minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

questões literárias

Um marujo francês no Rio imperial

Cartas escritas por Édouard Manet quando tinha 17 anos traçam um retrato mordaz do Brasil dos anos 1840

Luigi Mazza | 27 dez 2023_10h14
A+ A- A

Comprei o livro de presente para minha namorada e, mal-educado, comecei a ler antes dela. Eu não tinha particular interesse pela obra de Édouard Manet ou pela pintura francesa do século XIX, mas, fora o prefácio e o posfácio, o livro não trata disso. É um compilado de cartas que Manet escreveu para a família quando viajou ao Rio de Janeiro a bordo de um navio-escola. Tinha 17 anos, ainda não pintava, queria ser marinheiro – por isso a viagem. A bordo do navio, tinha aulas de matemática, jogava damas e aprendia sobre a vida de marujo. O trajeto até o Brasil dura cerca de quarenta dias, ao longo dos quais Manet faz observações banais, divertidas e frequentemente mal-humoradas sobre a vida no mar. 

As cartas foram compiladas em um livro pela primeira vez em 1928, e agora ganharam uma reedição pela editora Ercolano. O projeto gráfico, em tons marítimos, é muito bonito. Para o leitor, pouco importa que Manet seja Manet. O diário causa certo fascínio porque serve de janela para uma época que, embora não esteja tão distante assim, parecia ainda ser regulada por forças da tradição e do misticismo. O tempo é lento. As figuras do navio – o capitão, sr. Besson, “sempre bem educado e amável”; o imediato, “uma verdadeira besta, um lobo do mar”; os grumetes “encardidos” –, têm um ar romântico, fantasioso. A vida é permeada por todo tipo de formalidade: barcos pequenos devem, por cortesia, saudar os barcos maiores ao passar por eles (Manet recrimina um brigue espanhol que ignora essa etiqueta); os marujos se preocupam em pintar o navio antes de entrar na Baía de Guanabara, para que ele cause boa impressão; quando cruzam a linha do Equador, dão início a uma cerimônia de batismo fantástica, que envolve um astrólogo, um padre, um barbeiro, um camponês bretão e marujos interpretando o papel de Netuno e do diabo.

A viagem se inicia em dezembro de 1848, dez meses depois da revolução que destronou a monarquia francesa e pôs os burgueses no poder. O assunto aparece de vez em quando nas cartas de Manet, que, preocupado com a figura de Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão, escreve para seu primo Jules: “Por favor, só não vá me dizer que ele será nomeado imperador, isso seria bizarro demais.” Eu conto ou vocês contam?

O registro histórico de maior interesse, no entanto, trata do Rio. Manet, um adolescente de família rica, enfastiado com a rotina repetitiva da Marinha e cansado da viagem longuíssima, é pouco generoso ao descrever a cidade que encontra. Disso resulta um retrato caricato, engraçado para nós brasileiros. Os homens são descritos como “indolentes” e sem “muita energia”; e, segundo ele, “ninguém pode ser mais pudica e tola do que uma brasileira”.

Mas, em sua má vontade, Manet conseguiu captar o ar inegavelmente patético do Brasil imperial. Ele descreve as mulheres ricas que passam o dia escondidas em casa, invisíveis, sempre arrumadas, enquanto uma multidão de escravos vaga pelas ruas. Quando não está fazendo elogios protocolares às montanhas e à floresta, Manet é impiedoso. Sobre as igrejas, comenta que “tudo é dourado, tudo é iluminado, mas de mau gosto”; o palácio do imperador é “uma verdadeira biboca, uma coisa mesquinha”; e o exército brasileiro “não passa de algo cômico”. Por mais que possam conter pitadas de arrogância europeia, as espinafradas do jovem francês, distribuídas em frases curtas, resultam numa leitura prazerosa.

Confira aqui as demais dicas literárias da equipe da piauí.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí