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Um mundo meio embaçado

Documentário sobre a cantora Billie Eilish explora a tristeza de ser adolescente nestes tempos sombrios

Eduardo Escorel | 26 jan 2022_09h01
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A recente controvérsia sobre a direção do nosso olhar – se devemos olhar para cima, para baixo, para os lados – continuou viva na semana passada, alimentada por um artigo escrito no jornal O Globo pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. No texto, ele afirma que o eleitor brasileiro olhará para cima em outubro e, ao pensar no dia seguinte à eleição, “não optará pelo cometa PT”. Adam McKay, diretor do filme Não Olhe Para Cima, não tardou a reagir no Twitter: “Só para ficar claro, Bolsonaro com toda certeza diria às pessoas para não olhar para cima. Sem dúvida.”

“Macaco, olha o teu rabo” – seria o caso de acrescentar à resposta. Por conveniência política, Nogueira tenta esconder o fato de que, em outubro de 2018, o Brasil foi atingido por um asteroide cujo impacto destruidor, causado por milhões de eleitores incapazes de olhar para cima, persiste ainda hoje. Não deveria ser preciso mencionar as várias tragédias de responsabilidade do desgoverno federal, do qual o ministro se tornou um dos integrantes mais poderosos. Basta lembrar que o número de mortes causadas pela Covid passou de 623 mil até agora e a média móvel de óbitos nesse começo de ano está em alta.

Contribuição ao debate mais sensata foi dada pelo jornalista Rodrigo V Cunha, no mesmo jornal O Globo. Com boa dose de idealismo, ele escreveu: “… só negacionistas não enxergam que nossa existência neste planeta está em risco. A esperança de um futuro mais bem distribuído para todas e todos reside numa versão melhor de seres humanos. Isso está ao nosso alcance. Falhar nessa missão significa que não teremos aprendido nada… Neste caso, não basta olhar para cima, é preciso olhar para os lados também.”

A dificuldade de olhar na direção certa e ver o que se aproxima não é exclusiva de brasileiras e brasileiros, a julgar pelo verso da canção de Billie Eilish e seu irmão Finneas Baird incluído no título do documentário Billie Eilish: The World’s A Little Blurry. O filme sobre a cantora americana, dirigido por R.J. Cutler, está entre os quinze semifinalistas na disputa para ser indicado ao Oscar.

Billie Eilish com seus prêmios no Grammy 2020 – Foto: Getty Images

 

A estrofe de Ilomilo que contém o verso em questão nos diz: “Hurry, I’m worried/The world’s a little blurry/Or maybe it’s my eyes/The friends I’ve had to bury/They keep me up at night” (“Depressa, estou preocupada/o mundo está meio embaçado/ou talvez sejam meus olhos/Os amigos que precisei enterrar/Eles me deixam acordada à noite…”).

Mundo embaçado ou deficiência da visão, além de amigos enterrados, integram o universo depressivo das letras da dupla, centrado em tristeza, solidão, perdas, carências, pressão – temas dominantes que não impediram, e sim impulsionaram a fulminante trajetória que tornou Billie ídolo de milhões de adolescentes em âmbito mundial (a estreia ao vivo do documentário, em fevereiro de 2021, teve mais de 4 milhões de visualizações no YouTube). É esse percurso que o filme acompanha, culminando na cerimônia do Grammy, em janeiro de 2020, quando Billie e Finneas receberam, ao todo, seis prêmios. Ela  venceu cinco das principais categorias: Gravação do Ano, Álbum do Ano, Canção do Ano (Bad Guy), Artista Revelação e Álbum Pop Vocal; seu irmão recebeu um prêmio como engenheiro de som.

O clímax da gravação do documentário de Cutler ocorre, portanto, menos de dois meses antes de a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar que o surto de Covid era uma pandemia. Gravado no final da era a.P. (antes da Pandemia), ao ser visto agora, em plena disseminação da variante Ômicron, Billie Eilish: The World’s A Little Blurry causa certo incômodo. A falta de referência à crise sanitária torna o documentário meio irreal, como se estivesse registrando um mundo e um modo de vida fantasiosos. A realidade registrada parece mais remota do que é de fato, pois a carreira bem-sucedida e as apresentações extravagantes de Billie prosseguiram desde então (ela interpretou, por exemplo, No Time to Die, canção que compôs com Finneas para a trilha musical do mais recente filme de James Bond; num evento de divulgação do álbum Happier Than Ever, em outubro de 2021, Billie foi gravada cantando acompanhada por Finneas ao violão e um baterista no terraço do Hotel Roosevelt, em Hollywood, com muita fumaça e iluminação elaborada).

Cutler ressalta no documentário o sofrimento físico e mental associado a um sucesso da dimensão alcançada por Billie. Mas a cantora já fez questão de esclarecer, numa entrevista ao CBS This Morning em janeiro de 2020 (não incluída no documentário): “Ninguém que me conhece acha que eu sou uma pessoa dark.” O título do seu mais recente álbum – Happier Than Ever (Mais feliz que nunca) –, no entanto, não deve iludir ninguém. O verso anterior ao que intitula a música é “When I’m away from you” (Quando estou longe de você).

Billie começou a fazer grande sucesso aos 15 anos e foi consagrada com os Grammy no final da adolescência, quando tinha apenas 18. Nesse período, compôs olhando para si mesma e cantou para sua própria geração. A sequência-chave do filme talvez seja o breve comentário de Maggie Baird, mãe de Billie, gravado no quintal da casa de classe média da família, em Los Angeles, onde a star continuava a viver. No início da segunda metade de Billie Eilish: The World’s A Little Blurry (aos 77’ dos 141 minutos de sua duração total), Maggie diz: “É um tempo difícil para adolescentes. […] Há muito com o que ficar deprimido. […] Você está frente à possível destruição do planeta [sorriso nervoso]. Você está em um clima político aterrador, um clima racista, cheio de ódio. É uma época horrível para ser adolescente… Os jovens estão deprimidos. É uma era assustadora.”

Maggie, assim como Patrick O’Connell, pai de Billie, formam com Finneas o esteio familiar que o documentário mostra ter sido indispensável para o êxito assombroso da compositora e intérprete. O filme está disponível no serviço de streaming Apple TV +.

*

Marighella em questão.

Recebi no fim de semana passado um e-mail (transcrito abaixo) de Helvécio Ratton, cineasta que dirigiu, entre outros filmes, Batismo de Sangue (2006), baseado no livro homônimo de Frei Betto. Disse Ratton:

“Finalmente assisti a Marighella [filme dirigido por Wagner Moura, baseado no livro de Mário Magalhães]. O filme tem alguns pontos de contato com o Batismo de Sangue, mas tem uma cena fundamental narrada de forma muito diferente: a morte de Marighella.

No meu filme, Marighella cai na emboscada armada por Fleury na Alameda Casa Branca e é assassinado ao atravessar a rua na direção do fusca onde estavam os frades Fernando e Ivo. Marighella estava sozinho e não reagiu. Todos os tiros foram dados pelos próprios policiais, num fogo cruzado que matou uma delegada e feriu um policial. No Batismo de Sangue, os agentes carregam o corpo de Marighella e o colocam dentro do fusca. Era interesse da ditadura desmoralizar os frades, mostrá-los como traidores que haviam entregado seu líder, e, com isso, atingir setores da Igreja Católica que se posicionavam contra o regime militar.

A versão da morte do Marighella que filmei está no livro do Frei Betto e nos depoimentos dos freis Fernando e Ivo, que ouvi pessoalmente antes de rodar o filme. A versão gravada por Wagner Moura contradiz o testemunho dos frades e é mais próxima à versão oficial, divulgada pela ditadura, de que Marighella teria sido morto dentro do fusca. Ainda segundo essa versão, a morte da delegada e o ferimento no policial seriam resultado do tiroteio entre agentes e “terroristas”, algo que nunca aconteceu.

Achei que essa contradição entre os dois filmes poderia lhe interessar. Há alguns fatos e personagens de nossa história recente que ainda permanecem obscuros e nosso cinema tem procurado lançar sua luz sobre eles. Mas, como podemos constatar mais uma vez, uma mesma história pode ser narrada de diferentes pontos de vista…”

Comentei Marighella duas vezes no site da piauí: a primeira, em 18 setembro de 2019, a segunda, em 17 de novembro de 2021. Nessas ocasiões, não atentei para a divergência entre os relatos de Batismo de Sangue e de Marighella. Foi falha minha não ter comentado a diferença entre o relato de Frei Betto e a encenação da morte do guerrilheiro feita no filme de Wagner Moura, conforme indicou Ratton. Fica aqui o registro, ainda que tardio.

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