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    Pelé em um amistoso entre Malmoe e Brasil, em 8 de maio de 1960. O atacante marcou dois gols na vitória do Brasil por 7 a 1. CRÉDITO: CENTRAL PRESS/AFP

questões esportivas

Um assombro sem fim

Ninguém jogou futebol como Pelé, não me venham com comparações ridículas

Cristovão Tezza | 28 jan 2023_08h00
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No momento em que a morte anunciada de Pelé enfim materializou-se na informação simples e inapelável – Pelé morreu –, senti um choque e segurei um nó na garganta, que quase se transforma em choro. O pequeno iluminista pede desculpas e se recompõe do vexame, arrastando um mal-estar inexplicável que vai longe. O engasgo da emoção parece vir do nada, porque o futebol não fez parte relevante da minha infância em Lages, Santa Catarina, onde nasci; apenas lembro vagamente de alguma euforia pública na Copa de 1958. Já em Curitiba, de 1961 em diante, devagar a insídia do esporte começou a se tornar mais presente, com um campinho irresistível próximo de casa, na Rua Mateus Leme, e uma bola oficial que ganhei de aniversário – e que por muito pouco não me matou atropelado numa escapada no meio da rua, em que eu, voando diante de um carro, estava disposto a perder a vida, mas não a bola. Uma freada cinematográfica me salvou. E eu ainda nem era torcedor de nada. Só mais tarde, cursando o segundo grau do Colégio Estadual do Paraná, por influência do colega e amigo Ariel Coelho, ator já falecido, acabei me assumindo (por sorte e boa estrela) torcedor do glorioso Club Athletico Paranaense.

Mas foi apenas na década de 1980, ao perceber a importância do imaginário do futebol na socialização do meu filho Felipe (portador da síndrome de Down), que me interessei de fato pelo esporte e mergulhei nos jogos, até me tornar o torcedor fanático de hoje. Mea culpa: como se o futebol fosse mais uma fonte de sofrimento do que de alegria, sei que sou companhia desagradável para ver jogos, gritalhão, impaciente, ofensivo, imaturo. Durante as partidas, me transformo num técnico imaginário, charlatão e agressivo, a ponto de o próprio Felipe me pedir calma – e pelo menos uma vez, assustado com a agitação do pai súbito irreconhecível, ele sugeriu que eu fosse “ler livro”, e que ele veria o jogo para mim.

Na minha autoajuda particular, o futebol tornou-se um ponto de irracionalidade ocupacional que precisa ser periodicamente alimentado. Não vai ciência futebolística nenhuma aí, só instinto e chutes; sou incapaz de fechar uma escalação completa de memória, tenho dificuldade para explicar exatamente o que é um volante e toda a minha sabedoria tática se resume à ideia de que se os times explorassem com mais frequência as idas às linhas de fundo (que na minha cabeça sempre geram perigo), abrindo à direita e à esquerda em vez de se afunilarem na frente da área, fariam muito mais gols. No meu paraíso futebolístico, haveria mais Garrinchas e menos trombadores. Desmemoriado, admiro os gênios anônimos capazes de, sem recorrer ao Google, descrever vividamente lances em detalhes de partidas de quinze anos atrás, dando nome a cada um dos envolvidos, e até representando na mímica animada de braços e pernas como a bola correu por baixo da barreira (“Você viu aquele lance do Ronaldinho?!”), ou fez uma curva caprichosa até bater na trave, ou o filho da puta do juiz apitou aquela falta ridícula, o cara só tocou na bola – e o torcedor até se levanta da mesa para demonstrar com a ponta do pé o que aconteceu.

Distraído, gosto de ouvir e ler ao acaso comentários dos especialistas, que esqueço em seguida, e às vezes, para esvaziar a cabeça, passo horas acompanhando mesas redondas sobre este tudo que é nada, a substância do mito – o futebol. Como torcedor, pertenço à família estritamente televisiva do futebol, o sofá diante de uma caixa, que se consolidou na década de 1970. A televisão marcou o segundo grande momento da cultura do futebol brasileiro, colocando em outro plano, sofisticado ainda mais pelo advento das cores, os rituais primitivos da antiga Era do Rádio. A primeira grande estranheza que senti nessa passagem foi o ritmo da narração dos locutores: os frenéticos narradores do rádio, que transformavam qualquer pelada num evento espetacular, deram lugar a comentaristas mais ou menos fleumáticos, impedidos de produzir muito exagero por causa da ditadura da imagem viva que descreviam, afinal partilhada com o espectador. O exagero passava a ter limites, o que contraria a lógica do futebol. A sensação era a de que os jogos na tevê eram mais lentos do que os do tempo do rádio.

E hoje estamos entrando em uma terceira era: a pulverização histérica das transmissões da internet, dos aplicativos e do streaming, com arquibancadas digitais gigantescas e globalizadas, despejando comentários furiosos em tempo real das torcidas em 1 milhão de bolhas e gavetas. Tranquilo no sofá, nem me atrevo a tentar explicar o sentido do futebol no mundo de hoje, menos ainda no Brasil. Apenas sinto que, simbolicamente, o futebol ocupa uma zona cultural fronteiriça que serve de álibi para tudo, convergência de todos os lugares comuns interpretativos do país, máquina onipresente de metáforas políticas, religiosas, morais, filosóficas, sociais. Além, é claro, de produzir sozinho, sob o controle universal da Fifa, inacreditáveis montanhas de dinheiro e concomitantes falcatruas em valores que ultrapassam o PIB de muitos países.

Por que, então, chorar por Pelé? De onde veio o nó da minha garganta? Por que restou dele na minha cabeça uma imagem boa e positiva que vai além do talento em campo, enquanto que com outros grandes jogadores eu não gostaria de compartilhar nem um cafezinho? E – avançando na psicanálise caseira – por que a exposição pública desse nó me incomoda?

 

Pessoalmente, nunca vi Pelé jogar. Aliás, como milhares de brasileiros, frequentei muito pouco os estádios, na média uma ou duas vezes a cada três ou quatro anos. O conforto do sofá é cada vez mais irresistível. A vantagem dessa ausência conspícua é que, pela raridade, sou capaz de lembrar com nitidez de cada um dos jogos que assisti ao vivo, eventos marcantes como espetáculos de circo, da impressionante multidão em torno (um Maracanã lotado num jogo amistoso da Seleção Brasileira contra a antiga Alemanha Oriental, vitória de um a zero, gol do Junior, que perdi porque, esmagado num mar de vascaínos, estava amarrando o cordão do tênis quando aconteceu; ou Equador x Honduras, na Arena da Baixada, na Copa do Mundo, que vi, filmei e fotografei com o Felipe, dois a um para o Equador, gols de Valencia – um belo jogador, que aliás revi pela televisão na última Copa).

Obviamente, não era preciso ter visto Pelé ao vivo para amá-lo, admirá-lo ou idolatrá-lo. Parece que o nome de Pelé chegou ao meu imaginário antes mesmo de a simples ideia do futebol tomar corpo na minha cabeça de criança como o de um ser invencível, um Deus da perfeição, o atleta imbatível, um super-herói do país, num momento histórico – o final da década de 1950 – especialmente alegre e otimista, com o surto da prosperidade ocidental pós-Segunda Guerra que respingava no Brasil, criando uma nova classe média e começando a fazer a passagem sem volta da velha e bucólica vida rural para a urbanização selvagem e globalizante.

Com certeza os ecos do monumental triunfo de 1958 reverberavam na minha cabeça de criança absorvendo o mito, já envolto com a ironia subjacente da vitória mestiça, tropical, periférica e carnavalesca justamente na gelada Suécia e contra a Suécia (5 a 2!), um Estado perfeito em que tudo funciona, ao contrário da merda brasileira – diria qualquer conterrâneo com o seu realista complexo de vira-latas. Além disso, a Suécia onde Garrincha deixou um filho parecia também representar simbolicamente o Shangrilá louro do nosso mal-estar racial e seus renitentes sonhos purificadores, que parecem nunca sair de cena. Pois em 1958 fomos lá no Éden branco e – apenas como metáfora – matamos a pau. O mito Pelé, concretíssimo na vida real, um gênio, um sonho mundial, uma criança negra, um novo Brasil possível do sonho dos trópicos, estava plantado em todo o mundo. E mitos, desde que devidamente alimentados – e Pelé foi um assombro sem fim – se mantêm e se consolidam, quando então se tornam presenças atávicas e inexpugnáveis.

Até 1970, eu havia visto Pelé somente algumas poucas vezes na televisão, em alguns raros jogos dos tempos pré-videotape. Mas a sua imagem como mito absoluto do futebol – o jogador perfeito num time invencível – consolidou-se em definitivo na minha cabeça na Copa de 1970, que acompanhei inteira com os olhos pregados na televisão, como quem costura página a página um livro encadernado a ouro. Algum tempo depois, para reler a obra completa, ainda assisti no cinema o filme oficial da Fifa sobre a Copa, que achei uma droga quase ofensiva – pela narração dos gringos, parecia que a nossa seleção era só um coadjuvante no massacre futebolístico brasileiro, rodada a rodada; aos meus olhos, nenhum elogio seria suficiente para a altura do time.

Aquela seleção – e em especial aquele Pelé, que, eu diria hoje, parecia um artista conceitual do futebol, criando antes formas possíveis e eternas que realidades concretas e passageiras, como o quase gol do meio do campo (contra a então Tchecoslováquia), e o drible da vaca fantasma em Mazurkiewicz (contra o Uruguai) – gravou-se na minha cabeça como um paradigma perfeito do bom futebol. Hoje, cinquenta anos depois, tento entender meu bairrismo patriótico (ninguém joga futebol como o Brasil no mundo e Pelé é definitivamente imbatível, não me venham com comparações ridículas!), um sentimento poderoso que convivia com o horror à situação política. Lembro que, ao entrar na vida adulta, anulei o voto em protesto contra os “gorilas” da ditadura (foi um erro: deveria ter votado, com paciência democrática, no MDB, a oposição que restava). Isto é, eu ainda separava o futebol da política, o que não era especialmente fácil naqueles anos de trevas.

A imagem de Pelé se reforçaria para mim também pelas maravilhosas resenhas futebolísticas do noticiário do Canal 100, em preto e branco, que abriam as sessões de cinema – uma imagem agora literalmente gigante. No meio de patriotadas, desfiles cívicos e propagandas oficiais, o Canal 100 descrevia jogos com uma fantástica estética de campo, encaixando entre os lances do jogo e os gols espetaculares as caras desdentadas e angustiadas do povo espremido contra alambrados de ferro, o sorriso de madames elegantes na arquibancada, a imagem de torcedores em agonia com o radinho de pilha no ouvido, o gestual imperial de árbitros feito maestros de orquestra, tudo acompanhado por uma narração carismática e um embalo musical irresistível (Na cadência do samba), educando o olhar para a percepção do futebol como uma festa agônica e popular.

Minha última lembrança televisiva de Pelé – e por acaso eu estava em Santos –, é de agosto de 1973. Num Morumbi lotado, o célebre árbitro Armando Marques, teatral em cada gesto, comete um erro grosseiro na contagem da cobrança de pênaltis, depois de um suado empate sem gols no tempo normal e na prorrogação, e declara o Santos de Pelé campeão paulista antes da finalização das cobranças. Por uma esperteza da Portuguesa, que sumiu do estádio em minutos para evitar a retomada das cobranças, o erro vai parar no tapetão e a taça do campeonato é dividida entre os dois times (sem isso, só por um milagre milagríssimo o Santos deixaria de ser campeão).

No ano seguinte, o tricampeão do mundo Pelé não aceitaria voltar à seleção para disputar sua provável última Copa, uma estranha decisão, mas incrivelmente firme e corajosa – que jogador hoje recusaria a Seleção, mesmo que fosse apenas para marcar uma presença simbólica, o que de forma alguma seria o caso dele, ainda inteiro nos seus 34 anos? A recusa gerou críticas ácidas e ressentimentos duradouros. As críticas redobraram o veneno em 1975, quando Pelé foi contratado pelo New York Cosmos, um time de artifício criado com um balaio de estrelas mundiais para divulgar o futebol nos Estados Unidos.

No Cosmos, Pelé enfim ganhou milhões de dólares, praticamente mudando o patamar econômico mundial dos jogadores de futebol de alto nível e abrindo uma nova era profissional no esporte. No Brasil, onde poucos anos antes um jogador como Garrincha saía de casa e ia treinar pegando ônibus, a ostentação milionária daquele novo Pelé parecia uma ofensa moral ao país que, por puro egoísmo e ganância (diziam), ele recusara-se a defender na Copa de 1974.

O técnico era Zagallo; perdemos numa derrota de 2 a 0 contra a Holanda nas semifinais – lembro do comentário de João Saldanha na tevê sobre esse jogo, entre a fúria e o choro: “um time covarde”. Num levantamento de frases famosas de Pelé, em matéria do site do jornal O Globo, de 29 dezembro de 2022, ele teria dito (esclarecendo “o que muita gente não sabe”) que não jogou a Copa de 1974 “por desgosto em relação ao regime político do país. Era a época da ditadura.” Talvez a afirmação, para mim pouco verossímil, seja uma fantasia retrospectiva, mas é a palavra dele.

Se Pelé estivesse lá, na Copa jogada na Alemanha Ocidental, nós perderíamos? A sombra principalmente moral daquela ausência parecia curiosamente manchar não o jogador Pelé, mas o cidadão Edson Arantes do Nascimento. Era uma dicotomia que servia de álibi para todo brasileiro sempre que o endeusamento do atleta inegavelmente excepcional, e de uma relevância simbólica sem paralelo na história do país, esbarrava nos “defeitos” da pessoa, que não pareciam poucos e seriam sempre lembrados, às vezes com o dedo em riste. A crítica mudava um pouco de tonalidade de tempos em tempos, mas a sua constituição moral parecia vir antes de tudo, uma certa moral banhada de um misterioso ressentimento contra a diferença, a dificuldade de se conviver com o que se acha “que não está certo”, e o que “está certo” tem uma força excludente meio que, reprimida a custo no dia a dia , é capaz de explodir a qualquer momento, num processo mental punitivo pré-civilizatório que parece ser uma triste marca brasileira desde sempre.

 

Passei a vida ouvindo os defeitos do cidadão Edson – havia sempre a trava de um senão quando o assunto era Pelé. O primeiro deles parecia ser político, sob a pressão polarizadora da ditadura militar. Em 19 de novembro de 1969, quando Pelé fez oficialmente seu milésimo gol num jogo contra o Vasco, um acontecimento de repercussão mundial, e o dedicou – com uma ingenuidade ao mesmo tempo espontânea e realista – às crianças pobres do Brasil, seu gesto foi interpretado por muitos como demagogia barata. Há sempre algo de patético na exigência moral, intelectual ou política que se costuma fazer a jogadores de futebol, a maioria deles jovens de formação limitada e que viveram condições sociais limítrofes, subitamente lançados sob a luz de holofotes devoradores. Sobre os mil gols, eu me lembro da blasfêmia saborosa de Millôr Fernandes na época, em crônica no Pasquim, reivindicando “modestamente” suas cinco mil trepadas e duas bolas de ouro de prêmio – tento imaginar como seria recebido o seu texto hoje.

No caso de Pelé, a bolha política no momento dos mil gols era mesmo inescapável: o sobregolpe do AI-5 havia sido decretado onze meses antes, lacrando de vez o país numa ditadura militar que, embora legalmente encerrada com a Constituição de 1988, nunca foi de fato desatada no país. O substrato moral-punitivo que move o Brasil profundo (e que deu a figuras como Sergio Moro e Deltan Dallagnol, no comando de um processo juridicamente grotesco contra Lula, uma aura assustadora de heroísmo) parece conferir ao atavismo da farda uma inexplicável qualidade mítica. Por estranho descompasso histórico, atribui-se aos militares algum manto sagrado de “compreensão” dos desejos da nação, um ideário que parece mal ter entrado no século XX. Parece outro assunto, mas a mítica do futebol costura todos esses aspectos da vida brasileira, incapaz de absorver de fato, como um indispensável passo civilizatório, a ideia de um Estado laico em tudo que ele representa. Nesse panorama, não havia nada de mau em Pelé pedir atenção às crianças pobres. É uma pauta que continua perfeitamente atual.

Dos defeitos políticos aos defeitos morais – por exemplo, não reconhecer a filha Sandra Regina e processá-la mesmo depois de um teste de DNA que comprovava a paternidade, um caso rumoroso dos anos 1990 –, a figura difusa e problemática de Edson Arantes do Nascimento acompanhou a carreira do mito Pelé batendo em sua imagem sem de fato arranhá-la (é difícil achar defeito no incrível jogador Pelé), mas fornecendo uma boa sombra defensiva para o ato simples de generosidade de quem elogia. Até mesmo o namoro com a Xuxa mereceu críticas mais ou menos racistas, como as piadas feitas na ocasião. Assim como o puritano odeia a simples ideia de que alguém, em algum lugar do mundo, possa ser feliz (repetindo a frase de H. L. Mencken), o ressentido brasileiro sente calafrios com a mera imagem do sucesso de um conterrâneo. Estará o Brasil somando as duas qualidades, puritanismo e ressentimento, numa entidade só, células inseparáveis do DNA da nação? Basta ler a terra de ninguém das caixas de comentários da selvageria digital para perceber como a genialidade do Pelé quase sempre vem acompanhada da “canalhice” do Edson.

Bem, o julgamento moral é parte integrante e inescapável do dia a dia secreto das pessoas, pois é claro que nós julgamos em silêncio todo mundo o tempo todo, e é desse quadro confuso, pleno de complicações e ambiguidades, que orientamos a própria vida; todas as pessoas desenvolvem um eixo próprio de referência moral. Mas parece que no Brasil esse eixo transcende o território estritamente pessoal e intransferível, que é o lugar dele, para transbordar a uma espécie de Letra Coletiva da Lei, uma Voz da Verdade que, num crescendo agressivo de autolegitimidade, chega facilmente à histeria, ao autoritarismo e até à exclusão e morte por pauladas e tiros, o que se vê quase todos os dias no noticiário. Coloque-se também no tempero a incontrolável ética da vulgaridade como nítida expressão pública contemporânea. O fenômeno da internet potencializou, pela completa falta de filtros, essa quebra de fronteiras da reserva e da dignidade pessoais. Parece não haver mais tempo nem espaço de silêncio em lugar algum.

Para que não se diga que esse é apenas um fenômeno de iletrados ignorantes, veja-se a cobrança moral feita pelos mais tonitruantes colunistas e comentaristas da área dos esportes contra os jogadores Fulano, Beltrano e Sicrano que tiveram o desplante (não é ironia minha; o tom foi exatamente esse) de não comparecer ao funeral de Pelé. Em que sentido podemos condenar alguém por não comparecer a um velório? O trato da morte é um território pessoal difícil, imbricado com uma rede coletiva de valores familiares, religiosos e profissionais. Às vezes, a ausência em um velório é simplesmente um acidente prático da vida cotidiana. Às vezes, é um signo moral; às vezes, político. Lembremos os funerais no Kremlin, na era soviética: o comparecimento ou não de uma autoridade era um sinal poderoso no maquinário do poder, mas nesse caso o critério moral, como queria Maquiavel, estava completamente ausente do julgamento.

No caso do Pelé, parece que se leu mais informação pública sobre quem não foi ao velório do que sobre quem foi.  Já no velório do jogador Roberto Dinamite, morto no dia 8 de janeiro, uma manchete chegou a destacar que compareceram oito campeões que não haviam ido ao enterro do Pelé. O que isso quer dizer? São tantos aspectos delicados envolvidos que seria leviano tentar dar uma resposta em dois ou três palitos. Mas, como simples fato, o julgamento moral se sobressaiu sobre o que seria uma informação jornalística neutra. Como interpretá-lo? Em vários momentos a morte de Pelé parecia se transformar num gancho de maldizer, denunciando a canalhice e a hipocrisia generalizadas e o desprezo nacional pelo talento dos seus ídolos, até desembocar implicitamente no fato de que este seria mesmo um país de merda, para reduzir o desconforto em uma palavra universal redentora. É como se o espírito dos comentários das redes sociais tivesse invadido todas as esferas de compreensão do mundo. Mas resisto à tentação das simplificações. Nada mais ensaboado e traiçoeiro do que tentar definir um caráter nacional.

 

Vejamos a Argentina e o caso Maradona. Não quero afundar numa discussão sem saída sobre nossas diferenças. Por exemplo: os argentinos puseram na cadeia seus militares criminosos, que aqui jamais são punidos, viram deputados, vão com vantagens para a reserva remunerada etc. Em contrapartida, eles nunca tiveram um Plano Real sólido na economia, e sofrem crises intermináveis (inflação de mais de 90% em 2022), enquanto aqui há alguma estabilidade monetária, mesmo aos trancos e barrancos.

As comparações não teriam fim. Para sentir o contraste, mais por intuição ficcional do que por ciência, escolho de referência um belo filme argentino: O Caminho de San Diego (2006), de Carlos Sorin. O pano de fundo da história é um fato real que, perfeita letra de tango, fez praticamente a Argentina inteira sofrer de ansiedade e desespero, acompanhando o caso pela imprensa como a uma emergência nacional gravíssima: o internamento de Diego Maradona numa clínica em Buenos Aires, em 2004, depois de uma segunda crise cardíaca desencadeada por overdose de cocaína.

Enquanto isso, num lugarejo miserável e perdido da região de Misiones, um jovem pobre e analfabeto, fanático por Maradona, encontra uma raiz de árvore arrancada numa tempestade e tem uma epifania: ele vê nas formas retorcidas a imagem do ídolo, com dois tocos erguidos simulando braços. É um sinal divino que ele deve atender: entregar a imagem de presente ao próprio jogador. Faz da raiz uma estátua de traços primitivos, esculpindo o número 10 no que seriam as costas do gênio do futebol. O resultado lembra algum Cristo expressionista, mas, dependendo do ângulo, parece que o rosto sofrido é mesmo o de Maradona, o que quase todos em torno confirmam com algum assombro.

Não há ironia: o objeto merece respeito. E lá vai o jovem Tati Benítez, vestindo uma camisa 10 da seleção argentina, rota e suja, que ele nunca tira do corpo, entregar pessoalmente a seu ídolo aquela imagem tosca, mal embrulhada num plástico, numa longa viagem a Buenos Aires. O personagem é a representação perfeita do que seria, a olhos urbanos e desconfiados, o arquétipo de uma pureza popular verdadeiramente sagrada. Uma misteriosa empatia nos impede de enxergar ali apenas um retrato comum da ignorância ou da estupidez. Quase vemos o halo santificando o seu rosto quando ele sorri com alegre ingenuidade e mostra a estátua a quem pede para vê-la, sempre sob uma comoção respeitosa. Há mesmo quem queira comprá-la, pagando bem, o que o miserável Benítez obviamente recusa: a estátua será um presente a Maradona. Não tem preço. É uma fidelidade incondicional e inabalável ao seu ídolo.

O que chama a atenção é o fato de que em torno da turbulenta e espetacular internação de Maradona não transparece o mais remoto fiapo de julgamento moral. Isso será tarefa exclusiva do espectador, com opiniões próprias que no filme não se verbalizam. Mas por que deveria haver uma crítica moral contra Maradona? Bem, por certo senso da vida comum cotididana, que no mundo inteiro, em diferentes planos, costuma ser predominantemente conservadora ou por cultura religiosa ou por cultura cívica, pode-se afirmar que o Maradona cidadão não foi nenhum “bom exemplo”, exceto como signo de transgressão. O que, reconheça-se, na cultura fermentada nos últimos cinquenta ou sessenta anos, não é pouco.

O gol feito com a mão contra a Inglaterra em 1986, que ele mesmo declarou representar “la mano de Diós”, portanto acima do bem e do mal, é um motivo de orgulho argentino – e uma vingança simbólica, depois da monumental derrota para os ingleses na Guerra das Malvinas (em 1982), ainda fresca na memória. Em outra Copa, Maradona foi expulso da equipe, flagrado no antidoping. Para completar, obeso e cardíaco, era frequentemente internado por uma overdose de cocaína. Pode-se também estender a questão a seu lado politicamente “polêmico” (esta palavra a que amamos recorrer para disfarçar a coisa em si): amigo de Fidel Castro, ostentava uma vistosa tatuagem de Che Guevara no braço, dando-lhe uma atraente aura revolucionária mais ou menos juvenil, o que desde sempre representa muito na mitologia política latino-americana.

Ao contrário de Pelé, nada parece conciliador em Maradona. São aspectos do jogador, entretanto, ausentes da perspectiva do filme; trata-se de um mundo de referências que em nenhum ponto fazem parte do olhar de Tati Benítez, o jovem protagonista. Todo o sentido da história se extrai da impermeável pureza afetiva do torcedor, um fanático pacífico, sempre tocante e verossímil. O toque geral de santidade frisa-se ainda mais pela iconografia popular que identifica o ídolo com um santo, como se vê nos badulaques à venda numa feirinha religiosa de beira de estrada, entre uma boleia e outra do personagem.

Pois bem, a única exceção a essa ausência de julgamento moral é justamente o personagem brasileiro que funciona como contraponto narrativo, o simpático motorista de caminhão que num momento – depois de fingir recusa e fazer graça, dizendo que “Maradona não gosta do Brasil!” –, oferece carona ao nosso herói e o leva até Buenos Aires. Aqui Pelé entra uma única vez na história pela voz divertida do motorista, ao mesmo tempo conciliador e crítico, essa arte brasileira: “Eu não posso falar que Pelé é pior ou melhor que Maradona. Mas Pelé é um homem sério, é até ministro. Com Pelé não se passa vergonha. E Maradona? Quem é Maradona agora?”

A reação de Benitez será apenas um sorriso indecifrável, como se ouvisse grego – e em seguida pergunta o que o motorista leva no caminhão, mudando de assunto. Não se trata de uma crítica racionalizada aos supostos defeitos de Maradona, contrapostos às supostas qualidades do Pelé. É na verdade um padrão crítico estritamente moral: “Quem é Maradona agora?” Pouco depois, o motorista discorre sobre a parafernália de santos e orixás pendurados que enfeitam a cabine do caminhão como uma penteadeira feérica, e é nesse terreno mágico e fantástico que eles encontram um animado ponto em comum de conversa.

Volto ao meu nó na garganta e tento entendê-los, Pelé e o nó. De fato, na gravura pública, Pelé foi um bom menino. Ninguém consegue imaginá-lo reprovado no antidoping ou se vangloriando por fazer um gol de mão. Como lembrou orgulhosamente o motorista de caminhão do filme, foi até ministro de Estado! Acrescento que há uma lei com o nome dele, com impacto importante na estrutura jurídica do futebol do país. Num olhar simples, quase todas as suas declarações tinham natureza conciliadora, alguém que “passa pano”, usando uma expressão de hoje. Bem, lembro que o campeão do mundo Romário, hoje senador da República, disse em 2005 que Pelé calado era um poeta, ainda que se defendendo à sugestão do camisa 10 para que o vascaíno se aposentasse dos gramados. A metáfora se tornou mais uma das marcas divisórias a diferenciar o Pelé de Edson, e a internet está cheia de listas de frases provando que Romário teria razão. Hoje nada disso tem a menor importância; são pequenas anedotas, detalhes irrelevantes, mero pó da história de instantes passados.

Pelé jamais seria aqui o autêntico Deus em que a Argentina transformou Maradona – existe até mesmo uma “Igreja Maradoniana”, cujo tom levemente paródico não esconde a adoração pura e simples, que se recompensa plenamente em si mesma. No Brasil, contentamo-nos com o carnavalesco Rei. Mesmo considerando as ramificações sagradas implícitas no imaginário do nosso sincretismo, sabemos que um Rei tem defeitos. Há sempre algo de isopor pintado fazendo-se ouro na nossa imagem dos reis, do Carnaval à vida real.

Tirando as caricaturas de Pelé e de Edson que foram construindo sua imagem mesmo décadas depois de sua despedida em campo, resta a figura irredutível e mais ou menos inexplicável, resistente no tempo e sem limite no espaço, de um dos grandes gênios da nação brasileira. São contornos difusos, mas estranhamente familiares; alguém que foi muito além de seu estrito talento de esportista, tarefa em que espantosa e objetivamente revelou-se o maior de todos, aqui e no mundo.

Um gênio vai mais longe: no que faz, sintetiza um país, uma cultura, uma linguagem, e liga um passado a uma ideia de futuro. Tento suspender o julgamento apressado por alguns instantes, e observar Pelé com a intuição, a alma e alguma esperança: o Brasil está ali.

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