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    Moreno entra na casa do pai, no Guarujá, pela primeira vez depois da enchente (Arquivo pessoal)

diário

Um mês debaixo d’água

Um casal de jornalistas conta sua rotina durante a enchente gaúcha

Marcela Donini e Moreno Osório, de Porto Alegre | 14 jul 2024_10h39
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Marcela para Moreno, às 12h13: “Como estão as coisas aí?”

Moreno para Marcela, às 12h14: “Meio tenso. Inundou a cozinha. Pai chamou a Defesa Civil pra tirar a Bita. A água entrou pelos fundos.”

Marcela, às 12h21: “Se demorar muito, pede uma ajuda alternativa. Já tem pescadores que estão retirando vizinhos de barco.”

Moreno, às 13h45: “A Bita acabou de ser retirada pelos bombeiros e as coisas dela foram pela caminhonete do Juarez.”

Essa troca de mensagens entre nós dois, os autores deste diário, aconteceu no dia 27 de setembro de 2023. Nunca antes a água do Guaíba tinha invadido a casa localizada no bairro Guarujá, a menos de 200 metros do lago, onde vivem o pai de Moreno, o jornalista Pedro Luiz da Silveira Osório, de 70 anos, e a sua mulher, a também jornalista Angela Beatriz Zydan Sória, a Bita, de 71 anos.

Dois dias antes, a Prefeitura de Porto Alegre tinha começado a fechar as comportas do Muro da Mauá, que compõem a barreira que protege o Centro Histórico contra cheias. O muro foi concebido depois da histórica enchente de 1941, quando o Guaíba chegou a 4,76 metros, inundando 15 mil casas e desalojando 70 mil pessoas. A estrutura só ficou pronta em 1974. Em 2015, foi utilizada pela primeira vez. Em setembro de 2023, teve que ser acionada novamente.

Apesar de todos os alertas sobre o aumento da frequência de eventos climáticos extremos, não poderíamos imaginar que, menos de um ano depois, viveríamos a maior cheia da história de Porto Alegre.

 

1º DE MAIO DE 2024, QUARTA-FEIRA_É Dia do Trabalhador e, apesar da forte chuva que cai em Porto Alegre, resolvemos aproveitar o feriado para visitar os pais de Marcela – Nadia Leal Donini, de 63 anos, e Edimilson do Amaral Donini, de 65 anos –, que moram no bairro São João, na Zona Norte. Chegamos lá no início da tarde, junto com nosso único filho, Santiago, de 7 anos. Pela janela do apartamento no terceiro andar, passamos o dia vigiando a chuva, que não deu trégua.

Durante o churrasco, chegamos a falar brevemente sobre a situação no Rio Grande do Sul, onde chove desde o fim de abril e já são registradas dez mortes e dezenas de bloqueios em rodovias. A casa estava cheia. Além de Fernando, irmão caçula de Marcela que mora com os pais, estavam também a irmã, Larissa, e sua filha, Eva, de 2 anos, além de um casal de amigos da família, Silvio Sodré e Cátia Cunha. Ouvimos alguns LPs, Santiago jogou videogame, Eva assistiu a dezenas de episódios de Peppa Pig. O dia se encaminhava para terminar como um feriado qualquer, até que, pouco depois das seis da tarde, a escola de Santiago enviou um comunicado suspendendo as aulas de amanhã. Eram quase oito da noite quando voltamos para nossa casa, um sobrado de dois pisos, no bairro Ipanema, na Zona Sul, a 300 metros do Rio Guaíba. Ainda chovia.

Por volta das 23 horas, com 114 municípios afetados pelas águas torrenciais, o governador Eduardo Leite (PSDB) decretou estado de calamidade pública. O Rio Taquari está 13 metros acima da cota de inundação na cidade de Estrela. A região do Vale do Taquari, onde 54 pessoas perderam a vida nas enchentes de setembro de 2023, passa por novo pesadelo.

 

2 DE MAIO, QUINTA-FEIRA_O Guaíba amanheceu acima dos 2,5 metros, índice de alerta no Centro Histórico. Às 7 horas, chegou a 2,67 metros. A tendência de alta levou a prefeitura a fechar as comportas do Muro da Mauá. Ouvimos no rádio que o Guaíba pode chegar a inéditos 4 metros, por isso foi disparado um alerta à população da parte baixa do Centro Histórico e dos bairros do Quarto Distrito, que são vizinhos, para que retirem veículos das ruas e busquem abrigo. “Será que a água vai chegar aqui em casa?”, nos perguntamos.

No início da tarde, o Guaíba superou a cota de inundação, de 3 metros, e avançou sobre o cais. A partir de então, passamos a contar as horas em centímetros, atentos à régua que mede a altura do lago no Cais Mauá. Em 1998, o até então Rio Guaíba passou a ser chamado de lago pelo governo do estado, classificação que permite afrouxar as restrições de construção à sua margem. Com o Guaíba tomando parte da área urbanizada da capital, o debate voltou à tona.

Bita e Pedro, o pai de Moreno, não esperaram a água se aproximar da sua casa para buscar abrigo. “Eu conheço bem o estado. Chove muito em outras regiões, é muita água. Vai vir tudo pra cá”, nos disse Pedro, que foi professor universitário e presidente da extinta Fundação Piratini, que controlava as emissoras públicas TVE e FM Cultura. Em duas oportunidades, ele percorreu grandes distâncias a cavalo pelo interior gaúcho. A primeira viagem, em março de 1980, resultou no livro Terra adentro (Arquipélago), lançado em 2006, em coautoria com Luiz Sérgio Metz e Tau Golin.

Quando o casal deixou a casa, por volta das 18 horas, o alagamento já se aproximava da calçada. De carro, eles foram para o apartamento de Claudia, irmã de Bita, no bairro Cristal, também na Zona Sul de Porto Alegre, mas a salvo do avanço da cheia. Levaram consigo uma pequena mala com roupas e tudo que era necessário para o bem-estar de Bita, que sofre de doença pulmonar obstrutiva crônica: o concentrador de oxigênio (aparelho com cerca de 10 kg que a ajuda a respirar) e dois cilindros de oxigênio (com 0,4 m³ e 1,5 m³, que juntos pesam cerca de 8 kg e garantem uma autonomia de mais ou menos 22 horas no caso de falta de energia). Um terceiro cilindro, com 3 m³, ficou para trás. Também levaram cerca de vinte medicamentos e, claro, a cuia e a bomba do mate. Ainda está por vir a catástrofe que vai impedir Pedro de começar seu dia às cinco da manhã sem quebrar o silêncio com o ronco do seu chimarrão.

Com Bita e Pedro, já são 14,8 mil pessoas fora de suas casas no Rio Grande do Sul. O número de mortos subiu para 32 e o de desaparecidos para 60. À tarde, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou pela primeira vez o estado desde o início das chuvas. De madrugada, a régua que media a altura do Guaíba foi levada pela correnteza. A última medição registrada ocorreu às 23h15. Apontava um nível de 3,69 metros.

 

3 DE MAIO, SEXTA-FEIRA_Bem cedo, antes das 7 horas, Pedro pediu a Moreno que fosse à casa do Guarujá retirar alguns objetos e resgatar Malzi, a cachorrinha da família. Moreno avisou seus alunos do curso de jornalismo da PUC-RS que não poderia dar a aula online daquela manhã e foi de carro até a casa de seu pai. Como o alagamento já impede a passagem de veículos de passeio, foi preciso estacionar em uma via lateral e percorrer cerca de 250 metros com água até o joelho. Na vizinhança, barcos retiravam pessoas com seus pertences.

Em frente às três portas da casa, Moreno deparou com barricadas de sacos de areia. Lá dentro, Tiago, um dos três filhos de Bita, que mora em outro endereço, passara a noite posicionando eletrodomésticos, documentos e livros em prateleiras mais altas. Moreno levou para o seu carro a cachorrinha Malzi, os computadores de mesa, um notebook e uma mala vermelha com papéis.

No caminho de volta para casa, viu que a praia em Ipanema, bairro onde moramos, havia sido engolida pelas águas. Acompanhamos, incrédulos, a série de eventos que foram se desenrolando ao longo do dia e deixaram evidente a falta de planejamento dos governos para enfrentar uma situação dessa gravidade, mesmo depois de o estado ter registrado 75 mortes relacionadas a eventos climáticos extremos em 2023.

Ainda de manhã, nos grupos de WhatsApp, começaram a pipocar imagens da rodoviária, no Centro Histórico, debaixo d’água. Um pouco depois do meio-dia, a prefeitura anunciou o rompimento da comporta nº 14, instalada a 3 km ao Norte do terminal rodoviário. O desastre provocou o alagamento do Quarto Distrito, antiga área industrial colada ao Centro e menina dos olhos da atual gestão municipal, que iniciou um processo de revitalização do local, sob críticas de parte da sociedade civil. As 346 pessoas que estavam acolhidas no abrigo provisório instalado pela prefeitura no Pepsi On Stage, uma casa de shows em frente ao Aeroporto Salgado Filho, tiveram de ser retiradas dali às pressas, por causa do risco de inundação.

Uma das seis estações de bombeamento responsáveis pela captação de água na cidade foi desligada, dando início a uma crise de desabastecimento na cidade. Além disso, a rede de esgoto pluvial inundou, fazendo as baratas abandonarem as tubulações e tomarem prédios históricos do Centro, como o Mercado Público, fechado desde as dez da manhã. Às cegas sobre o nível do rio e com a água tomando o coração da cidade, a prefeitura recomendou a evacuação da região central, decretando o fechamento do comércio.

No meio da tarde, uma nova régua foi instalada – agora na Usina do Gasômetro, a cerca de 2,5 km do equipamento original. Às 20h10, partiu o último voo do Salgado Filho, que teve as suas operações suspensas. Antes de o dia terminar, a régua apontou que o nível do Guaíba havia chegado a 4,80 metros, superando a marca de 4,76 metros de 1941, a maior cheia até então.

 

4 DE MAIO, SÁBADO_Às 10 horas, Pedro nos enviou fotos feitas por Tiago sobre a situação da casa no Guarujá. As imagens mostram que a água já invadiu o imóvel. “Acho que perdemos tudo. Não há mais nada a fazer”, escreveu Pedro, referindo-se a móveis e objetos que não puderam ser elevados a uma altura segura.

Almoçamos na casa da mãe de Moreno, Bernardete Melo da Cruz, a Bema, de 68 anos, onde Santiago tinha passado a noite. Ela mora com Jose Luiz Perachi Lajus, o Zeca, de 67 anos, seu companheiro há catorze anos, em um apartamento no 12º andar de um prédio entre o Centro Histórico e o bairro Praia de Belas. Fomos até lá de carro, costeando o Guaíba. O Parque Jaime Lerner – construído ao longo da orla do lago –, está debaixo d’água. No caminho, vimos um caminhão bombeando água para fora do estacionamento do subsolo de um shopping. No entorno do prédio dela, comerciantes montavam barricadas com sacos de areia.

Decidimos que o Santiago dormiria mais um dia na casa da avó, porque o Centro da cidade nos parece mais seguro do que nosso bairro. Na volta, vimos que a água já tomava a rua que fica atrás da nossa, onde dois vizinhos transitavam sobre pranchas de stand up. Um senhor careca, com a água quase na altura do joelho, puxava uma canoa com uma senhora de cabelos brancos, auxiliado por uma mulher mais jovem. Marcela ofereceu ajuda a um casal que aguardava o resgate dos pais da moça que estavam ilhados em casa. Cerca de uma hora mais tarde, os dois bateram à nossa porta, pedindo para usar o banheiro. O resgate ainda não tinha chegado.

Estávamos tensos com a possibilidade de que a água avançasse até o nosso terreno. Um mapa disponibilizado de manhã pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), indicava que, se o nível do Guaíba chegasse a 5,50 metros, a água alcançaria nosso endereço.

Moreno já tinha tentado comprar sacos de areia uns dias atrás, antecipando a necessidade de montar barricadas no nosso terreno, mas o produto estava esgotado nas lojas de construção da região. Conseguiu comprar apenas dois tubos de espuma expansiva, que poderiam fechar as frestas da porta da frente, se necessário. Depois de ver o mapa do IPH, fez, de cabeça, uma lista do que deveríamos subir para o segundo andar, caso o Guaíba chegasse ao nosso portão: alguns livros, os dois computadores de mesa, talvez o rack e a televisão. E recolheu os brinquedos do Santiago que estavam espalhados pelo chão da sala, colocando-os sobre a mesa de jantar.

Marcela terminou seu trabalho online no jornal Matinal e, às 21 horas, decidimos tentar relaxar. Um pouco depois, voltou a chover torrencialmente. Abrimos um vinho e ligamos a tevê para ver o show da Madonna em Copacabana. Em uma das mãos, segurávamos a taça. Na outra, o celular. Naquele momento, circulava nas redes e nos grupos de WhatsApp um outro mapa, produzido pela Defesa Civil do estado.

“Puta merda! Olha isso aqui”, disse Moreno. O documento era muito parecido com o do IPH, mas desconsiderava a topografia da cidade, indicando risco de inundação nas áreas mais altas, como a Praça da Matriz, onde fica a Catedral Metropolitana, a Assembleia Legislativa e o Piratini, sede do governo estadual. Não fazia nenhum sentido. Conhecemos bem a região, porque já moramos lá. “Impossível chegar lá em cima. A água teria de subir a Rua da Ladeira”, disse Marcela. Logo depois de olharmos o mapa, acabou a luz.

A solução foi ligar o radinho à pilha para economizar a bateria do celular. Nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais do governo do estado, o pânico era geral, a ponto de a Defesa Civil lançar um esclarecimento logo em seguida – que só aumentou o medo e a indignação. O novo comunicado basicamente dizia que as pessoas deveriam considerar a altura das áreas. Em bom gauchês: “Te vira.”

Às 23 horas, o Guaíba havia alcançado os 5,27 metros. Moreno enviou uma mensagem para sua mãe perguntando qual era a situação da água nos arredores do prédio dela. O alagamento estava aumentando e, temendo que o edifício ficasse ilhado, cogitamos ir buscar o Santiago. Como ainda chovia muito e várias áreas da cidade estavam sem luz, decidimos esperar o amanhecer. Por volta das duas da manhã de domingo, quando fomos dormir, o Guaíba estava em 5,30 metros.

 

5 DE MAIO, DOMINGO_O Sol apareceu de manhã e trouxe um pouco de alento para quem já está ficando traumatizado com o barulho da chuva. Mas o Guaíba continua subindo: às 5h30, registrou seu pico: 5,35 metros. Cerca de 70% da cidade está sem abastecimento de água. Nas nossas torneiras, a água chega com pouca pressão. Além disso, seguimos sem luz. Por volta das 7 horas, Moreno foi checar o avanço do alagamento na direção de nossa casa. A lâmina d’água estava a uns 50 metros de distância apenas.

Bema veio para nossa casa junto com Santiago porque a água está avançando na região de seu prédio e é provável que o local tenha que ser evacuado. Zeca preferiu ficar.

À tarde, Moreno ajudou a levar Bita para outro endereço, pois fazia 24 horas que a casa de Claudia, a irmã dela, não tinha luz, e os cilindros de oxigênio estavam chegando no limite. Munido de uma lanterna, Pedro iluminou o caminho para Moreno e Tiago descerem os sete andares de escada com Bita na cadeira de rodas. O casal foi para a casa de uma amiga, onde tem luz. Por segurança, Pedro encomendou um novo cilindro de oxigênio, mas a empresa informou que não pode garantir a data da entrega devido a dificuldades logísticas.

Em todo o estado, há 113 bloqueios totais ou parciais em 61 rodovias. Ontem, o prefeito Sebastião Melo (MDB) falou que enfrenta dificuldades para comprar tanques de oxigênio para os hospitais. Disse que os estoques podem terminar ainda hoje.

Ao final do dia, Bema decidiu voltar para casa, porque a inundação parece ter estabilizado no entorno do seu edifício. Fomos juntos para tomar um banho quente e carregar os celulares. Do 12º andar do edifício voltado para o Guaíba, vimos o pôr do sol, o primeiro depois de uma série de dias nublados e chuvosos. Os porto-alegrenses dizem que é o mais bonito do mundo.

 

6 DE MAIO, SEGUNDA-FEIRA_Às 9h28, Bema mandou a seguinte mensagem: “Já não dá pra sair do prédio de carro, as águas avançaram.” Nas fotos da câmera de segurança, não era possível identificar onde terminava a rua e começava a calçada. Moreno correu para buscar Bema e Zeca, que acabaram saindo do prédio com água pelas canelas e o aguardaram em uma esquina, a 300 metros de casa – o primeiro ponto seguro que encontraram. Levavam uma mala pequena com roupas.

A água avançava rapidamente em direção à Cidade Baixa, bairro contíguo ao Centro Histórico, por ruas que ficam a cerca de 2 km do Guaíba. Naquela manhã, o nível do rio oscilava entre 5,23 e 5,29 metros. O Menino Deus, bairro vizinho à Cidade Baixa, também registrava água saindo pelos bueiros e tomando vias importantes, como a Rua José de Alencar, onde fica o Hospital Mãe de Deus. Dois dias antes, o hospital já tinha fechado a emergência e transferido parte dos pacientes.

Nas redes sociais do município, não havia nenhum comunicado oficial sobre a situação, que parecia piorar minuto a minuto. Apenas às 14h36, a prefeitura publicou um vídeo no Instagram explicando que uma casa de bombas tinha sido desligada de manhã por medidas de segurança. Cinco horas depois que a mãe do Moreno percebeu que precisaria sair de seu prédio, o município finalmente recomendava que os moradores da região buscassem um lugar seguro.

Os pais de Marcela decidiram ir para Xangri-lá, no Litoral Norte, onde têm um apartamento. Aconselhamos Bema e Zeca a pegarem uma carona até Capão da Canoa, também na praia. Zeca tem um apartamento lá. Eles concordaram e, à tarde, Marcela os levou até o ponto de encontro com os pais dela. No caminho, passaram por enormes filas nos postos de combustíveis e carros rebocando lanchas e jet skis. O vice-prefeito, Ricardo Gomes (ex-PL, sem partido), havia pedido à população, em uma live, que colocasse suas embarcações à disposição dos resgates. Teve, porém, que desmentir o boato de que iria apreender os barcos sem documentação. “Isso é falso. Todos os barcos são bem-vindos para participar, salvar vidas”, disse Gomes, que é apresentador da Brasil Paralelo, produtora de vídeos de direita e extrema direita, alguns deles negacionistas, inclusive a respeito da emergência climática.

Uma das grandes operações de resgate de pessoas está sob o Viaduto José Eduardo Utzig, a poucos quarteirões de onde moram os pais de Marcela. Depois de deixar Bema e Zeca, ela decidiu ir ao viaduto a pé, atravessando uma avenida que escapara do aguaceiro. As ruas transversais estavam tomadas pelas águas e haviam se transformado em hidrovias. Em outra parte, pessoas caminhavam em fila indiana em meio à água, carregando mochilas e animais de estimação. Gritos soaram de um bote que chegava ao local: eram pedidos de ajuda médica. Algumas pessoas, ao pisarem no asfalto seco, choravam de alívio. Nas poucas áreas secas, caminhões do Exército e viaturas dos bombeiros dividiam o espaço com barcos e jet skis de voluntários, que aguardavam o momento de voltar à água.

A presença do poder público era visível, mas a massa de pessoas que está ajudando nos resgates e acolhimento das vítimas é formada por voluntários. Até hoje, mais de 8 mil pessoas foram resgatadas em toda Porto Alegre, segundo a Defesa Civil da capital. O vice-prefeito estima quase o dobro: cerca de 15 mil. O Rio Grande do Sul já registra 85 mortes, além de 134 desaparecidos e 153 mil desalojados.

Depois de deixar o viaduto, Marcela foi para a casa de sua irmã Larissa, no bairro Auxiliadora, em uma área central da cidade. Ela precisava trabalhar online, e na casa ainda havia luz, internet e até água.

Larissa e seu marido, Leonel, estão atuando como voluntários. À noite, ele chegou em casa com medicamentos de profilaxia para leptospirose. Havia caído de um barco puxado por um jet ski e afundou na água fétida. “Não dava para o jet ski andar rápido, porque faz onda, mas o piloto quis dar um pau, fez uma onda gigante e eu virei. Me fui, me fui de peixinho, com tudo, glup”, contou, com o bom humor de sempre. De todos os lugares por onde ele passou, a Vila Farrapos, na Zona Norte, é a mais alagada. Disse que por lá a água subiu tanto que, ao atravessar de barco uma rua, teve que tomar cuidado para não bater a cabeça no semáforo.

 

7 DE MAIO, TERÇA-FEIRA_O dia amanheceu com o Guaíba em 5,28 metros. Despertamos ainda sem luz, mas antes do meio-dia, ouvimos uma gritaria na vizinhança que parecia comemorar o título do Brasileirão, mas era porque, depois de três dias, a energia elétrica tinha finalmente voltado. O maior temor agora é a falta d’água. Os bairros centrais, que deveriam ser protegidos pelo sistema anticheias instalado ao longo da orla, seguem inundados, assim como outras partes da cidade. Paradoxalmente, 85% dos porto-alegrenses estão sem água.

Para sorte nossa, até agora, o abastecimento da região onde moramos ainda funciona, embora a água saia fraca das torneiras. É o suficiente para cozinhar, fazer a higiene pessoal e lavar a louça. Para economizar ao máximo, colocamos uma bacia na pia da cozinha e usamos nos vasos sanitários a água que limpou copos, pratos e talheres. Sem geladeira, levamos o que estava no freezer para a casa de um amigo que ainda tem luz e transferimos para uma caixa térmica com gelo os alimentos que precisam apenas de refrigeração.

No fim da manhã, Pedro enviou uma mensagem a Moreno, perguntando onde poderia encontrar água, pois, no apartamento onde ele e Bita estão as torneiras secaram. Nos supermercados, as garrafas de água praticamente sumiram das prateleiras e alguns estabelecimentos estão limitando as compras por cliente. Antes, uma garrafa de 1 litro e meio custava em torno de 3 reais. Agora, sai por 9,90 reais. A gasolina também começa a rarear – alguns postos da Zona Sul estão restringindo o abastecimento a 50 reais por cliente. “Vou dar uma passada por aí à tarde para encher uns galões com água”, escreveu Pedro.

Após dias e dias de chuva, começamos a notar que o pátio da nossa casa não tem a mesma capacidade de absorção. Basta voltar a chover para surgirem poças que nunca tinham aparecido, ou que só apareciam quando caía muita água em pouco tempo. O terreno estava encharcado, e crescia o medo de o Guaíba invadir nossa casa não mais pelo portão da frente, mas pelos ralos, como aconteceu na residência de Pedro e Bita, quando a água começou a brotar do rejunte do piso da cozinha.

 

10 DE MAIO, SEXTA-FEIRA_Os termômetros marcavam 13ºC pela manhã. No Centro, às 9 horas, o Guaíba estava em 4,73 metros. Na Zona Sul, o recuo da água era visível, e os vizinhos comemoravam nos grupos de WhatsApp. Mas a previsão é de muita chuva, e ficamos todos apreensivos com um repique no nível do rio. No começo da tarde, a previsão se confirmou, e a cidade registrou até o fim da noite mais de 40 mm de chuva.

Pedro e Bita se mudaram hoje para nossa casa. Trouxeram os equipamentos médicos e um galão de 5 litros de água. Eles estão agora na única suíte do sobrado, no segundo andar, que tem ainda dois dormitórios e um banheiro.

No bairro deles, com as casas alagadas, quarteirões inteiros desabitados e sem energia elétrica, a insegurança começa a preocupar. Dois homens foram contratados por vizinhos para fazer uma ronda noturna pela área. Em um caiaque, a dupla circula das seis da noite às seis da manhã pelas ruas engolidas pelo Guaíba.

 

12 DE MAIO, DOMINGO_Passamos o Dia das Mães longe das nossas, que seguem no litoral. Moreno não teve tempo de comprar presente para Marcela, mas fez o café da manhã e um cartão, escrito com a ajuda de Santiago: “FELIZ DIAS DAS MÃES porque tu é incrível todos os dias. Te amamos.”

Pedro presenteou Bita e Marcela com duas pequenas plantas suculentas. À tarde, Bita recebeu a visita de Tiago. Seus outros dois filhos não puderam vir por causa da tragédia no estado. Gabriela mora em São Paulo, e Lucas em Canoas, cidade tão afetada ou mais do que Porto Alegre.

Tiago trouxe bombons e agradeceu mais uma vez por abrigarmos sua mãe. Faz dois dias que Pedro e Bita estão morando conosco, e não há perspectiva de retorno para a casa no Guarujá. Na suíte onde estão instalados, já tínhamos uma cama de casal e uma cômoda, para eventuais hóspedes. Levamos ainda uma mesa, uma cadeira e uma poltrona que estavam guardados no depósito.

Com a mobilidade restrita, Bita não sai do quarto. Nos raros momentos em que a porta da suíte se abre, é possível ouvir o ruído constante do gerador de oxigênio, que dá dois estalos a cada 6 segundos, e da tevê nova que Pedro comprou para esse lar temporário. Acima de tudo, nós nos sentimos bem em poder acolhê-los com certa privacidade e conforto.

 

14 DE MAIO, TERÇA-FEIRA_Marcela foi levar algumas doações ao abrigo instalado na Associação Atlética Banco do Brasil, a 10 minutos de carro da nossa casa. Ao retornar, compartilhou com Moreno as impressões do lugar, que parecia bem organizado e já registrava redução no número de abrigados. Moreno disse se sentir angustiado porque gostaria de participar de ações voluntárias. Mas é difícil encontrar tempo, com a intensificação do trabalho de Marcela no jornal, a escola de Santiago fechada e uma nova dinâmica familiar em casa.

 

15 DE MAIO, QUARTA-FEIRA_“Nível do Guaíba aumentou 1 cm. Agora 5 horas e 22 minutos”, disse o apresentador de uma rádio local. “Não, 5 metros e 22 centímetros”, corrigiu o colega, aos risos. Eram 6h43 e já estávamos todos meio birutas.

Como faz todas as manhãs, Marcela ouviu o rádio para se atualizar antes de enviar a newsletter da Matinal, jornal digital do qual ela é editora-chefe. Desde 3 de maio, ela montou uma operação especial para a cobertura das enchentes – o boletim é enviado aos assinantes de segunda a sexta, sempre de manhã. A equipe tem trabalhado sem parar, inclusive aos sábados e domingos. Praticamente todos os jornalistas foram afetados pela enchente: quem não teve de sair de casa pelo avanço das águas, precisou buscar abrigo em algum momento porque ficou sem água ou sem luz.

Depois de enviar a newsletter de hoje, Marcela caiu no choro. Exausta, mandou a seguinte mensagem para o grupo de editores da redação: “Eu estou trabalhando de manhã, de tarde e de noite, onze, doze, quinze horas por dia. Fora a nova rotina na minha casa. Deito e não consigo dormir. Desculpem o desabafo, mas não dá mais.” Sua colega Sílvia Lisboa respondeu: “Estamos vivendo algo muito traumatizante. Tenta descansar hoje de manhã.”

Em vez disso, Marcela foi ao Centro Histórico, onde as ruas estão inundadas há quase duas semanas, para conferir tudo com os próprios olhos. Ela deixou o carro próximo à catedral e saiu a pé em direção à parte baixa do Centro. Caminhou até onde a água permitia. Chegou numa esquina da Rua dos Andradas, de onde era possível ver a Casa de Cultura Mario Quintana. Três homens vestidos com macacões de PVC caminhavam em direção ao prédio com água até o joelho. Foi também até perto da Praça da Alfândega e do Mercado Público, igualmente tomados pelas águas. Por fim, andou sobre uma barreira improvisada com grandes sacos de areia para chegar perto da Usina do Gasômetro. Um cheiro de podridão se espalhava pela paisagem desoladora e seu silêncio perturbador.

 

17 DE MAIO, SEXTA-FEIRA_A crise impôs um letramento hidráulico à população. Em poucos dias, aprendemos a diferença entre Ebab, a Estação de Bombeamento de Água Bruta, que capta água do Guaíba e bombeia até a ETA, a Estação de Tratamento de Água, e Ebap, a Estação de Bombeamento de Águas Pluviais, que drena o excesso da água da chuva e devolve para o Guaíba.

Também aprendemos, com Santiago, a soletrar Gyarados, Cinderace, Mewtwo, Wigglytuff e mais algumas dezenas de nomes de Pokémons. A escola está fechada há duas semanas. Ele já está familiarizado com a movimentação das cuidadoras e do fisioterapeuta que atendem Bita. E se sente feliz com a presença da Malzi, que também alegra o dia de Caramelo, nosso vira-lata. Mas em algum lugar na sua cabecinha reverbera a série de acontecimentos que alteraram a sua rotina e a vida da cidade. Santiago passou a acordar com frequência de madrugada, vai até nosso quarto e tem dificuldade para voltar a dormir. Outro dia, comentou: “Sonhei que a nossa casa tinha alagado. Mas consegui sair do universo dos pesadelos.”

 

19 DE MAIO, DOMINGO_Pela manhã, Moreno foi ao apartamento da mãe esvaziar e limpar a geladeira. Ao fugirem às pressas por causa da rápida elevação da água no dia 6, Bema e Zeca deixaram para trás a despensa cheia e o carro na garagem. Sorte é que a vaga fica no segundo piso. Os carros que permaneceram no térreo ficaram praticamente submersos. Na portaria, o alagamento chegou a quase 1,5 metro de altura.

Como a água baixou, o condomínio convocou os moradores a tirar o lixo dos seus apartamentos, mas recomendou que não voltem ainda. Desde ontem, estão sendo feitas revisões nos elevadores e nos sistemas elétrico e hidráulico. Também estão retirando o que restou da mobília do hall e outras áreas comuns.

Moreno subiu os doze andares pelas escadas, usando uma lanterna. Com a maioria dos 88 apartamentos vazios e às escuras, o lugar parecia um edifício fantasma. O único som nos corredores era o barulho das máquinas que drenavam o térreo. Não deu para salvar nada da geladeira.

Recebemos hoje um e-mail da companhia aérea cancelando nosso voo para o Rio de Janeiro em 13 de junho, quando iríamos conhecer nosso afilhado, João, que nasceu no dia 25 de abril. A mensagem diz que o Aeroporto Salgado Filho vai ficar fechado até agosto – um prazo que parece otimista demais, considerando o que estamos vivendo hoje.

À noite, Marcela foi buscar Santiago na casa de um amigo que mora a cinco quadras. Como estamos sem luz desde a madrugada, ela pediu à mãe do menino para tomar banho lá. A água segue fraca aqui em casa, mas é suficiente para garantir o banho – frio, pois nosso chuveiro é elétrico. A vizinha avisou que também está sem luz, mas seu chuveiro é a gás. Marcela não teve dúvida: se é para tomar banho no escuro, que ao menos seja quente.

 

20 DE MAIO, SEGUNDA-FEIRA_Depois de duas semanas suspensas, as aulas do Moreno voltaram hoje de manhã, ainda online. A PUC-RS teve grande parte da comunidade escolar afetada diretamente e transformou o seu parque esportivo em um abrigo para 250 pessoas, onde professores, estudantes e funcionários trabalham como voluntários.

No fim da manhã, a luz finalmente voltou.

 

23 DE MAIO, QUINTA-FEIRA_Choveu muito ao longo da madrugada. Por volta de três da manhã, ouvimos um estrondo na rua, e amanhecemos de novo sem luz. Às 9 horas, a energia elétrica foi restabelecida, em meia fase.

Depois de constatar que o nível do Guaíba estava caindo, Marcela foi à academia, numa tentativa ilusória de resgatar alguma rotina. Na volta, com a chuva já forte, ela passou por novos alagamentos no bairro e notou que a água avançava novamente. Mas dessa vez a situação era diferente: estava jorrando dos bueiros. Ao chegar em casa, encontrou Moreno já de olho nos ralos do pátio e do lavabo, no piso térreo.

Foi o início de um novo dia de pânico em Porto Alegre. Áreas que já haviam secado tiveram de ser evacuadas novamente. Moradores viram boiar o entulho formado por móveis e pertences destruídos pela inundação e que estavam sobre as calçadas por recomendação da prefeitura, que não tinha dado conta de recolher todo o lixo.

Marcela recebeu um vídeo mostrando a Rua Joaquim Nabuco, na Cidade Baixa, gravado pelo amigo e fotógrafo Bruno Dupon. As calçadas estavam tomadas pela água, que ameaçava invadir outra vez os edifícios. Bruno tinha sido resgatado no dia 7. Saiu com uma mochila enrolada numa sacola plástica, o cachorro e a gata. Colocou os bichos no bote, onde já estava uma senhora e seu filho, e ajudou a empurrar a embarcação com água na altura do peito. A filha e a mulher tinham saído um dia antes. Com o recuo da água, ele e sua família voltaram no dia 16. Assim como Bruno, centenas de pessoas foram pegas de surpresa com o avanço da água hoje.

Até um pouco antes das 13 horas, a única manifestação do governo tinha sido um vídeo, publicado no perfil do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) no X (antigo Twitter) , no qual o diretor do órgão, Mauricio Loss, e o coordenador da Defesa Civil Municipal, coronel Evaldo Rodrigues de Oliveira Júnior, falam em alerta apenas para os bairros Menino Deus e Cidade Baixa e orientam a população a monitorar e buscar abrigo, se necessário. Mais uma vez o poder público terceirizou para os moradores a decisão sobre evacuar ou não.

Na postagem, a prefeitura disse que o volume de precipitação foi “além do que os modelos previam”. De novo, pipocaram comentários indignados. Desde a semana passada há alertas sobre chuvas intensas para várias regiões do estado, inclusive a capital. Além disso, o município está ciente da sobrecarga da rede de escoamento, que, afinal, é o que explica a água jorrar pelos bueiros em diversas regiões da cidade. E mais: apenas 9 das 23 casas de bombas, que deveriam devolver o excesso de chuvas para o lago, estão em operação.

Às 15 horas, o prefeito se manifestou. Na companhia de Loss, em uma coletiva, reforçou a tese do excesso de precipitação. Não era a primeira vez que Melo culpa a chuva pelos transtornos vividos na capital desde que o Guaíba transbordou, narrativa que ele vem alternando com a crítica ao sistema anticheias. Especialistas, porém, dizem que Melo negligenciou a manutenção da estrutura de proteção, que tem 68 km de extensão e conta ainda com diques. A água do Guaíba nunca ultrapassou os 3 metros de altura do Muro da Mauá, mas invadiu a cidade por frestas nas comportas do muro, além de ter havido o rompimento do portão 14, no início do mês, e falhas nas casas de bombas.

No dia 14 de maio, um grupo formado por ex-diretores do Dmae e do extinto Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), entre outros, divulgou um manifesto em que defende o sistema, “robusto, eficiente e fácil de operar e manter”, mas que não está funcionando adequadamente por falta de manutenção, que é responsabilidade da prefeitura. Em 10 de maio, a Matinal publicou uma reportagem sobre um pedido de conserto da casa de bombas, em 2018, que poderia ter evitado a inundação no Centro. O conserto, que custaria na época 60 mil reais, nunca foi realizado. Depois, vieram a público outros documentos que também apontam para a negligência do município.

Com tudo isso, a hashtag #FORAMELO ganhou força nas redes sociais ao longo do mês. Hoje, no fim da tarde, a Câmara Municipal de Porto Alegre informou que foi protocolado um pedido de impeachment do prefeito.

 

24 DE MAIO, SEXTA-FEIRA_Depois do caos de ontem e diante da previsão de mais chuva, Melo determinou outra vez a suspensão das aulas. A escola de Santiago, entretanto, não chegou a reabrir, porque as ruas do entorno ainda estão bloqueadas pela água. A escola fica na zona rural da cidade, tem bastante verde e pouco concreto. Quando o levamos até lá, já estamos acostumados a pisar no barro e desviar do cocô do Luar, o cavalo que vive no local. Faz parte do uniforme escolar um par de galochas para trilhas.

Marcela procurou nas lojas um par de botas de borracha com seu número, mas não encontrou.

A previsão é de que a escola reabra no próximo dia 29.

 

29 DE MAIO, QUARTA-FEIRA_Antes da tragédia no estado, Moreno costumava sair por volta das 7 horas para levar Santiago à escola. Como era preciso fazer um novo caminho para evitar as vias ainda alagadas, os dois saíram antes. O trajeto que normalmente leva 15 minutos de carro foi feito em 25.

Ao chegar na esquina da rua da escola, de chão batido, viram que, a partir dali, só seguiam carros SUV. Santiago teve então que tomar o ônibus disponibilizado pela escola para levar as crianças da esquina ainda seca até a entrada, a 850 metros.

Os vereadores rejeitaram a abertura de impeachment do prefeito.

 

31 DE MAIO, SEXTA-FEIRA_Pedro e Moreno conseguiram entrar na casa do Guarujá, vestidos com galochas e macacões de PVC, que protegem contra as impurezas da água. Eles estacionaram o carro em uma rua transversal, porque nas vias de acesso ao endereço a água ainda batia no joelho. Em frente ao imóvel, a água estava um pouco acima do meio-fio. Ao abrir o portão, Moreno e o pai tiraram uma selfie com a casa ao fundo. O momento pedia o registro. Não para as redes sociais, mas para construir a memória da família a respeito desse acontecimento histórico – para nós e para a cidade.

A casa térrea tem dois quartos, escritório e uma sala integrada à cozinha. Nos fundos do terreno, uma edícula conta com churrasqueira e depósito. Entre as duas construções, o pátio abriga a casinha da Malzi, um limoeiro e uma goiabeira.

Depois de quatro semanas de alagamento, as plantas mais baixas da varanda haviam morrido. O pé de limão bergamota, com 2 metros de altura, tinha metade da copa tingida de marrom. Os limões amarelos e maduros nos galhos mais altos contrastavam com os frutos podres e acinzentados nos galhos inferiores. Na fachada amarela e na porta branca, a lama tinha deixado rastros de diferentes tons terrosos. A água chegou até perto da maçaneta. Em uma das laterais da casa, um ursinho de pelúcia jazia submerso na lâmina d’água que restava nas áreas externas.

Assim que Pedro e Moreno entraram na casa principal pela porta dos fundos, foram impactados pelo mau cheiro. Era o odor do mofo, dos tecidos encharcados e dos alimentos em decomposição. Na cozinha, a geladeira estava tombada no chão coberto de lodo. A mesa ficara de pé, mas não no lugar onde costumava estar. No fogão, duas chaleiras e uma garrafa térmica caída indicavam que o último mate foi feito um pouco antes da evacuação.

Foi como estar dentro de uma caverna. A umidade era tanta que a água condensou no teto e, de vez em quando, pingos gelados caíam sobre suas cabeças. Em alguns pontos, o Guaíba desenhou uma linha reta perfeita entre a parte submersa e a que ficou acima da água – marrom embaixo e branco, com marcas de mofo, em cima. Em outras áreas, o resultado da água invasora era uma espécie de arte abstrata, com diferentes texturas produzidas em tons terrosos.

Na sala de jantar e estar, sofás estavam virados, poltronas se amontavam em cima de sofás, mesinhas haviam parado sobre as bancadas, por toda parte havia objetos espalhados. O piano de Bita, um Fritz Dobbert modelo vertical acústico, não ficou totalmente submerso, mas a água conseguiu alcançar as 88 teclas. Cerca de 400 dos mais de 2 mil livros de Pedro e Bita estavam molhados ou mofados. Parte dos volumes sobre jornalismo e comunicação social, adquiridos ao longo de quase três décadas de sala de aula, também estavam imprestáveis, bem como os livros do uruguaio Mario Benedetti, um dos autores preferidos de Bita. Cientes das perdas, amigos têm se colocado à disposição do casal para repor os títulos destruídos pela cheia.

Os apetrechos de Pedro para cavalgar também estavam em mau estado, mas ele já avisou no Facebook que não pretende descartá-los: “Esses arreios, afrontados pela enchente, não vou abandoná-los. Por duas vezes cruzaram o Rio Grande comigo. Jornadas por conta e risco, sem combinações prévias ou apoio logístico. Com irmãos de alma e de vida. E nossos cavalos, nossos cachorros.”

Em uma das paredes da edícula, a dupla encontrou, intactos, um mapa que exibe a topografia de Porto Alegre e o pôster da primeira edição do Fórum Social Mundial, evento que fez os olhos do mundo se voltarem para a capital gaúcha no início do século XXI. Estampado no cartaz, está o slogan “Um outro mundo é possível”. A frase hoje carece de um ponto de interrogação.

 

3 DE JUNHO, SEGUNDA-FEIRA_Dois dias depois de ter baixado da cota de inundação pela primeira vez, o Guaíba teve um novo repique. A chuva e o vento provocaram novos alagamentos em bairros da Zona Sul e da área central. Até na rodoviária, que está na fase de limpeza, entrou água de novo. Mesmo assim, foi possível liberar o trânsito nas principais vias do Centro Histórico, que estavam bloqueadas há um mês.

No fim do dia, o nível do Guaíba voltou para baixo do patamar de inundação, com perspectiva de seguir em queda. Quanto mais recua a água, mais lama e lixo aparecem pelas ruas da cidade – um sinal de que Porto Alegre não será a mesma por um bom tempo, ou talvez nunca mais. Em todo o Rio Grande do Sul, morreram até agora 172 pessoas em decorrência das enchentes. Quase de 580 mil pessoas estão fora de casa, em abrigos ou casas de parentes. Muitos sem perspectiva de voltar, como Pedro e Bita.

Hoje, Moreno completa 42 anos, grato pelo privilégio de poder celebrar com a casa seca e a família em segurança. Marcela, enfim, encontrou um par de galochas do seu número.

A previsão para os próximos dez dias é de tempo seco.

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