Ilustração: Carvall
Um país na contramão
Contrariando o receituário internacional para reduzir mortes no trânsito, Brasil dificulta cada vez mais a fiscalização e a punição de infrações
Imagine que o ministro dos Transportes de um país qualquer receba em audiência um engenheiro muito conhecido por sua competência e capacidade de inovação. Na conversa, o tal engenheiro apresenta um veículo absolutamente revolucionário: barato, não poluente, fácil de dirigir. Ao final do encontro, o inventor acrescenta o que considera um “detalhe”: sua estimativa é de que 1,3 milhão de pessoas serão mortas por ano caso o novo modelo passe a transitar pelas ruas, e outras milhões ficarão com sequelas para o resto da vida. A não ser que o ministro se revele, assim como o engenheiro, um sociopata cruel e perigoso, a proposta será imediatamente classificada como “criminosa” – e seu proponente acabará expulso da sala de reunião sem qualquer delicadeza. Alguma dúvida?
Na teoria, ninguém de bom senso aceitaria uma solução de transporte que provocasse tantas desgraças. Na prática, entretanto, é o que temos feito como sociedade: aceitamos, passivamente, que o trânsito continue matando e mutilando milhões de pessoas, quando não lhes impõem sequelas, todos os dias, meses e anos pelos quatro cantos do planeta.
Por que somos tão lenientes nesse assunto? Por que seguimos, por exemplo, tolerando motoristas alcoolizados? Recentemente, em São Paulo, dois motoristas bêbados mataram dois ciclistas que estavam apenas buscando se deslocar ou se exercitar utilizando o meio de locomoção mais eficiente, democrático e sustentável que existe. O que aconteceu com ambos os motoristas? Foram levados à delegacia, detidos por algumas horas e postos em liberdade. A polícia, como tradicionalmente faz nesses casos, indicia os motoristas por homicídio culposo, cuja pena resultará em quase nenhuma privação para quem ceifou a vida de alguém.
Desde que comecei a trabalhar na área de mobilidade urbana – lá se vão 20 anos –, nunca consegui entender a leniência das autoridades, das normas, e, sobretudo, do conjunto da população com a (in)segurança no trânsito. Todos nós somos vítimas em potencial de quem bebe e sai dirigindo. Nossos filhos podem morrer numa calçada, em cima de uma bicicleta ou dentro de um carro. O risco é real, presente, alto. No entanto, seguimos inertes diante de tanta tragédia.
A eliminação das mortes no trânsito é possível. Os países ricos detêm 40% da frota mundial de veículos, porém contribuem com apenas 7% dos óbitos. Já os países de renda média e baixa, somam 60% do total da frota mundial e acumulam 93% das mortes no trânsito. (No Brasil, temos cerca de 40 mil mortos no trânsito, o equivalente a cerca de 20 mortes por 100 mil habitantes). Esses dados evidenciam que a qualidade das políticas públicas executadas nas nações ricas, o rigor e a intolerância com os crimes de trânsito – e a consciência social do seu risco – produzem resultados muito eficientes.
Por aqui, contudo, seguimos contrariando as recomendações das melhores práticas internacionais. Faz pouco tempo que uma alteração na legislação brasileira e na sua regulamentação reduziu a capacidade de fiscalização do Estado. Radares agora têm muito mais dificuldade para serem instalados (registre-se que na cidade de São Paulo a maior redução que já se obteve no número de mortos no trânsito ocorreu justamente no ano de 1997, quando esses equipamentos foram implementados); infratores precisam acumular maior número de pontos para que suas carteiras de habilitação sejam suspensas; e infrações sérias foram desclassificadas, sendo hoje tratadas como menos graves.
No que diz respeito à política de segurança viária, estamos trafegando em alta velocidade, sem cinto de segurança e na contramão.
Muito poderia ser feito se criássemos uma consciência coletiva que rejeitasse por completo a carnificina do trânsito. Vou listar e comentar a seguir medidas simples que poderiam ser adotadas desde já, sem grandes esforços legislativos, ajudando a mitigar o problema.
Reconhecer todo sinistro de trânsito, causado por motoristas embriagados, como sendo doloso.
O direito penal tem duas modalidades que classificam o elemento volitivo no cometimento de crimes (isto é, o que se refere à responsabilidade da pessoa por determinado crime): a culpa, quando o criminoso não deseja o resultado, mas ele se dá, fruto de imperícia, imprudência ou negligência; e o dolo, se o criminoso pratica o crime desejando alcançar o resultado. Dentro do dolo, há uma subcategoria que é o “dolo eventual”. Ele se difere da culpa porque, nesse caso, o criminoso não deseja e nem assume o risco de produzir o resultado do crime.
Exemplo clássico é o do indivíduo que, sem ser médico, pratica um ato privativo daquela profissão, prescrevendo indevidamente um medicamento com a intenção de auxiliar alguém. Digamos que a vítima, ao tomar o remédio, venha a óbito em decorrência de uma alergia. O resultado “morte” foi alcançado, mas não houve nem intenção de matar e nem assunção de qualquer risco. O desejo do criminoso era o contrário, ajudar a vítima. Contudo, por ser imperito, ele provocou a morte. Culpa.
No dolo eventual, a pessoa também não deseja o resultado, porém assume o risco de produzi-lo. Um bom exemplo é o do caçador que, apesar de ter sido alertado sobre a presença de seres humanos na área onde está caçando, ignora os alertas e assume o risco de matar. Nesse caso, a conduta é dolosa.
Quem é motorista habilitado – isto é, fez aulas e provas para obter a licença de guiar um veículo – sabe e foi alertado para o fato de que dirigir embriagado reduz a capacidade de cognição e de tomada de decisões, além de comprometer a coordenação motora. Portanto, ao decidir se embriagar e assumir o volante, não me parece existir qualquer espaço para dúvidas quanto à assunção dos riscos de produzir lesões graves e até mesmo mortes. Entretanto, os delegados de polícia quase sempre indiciam esses criminosos como autores de homicídio culposo. Isso reduz drasticamente as penas a que eles são submetidos e dificulta a decretação de prisões preventivas, contribuindo, sobremaneira, para a sensação de impunidade.
A adoção desse entendimento legal tanto nas delegacias de polícia quanto no Ministério Público e no Judiciário teria efeito imediato. Ao tomar conhecimento do risco de serem presos, muitos brasileiros deixariam de dirigir depois de beber.
Derrubar limitações irresponsáveis impostas à fiscalização no trânsito, que terminam por criar um sistema de controle extremamente condescendente com o infrator.
É preciso desmistificar a ideia de que exista uma indústria de multas. O que existe, de fato, é uma indústria gigantesca de infrações de trânsito. Um estudo feito em 2015 pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) indica que são cometidas, na cidade de São Paulo, uma média de 10 milhões de infrações por hora. A mesma quantidade de multas, 10 milhões, é aplicada na cidade – só que anualmente. Ou seja, há uma enorme quantidade de infrações que não são devidamente punidas.
Quem já teve a oportunidade de dirigir nos Estados Unidos sabe que muitos carros que circulam à paisana nas rodovias, aparentando serem automóveis comuns, na verdade são carros da polícia equipados para medir a velocidade dos outros veículos. Quando um carro desses detecta uma infração, o policial aciona a sirene e autua o infrator. E aqui no Brasil? É proibido que agentes numa operação como essa não usem uniformes. Também é proibido o uso de equipamento móvel, dentro de um carro, para aferição de velocidade.
Mais um exemplo: escolas deveriam ser os locais mais protegidos da Terra, certo? Pois uma resolução recente do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) proibiu o uso de radares móveis (aqueles que ficam apoiados no chão, apontados em direção ao trânsito) em vias de velocidade inferior a 60 km/h. Na prática, isso significa que uma pessoa que não obedeça o limite de velocidade perto de uma escola, no horário de entrada de crianças, não poderá ser fiscalizada. Para que proteger o infrator e expor os vulneráveis a riscos? Não há qualquer lógica nesse tipo de entrave à fiscalização. A limitação ao uso dos radares, qualquer que seja ela, protege o infrator, estimula a infração e eleva o número de sinistros no trânsito.
Desestimular o uso do automóvel.
Quanto mais uma cidade estimula o uso do transporte público, a caminhada e a bicicleta, mais seguro é o seu trânsito. Redesenhar ruas de modo a ampliar calçadas, inserir ciclovias e dar espaço exclusivo a ônibus é medida certeira para a redução dos sinistros do trânsito. Barcelona (na Espanha) e Atlanta (nos Estados Unidos) têm, ambas, ao redor de 5 milhões de habitantes. No entanto, o estímulo ao transporte individual em Atlanta e a promoção do transporte público e à mobilidade ativa em Barcelona fazem com que as semelhanças entre as duas cidades se limitem à quantidade de habitantes. Barcelona tem somente 20% de suas viagens realizadas por automóveis; o restante se divide entre caminhada, bicicleta e transporte público. Em Atlanta, por outro lado, o automóvel responde por 77% das viagens. O resultado disso é claro: em Barcelona, 31 pessoas morrem anualmente no trânsito, enquanto Atlanta já atingiu o patamar inacreditável de 564 vidas ceifadas em um único ano.
A recomendação também vale para você que está lendo este artigo. Quantos dos seus deslocamentos poderiam ser feitos a pé e acabam sendo feitos de carro? Você que usa carro já experimentou utilizar o transporte público? Naturalmente ele não vai lhe oferecer conforto igual ao do seu automóvel. Mas ele pode ser mais rápido e, sem dúvida, é muito mais eficiente do ponto de vista energético. Você já tentou alguma vez ir para o trabalho a pé, de bicicleta ou de transporte público?
Usar a tecnologia para impedir o uso do celular dentro dos veículos em movimento.
Nosso telefone celular é esperto o suficiente para saber onde estamos, prever nosso comportamento e facilitar as tarefas cotidianas. Vivemos um nível de dependência tão grande que, muitas vezes, passamos mais tempo em frente à tela dos smartphones, interagindo no ciberespaço, do que lidando com pessoas de carne e osso. Não são só as relações pessoais que vêm sendo afetadas: também o trânsito passou a ser vítima da nossa dependência do celular.
O Conselho Nacional de Segurança Viária dos Estados Unidos estima que o uso de celulares provoca 1,6 milhão de colisões por ano. Aproximadamente 390 mil ferimentos são causados pelo envio de mensagens de texto enquanto se dirige. Basta um pouco de boa vontade para evitar a leitura e o envio de mensagens no trânsito e, com isso, salvar milhares de vidas todos os anos. O mundo não vai acabar se você esperar chegar ao seu destino ou parar em um posto de beira de estrada para conferir seu telefone. Muitas vidas, isto é fato, serão salvas.
Engajar a indústria automobilística no esforço para reduzir as mortes no trânsito.
Os mesmos fabricantes que foram capazes de desenvolver equipamentos formidáveis para proteger os ocupantes dos seus veículos – airbags, células de sobrevivência, sensores e automatização dos carros – poderiam ir mais longe. Não seria difícil, por exemplo, criar sensores que detectassem a presença de álcool no organismo do motorista e impedissem que ele, caso estivesse embriagado, utilizasse o carro. Muito menos limitar sua velocidade.
No Brasil, não existe nenhuma via pública em que a velocidade máxima permitida seja superior a 120 km/h. Isso significa que não há como conduzir um veículo de forma legal acima dessa velocidade. Quem desrespeitar esse limite estará cometendo uma infração de trânsito. Por que, então, vender automóveis que atingem velocidades de 200, 250 e até 300 km/h? Não há nenhuma justificativa prática para se permitir a comercialização de um produto cujo grande atributo implique uma ilegalidade. Com a simples parametrização na fábrica seria possível limitar a velocidade e reduzir drasticamente o número de mortos no trânsito. A indústria automobilística alimenta e se alimenta de certo glamour em torno do alcance máximo do velocímetro de seus carros. Alguém por acaso se lembra de ter visto, alguma vez, um anúncio de automóvel destacando o quanto ele anda devagar e é seguro? Certamente não.
As medidas aqui listadas são simples, práticas e teriam resultado efetivo imediatamente. Para saírem do papel, dependem de vontade política, a qual, por sua vez, não deve ser entendida como uma solução clichê – deve ser consequência de um consenso social. É isso que precisa ser construído. Esse consenso só existirá se eu, você, nossos parentes e amigos começarmos a consolidar uma percepção de risco em torno do trânsito e nos empenharmos na rejeição a uma insanidade que mata, amputa e traz sequelas para tantas pessoas ao nosso redor.
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