é articulada nos tempos fracos da divisão –, e sobretudo a harmonia. Ao contrário do que acontece na maior parte das canções, Minha abre sobre um acorde estrangeiro (um chamado empréstimo modal), construído fora da tonalidade. Trata-se, além disso, de um acorde ultra instável e escuro, com o 5º grau abaixado – “um acorde horrível de cantar por cima”, como certa vez ouvi um músico dizer. Somos desse modo arremessados para um dos pontos mais longínquos da geografia tonal, para uma terra distante e nada hospitaleira. A palavra (“minha”) literalmente despenca. E o que era para ser a afirmação da conquista se transforma, num átimo, na constatação amarga da derrota.[piaui_video]https://www.youtube.com/watch?v=CpzAWtS22wA
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