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    Lucas da Motta é residente em infectologia no Hospital São Paulo desde março de 2021 Foto: Lucas da Motta/arquivo pessoal

depoimento

Um hospital de referência onde falta de tudo

Médico residente no Hospital São Paulo relata como, diante do sucessivo corte de verbas federais, profissionais trabalham sem agulha nem medicamentos

Lucas da Motta Esteves | 05 ago 2021_14h30
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Em meio à pandemia e com mais de mil atendimentos diários, um hospital universitário de referência vive uma rotina em que falta o básico. É esse o quadro que Lucas Motta, médico residente em infectologia, enfrenta diariamente no Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É uma realidade bem distinta da idealização que o então recém-formado médico tinha da instituição quando foi aprovado no exame de residência do hospital, referência para tantos outros estudantes e para uma área de mais de 5 milhões de habitantes. O problema vem de alguns anos. Em 2016, no governo de Michel Temer, com a aprovação da emenda constitucional que congela os gastos públicos por 20 anos, o Hospital São Paulo recebeu o primeiro golpe; em 2017, com o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (Rehuf), o segundo, que fez sumir quase metade dos recursos destinados ao hospital todos os meses. Hoje, com a maior parte dos atendimentos realizados graças ao convênio do hospital com o SUS, Motta vivencia com tristeza o sucateamento da unidade. Enquanto isso, o Hospital São Paulo luta na Justiça para recuperar a verba perdida do governo federal – e, em seu site, pede doações de máscaras, álcool em gel, aventais e óculos de proteção para os profissionais de saúde da casa.

Em depoimento a Lianne Ceará

 

Sou médico residente em infectologia no Hospital São Paulo, o hospital universitário da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Eu me formei na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em 2020 e me mudei para São Paulo em março de 2021, quando comecei a residência no Hospital São Paulo. Na seleção dos programas de residência, a escolha entre a Unifesp e outros grandes centros daqui foi difícil, mas o nome e o reconhecimento da instituição sempre me atraíram. Sempre ouvia falar do corpo docente fantástico, das inúmeras pesquisas realizadas, do incentivo às ciências, das discussões acadêmicas, e tudo isso fazia meus olhos brilharem. Tudo isso de fato existe, mas, quando pisamos no hospital no primeiro dia da residência, somos esbofeteados por um choque de realidade.

Desde a minha primeira semana me deparei com a falta de coisas básicas: medicamentos, materiais, exames, equipamentos, leitos para os pacientes… Também faltam profissionais, falta um corpo clínico compatível com a demanda do hospital, fazendo com que os que estão lá se sobrecarreguem para cobrir essas lacunas. Não falo de exames e remédios de outro mundo, falo do básico pro funcionamento de um hospital terciário, o arroz com feijão. A maioria dos antibióticos, analgésicos, medicamentos para vômitos, anticoagulantes, corticoides, anticonvulsivantes, anti-hipertensivos, quimioterápicos, até mesmo soro já faltou, tudo falta. Há dias em que não podemos solicitar hemogramas, exames simples de urina, sorologias, exames para checar a função renal dos pacientes, para avaliar problemas na tireoide, simplesmente porque não tem reagentes. Ficamos às cegas para laudar o paciente. 

Sem falar nos dias que faltam materiais simples, como luvas estéreis, gazes, seringas, agulhas adequadas para determinados procedimentos, sondas, drenos… Trabalhar no Hospital São Paulo é se habituar a lidar com a surpresa: a cada dia em que entramos lá, não sabemos com o que vamos nos deparar. Já ficamos nos questionando qual medicamento vai faltar naquele dia, qual exame não vamos poder solicitar, se vai ter a dieta pros pacientes que dependem de sondas se alimentarem, se tem sonda naquele dia, se a máquina daquele dia está funcionando. Em diversas situações, indo totalmente contra as premissas do SUS, solicitamos pro acompanhante do paciente comprar, ou nós mesmos, médicos, vamos até a farmácia ou alguma loja de equipamentos médicos próxima para comprar do nosso próprio bolso medicamentos em falta que sabemos que são essenciais para a vida do paciente naquele momento. 

O Hospital São Paulo foi feito para suprir uma área de cerca de 5 milhões de habitantes, mas acaba recebendo pacientes de toda a Grande São Paulo e de outros municípios também. Em levantamento dos últimos anos, só no pronto-socorro, são em média de mil a 1,5 mil atendimentos diários. Além das internações, cirurgias, pacientes em quimioterapia, hemodiálise, coleta de exames, também há os atendimentos de urgência e emergência no pronto-socorro. Todos esses andares, todos esses setores demandam recursos. A imensa maioria dos casos são atendidos pelo SUS, mas há uma parte de atendimentos pelo setor privado, o que chamamos hoje de “dupla porta de acesso”. Apesar de estar ligado a uma universidade pública, o hospital é hoje chamado de uma instituição filantrópica de direito privado de propriedade da SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), que é a mantenedora. Às vezes acham que o hospital, por estar ligado à Universidade, é administrado diretamente pelo governo federal, mas, na verdade, ele é gerido por um conselho com representantes de várias entidades, dentre elas a Unifesp, as escolas paulistas de Medicina e Enfermagem e a SPDM.

Não é de hoje que o Hospital vem passando por uma crise financeira grave e, a cada mês, tem um déficit de milhões do que precisaria receber para o funcionamento que ele tem. Um dos grandes responsáveis por isso foi o congelamento, em 2017, das verbas do chamado Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (Rehuf). Essas verbas eram repassadas para todos os hospitais universitários que tinham gestão federal. No Hospital São Paulo, elas representavam quase metade do orçamento total. A partir do momento em que a SPDM, organização privada, entrou na jogada, o Ministério da Saúde entendeu que o hospital seria, a partir de então, uma organização filantrópica e não mais se configuraria como hospital universitário, ou seja, não teria mais direito a essa verba. Quando as verbas foram congeladas, o então ministro da Saúde do governo Temer, Ricardo Barros, inclusive falou que os protestos daqueles profissionais eram absurdos, que deveriam fazer a lição de casa, que aquilo não estava em discussão. 

O ministério se utilizou dessa dupla gestão que o hospital tinha e achou uma brecha para não fornecer mais essas verbas mas, naquele momento, essa dupla gestão era necessária para que ele sobrevivesse. Isso é completamente equivocado e ilegal porque o Hospital São Paulo é reconhecido pelo MEC como hospital federal, é um hospital universitário, não só de assistência como também de ensino, por isso ele tem direito legalmente a essas verbas. Isso ficou por anos na Justiça, e agora em julho ela determinou que essas verbas do Rehuf fossem repassadas ao hospital, inclusive as verbas retroativas, desde 2018. Mas o Ministério da Saúde ainda pode recorrer e, dado o histórico do governo passar esses anos todos sem repassar pro hospital, o medo é que eles recorram e acabem não repassando, ainda mais no contexto desse desgoverno. 

O corte de verbas do Rehuf é só parte do problema. A verba que o hospital recebe não é reajustada há muito tempo e isso faz parte da emenda constitucional 95/2016, que congela as despesas primárias da nação, incluindo a saúde pública, pelos próximos 20 anos. Isso ficou destacado na mídia por um tempo, mas foi esquecido. Aqui, todos os dias sofremos as consequências disso, contribuindo para que os hospitais fiquem sucateados e o sistema de saúde, precarizado. 

Em fevereiro deste ano, os residentes, estudantes das demais áreas da saúde e outros profissionais entraram em greve contra essa falta de insumos, contra essas condições precárias de trabalho e pela dignidade dos pacientes. A greve chegou a durar cerca de duas semanas, isso porque não teve apoio suficiente de algumas instituições mantenedoras do Hospital São Paulo e nenhuma das esferas do poder público, e também de muitos superiores dentro da própria escola. Ficou insustentável manter uma greve sem que ninguém vindo de cima comprasse essa briga também. As relações de poder são sempre assim: às vezes quando não temos o apoio de quem está acima, somos engolidos e obrigados a continuar da forma que está. 

Essa situação prejudica, sem sombra de dúvidas e acima de tudo, os pacientes, que não têm oferecido a eles o que é garantido como um direito de cidadania, mas também o ensino de Medicina dentro da instituição. Desde o começo da residência, lido com professores e colegas fantásticos, com uma carga de conhecimento gigantesca, mas às vezes acabamos aprendendo com o que tem e não com o que é o ideal; vamos nos automatizando a não fazer o certo, mas o disponível.

Em diversas ocasiões já tentei falar com meus colegas a respeito da situação, tentei buscar apoio para elaborar alguma medida, tentei cobrar algum posicionamento, tentei fazer denúncias anônimas, mas muitas vezes eu fui ignorado, muitas vezes era tachado de chato. A verdade é que, na maior parte do tempo, eu me senti sozinho. As pessoas lá dentro sabem dessa situação, mas a ação é sempre protelada, sinto uma inércia. A gente vai levando, vai aceitando, vai se adaptando, se acomodando, até o ponto em que as pessoas param de se questionar, de se impressionar com aquilo, passam a achar aquilo normal, param de se revoltar, e aquele caos se torna banal, cai no cotidiano. É a normalização do absurdo, e isso é grave, muito grave, principalmente para os pacientes. A situação atual do Hospital São Paulo é urgente, não tem mais tempo hábil para ninguém fechar os olhos pra isso. Esse é o meu desabafo, por trás de milhares de pacientes e de uma instituição que pedem socorro.

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