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    Foto: Acervo pessoal

depoimento

“Um livro me mostrou que era possível ocupar a casa grande”

Empresária do grupo Racionais MCs, Eliane Dias relata o impacto em sua vida do primeiro livro de Carolina de Jesus

Eliane Dias | 02 mar 2021_09h09
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A empresária Eliane Dias tinha 9 anos quando encontrou no lixo um exemplar do livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, da escritora Carolina Maria de Jesus. Moradora de favela e filha de mãe solteira, a menina perguntou quem poderia ajudá-la a entender as palavras. Disseram que quem entendia as palavras eram os advogados. Estudou, tornou-se advogada e ativista na luta pelos direitos das mulheres, contra o racismo e a homofobia. 

Publicado pela primeira vez em 1960, Quarto de despejo é baseado no diário de Carolina Maria de Jesus, uma catadora de papel que descreve o cotidiano triste e cruel da favela paulistana do Canindé nos anos 1950. O livro virou um best-seller traduzido para treze línguas, publicado em mais de quarenta países, e inspirou mulheres como a escritora franco-martinicana Françoise Ega, autora de Cartas a uma negra: Narrativa Antilhana, que a editora Todavia lança em 9/03. Carolina de Jesus morreu em 1977 e foi homenageada na última quinta-feira (25/02) com o título de doutora honoris causa pela UFRJ. 

Quarto de Despejo marcou gerações – entre elas, a de Eliane Dias. Empresária do grupo Racionais MCs, da carreira solo de seu marido, o rapper Mano Brown, e de outros artistas como Liniker, ela conta neste depoimento como o livro transformou sua vida:

(Em depoimento a Lia Hama)

 

Se hoje sou uma advogada, empreendedora, ativista e mãe de dois filhos que entraram na universidade, tudo começou com Carolina de Jesus. Ela deu um norte à minha vida. Em meados de 1977, eu era uma menina prestes a completar 9 anos que morava num barraco de madeira numa favela (hoje comunidade) no Parque Santa Amélia, Zona Sul de São Paulo. Minha mãe trabalhava como empregada doméstica e dormia no trabalho. Era mãe solteira e pagava um casal, Seu Juca e Dona Maria, para tomar conta de mim e das minhas irmãs. Às vezes saíamos com Seu Juca e sua carroça em busca de comida para os porcos que ele criava. Um dia, caminhando pela rua, brincando e segurando na carroça, vi um livro com a capa rasgada jogado no lixo. Era Quarto de Despejo.

Era comum as crianças da comunidade olharem o lixo, muitas vezes achávamos aquilo que não tínhamos em casa: um brinquedo, um chocolate, um enfeite. Havia uma fábrica na vizinhança que jogava fora um monte de chocolates. Não sei se os produtos estavam vencidos ou se os compradores não queriam mais. Mas a criançada subia naquele monte de doces e fazia uma farra. Às vezes eu ia também. Encontrar aquele livro, no entanto, foi melhor que comer doce: mostrou que é possível sair do quarto de despejo e ocupar a casa grande.

Aos quase 9 anos de idade eu ainda não havia aprendido a ler. Levei o livro para casa e perguntei a Dona Maria quem poderia me ajudar a entender as palavras. Ela, que também era analfabeta, respondeu: “Me disseram que quem entende as palavras são os advogados.” Naquele momento eu decidi: “Então quero ser advogada para entender as palavras.” Esse desejo ficou guardado dentro de mim por muitos anos. Naquele mesmo ano, comecei a ser alfabetizada na escola e nunca mais parei de estudar. 

Fui uma adolescente bem chatinha. Na ânsia de querer entender as palavras, eu lia dicionários. Gostava de um linguajar rebuscado, usava sinônimos difíceis, que as pessoas não entendiam. Às vezes me confundia e usava palavras fora de contexto. Depois aquela fase passou e voltei a falar de um jeito que todo mundo entende, como Carolina de Jesus. E continuei focada em entender as palavras.

Fui trabalhar para pagar meus estudos. Aos 15 anos, embalava chicletes numa fábrica da Q-Refres-Ko de manhã, e, à tarde, fazia curso técnico de secretariado. Aos 16, fui empregada doméstica na casa de uma psicóloga que era namorada do cantor Toquinho, a Maria Alice. Ela me estimulou a ler livros e a ouvir discos do Caetano Veloso e do Chico Buarque. Com ela aprendi que a mulher pode ser livre e fazer o que quiser. Casei, tive filhos e retomei os planos de virar advogada. Fiz cursinho do Núcleo de Consciência Negra da USP, prestei vestibular, entrei na faculdade de direito, me formei e passei no concurso da Ordem dos Advogados do Brasil. O diploma abriu portas, fui coordenadora do SOS Racismo (grupo dentro da Assembleia Legislativa de São Paulo de combate ao racismo) e passei a atuar como empresária do show business.

Nesse momento difícil de pandemia que vivemos, aqueles que podem ficam em casa, trabalhando, cuidando da saúde e dos que estão à sua volta. Sobrevivemos como podemos. Vivemos um dia de cada vez, sem conseguir visualizar ao certo o que vem pela frente. Não temos um governo federal que nos acolha e vivemos o caos na saúde pública. Tem muita gente desempregada, passando necessidade, voltamos ao mapa da fome. Os catadores de papel estão aos montes pelas ruas. Não está fácil para ninguém, mas Carolina de Jesus me ensinou a ser persistente. Ela levou anos até conseguir publicar o livro. Foi fazendo as coisas do jeito dela, sem saber direito aonde aquelas anotações no diário a iriam levar. Passou fome, batalhou para dar comida e educação para os filhos e se manteve firme escrevendo. Seu sonho e sua escrita a levaram longe.

Hoje o livro baseado naquelas anotações sobre o dia a dia na favela é um best-seller traduzido para treze línguas e publicado em mais de quarenta países. Inspirou mulheres de diversas nacionalidades. Carolina acaba de receber o título de doutora honoris causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Eu me apego à história dela e sei que as coisas vão melhorar. Não há mal que dure para sempre. A gente já passou por situações piores, enfrentamos uma ditadura militar que nos tirou liberdades fundamentais e matou muita gente. A persistência de Carolina de Jesus inspira a mim e a outras mulheres. Somos todas Carolinas.

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