Toras de pau-brasil e paraju apreendidas pelo ICMBio no Parque Nacional do Pau Brasil Foto: Joana Moncau
Um parque no coração do contrabando de pau-brasil
Documentos exclusivos mostram que madeira apreendida em investigação sobre tráfico internacional saiu de unidade de conservação na Mata Atlântica
Esta reportagem resulta de uma parceria entre a revista piauí e a agência de dados Fiquem Sabendo, com suporte da Internews/Earth Journalism Network. Participaram do trabalho Fernanda Santana e Luiz Fernando Toledo (reportagem), Joana Moncau (fotos), Nathália Afonso (checagem), Ana Martini (revisão) e Fernanda da Escóssia (edição).
Quem chega ao Parque Nacional do Pau Brasil (PNPB), em Porto Seguro, no Sul da Bahia, é convidado a conhecer a história da madeira que dá nome ao país. O centro de visitantes da unidade conta, por meio de painéis, a história dos ciclos do pau-brasil, do uso como tintura de tecidos, durante a colonização portuguesa, à confecção de arcos de violino a partir do século XIX. Um desses murais informa que grandes orquestras sinfônicas usam pau-brasil para fabricar arcos de violino. A legenda não diz que aquele arco exposto não é feito da árvore símbolo do país, nem que os servidores do parque precisam frequentemente coibir a ação de criminosos que integram um esquema ilegal que abastece o mercado nobre da archetaria – a arte de fabricar esses arcos. O pau-brasil está, desde 1992, ameaçado de extinção. Qualquer extração dessa madeira sem autorização é crime.
A piauí, em parceria com a agência de dados Fiquem Sabendo, obteve laudos e relatórios inéditos da Polícia Federal (PF) e da agência governamental americana US Fish and Wildlife Service. Os documentos revelam detalhes da investigação do esquema de tráfico de madeira e, pela primeira vez, atestam que parte da matéria-prima encontrada com fabricantes de arcos e empresários saiu ilegalmente do parque encravado na Costa do Descobrimento, patrimônio natural mundial da Unesco e abrigo de espécies da Mata Atlântica. O crime ambiental é apenas um dos problemas na região, que incluem violência contra servidores, ameaças a moradores, disputa por terras e até um homicídio recente sem solução.
| Foto: Joana Moncau
A cerca de 20 metros do espaço aberto aos turistas, a piauí conheceu, em abril deste ano, um lugar interditado aos visitantes: um depósito a céu aberto de árvores cortadas, incluindo toras de pau-brasil. Antes que seguissem para abastecer mercados ilegais, elas foram interceptadas por fiscais ambientais que atuam no parque, uma área de 19 mil hectares sob responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). O depósito é uma memória, ainda que parcial, do avanço de contrabandistas de madeira sobre uma área federal e protegida por lei. Segundo o ICMBio, as toras serão utilizadas para construir pontes e mirantes dentro do parque.
Criado como unidade de conservação em 1999, o Parque Nacional do Pau Brasil é rodeado por sete distritos. Na vizinhança, ainda estão Arraial D’Ajuda e Trancoso, dois points do turismo de luxo no Brasil. São moradores de comunidades mais pobres, como Vale Verde e Coqueiro Alto, ainda não incorporados à lógica do turismo, que participam mais ativamente da rede de extração de madeira do parque, disputada por grupos criminosos rivais.
Segundo o analista ambiental Fábio Faraco, ex-chefe do ICMBio no parque, uma pessoa pode ganhar, por uma ou duas noites de trabalho com o corte ilegal, até 500 reais, o equivalente a quase metade de um salário mínimo. “Todo esse circuito econômico ilegal é muito rentável. São pessoas que acabam vendo no pau-brasil uma oportunidade de grana fácil.” Ele esteve à frente da unidade de conservação até 2019.
À noite, o som das motosserras, ligadas para derrubar árvores do parque, chega à casa de um produtor rural de 25 anos, morador da zona rural de Vale Verde, a 2 km dali. A unidade de conservação e a comunidade rural são unidas por quatro estradas de terra. Em fevereiro deste ano, quando passava por uma delas, por volta das 20 horas, o agricultor (cujo nome será mantido em sigilo por motivo de segurança) deu de cara com dois homens a bordo de um caminhão e uma moto, rumo ao parque. Um deles lhe disse: “Vamos sair carregados.” Carregados de pau-brasil.
Desde o início deste ano, o ICMBIo apura novas denúncias de derrubada de árvores dentro do parque. Entre os meses de janeiro e março, seis fogueiras foram encontradas no interior da unidade, rastros da presença de ladrões de madeira e caçadores. Árvores de todo tipo estão na mira dos contrabandistas, mas o alvo mais cobiçado é o pau-brasil, uma madeira de alta nobreza e resistência, que não apodrece nem é atacada por insetos – e por isso tudo considerada ideal para arcos de violino.
O ICMBio não informou o andamento das investigações. Em nota, disse que “realiza fiscalizações constantes no Parque Nacional do Pau Brasil para inibir ações de degradação ambiental”, que “as denúncias são devidamente apuradas” e “as operações reforçadas com apoio do Ibama e da PF”. Afirmou também que os servidores do parque não concederiam entrevista para que a segurança deles fosse preservada.
Dentro do parque, a derrubada de árvores costuma durar duas noites, uma para cortar e outra para carregar a madeira. O esquema pode englobar ao menos cinco pessoas: duas para decepar as árvores, duas para vigiar e um motorista, que leva as toras de madeira para propriedades rurais ou marcenarias ilegais na região. Antes, os troncos são cortados em pedaços, o que dificulta a identificação da espécie e facilita o transporte.
Ao menos desde 2016, equipes da PF, do Ibama e do ICMBio realizam operações para tentar romper o ciclo ilegal de retirada do pau-brasil do parque. Em julho daquele ano, um relatório interno elaborado pelos então gestores do parque já havia identificado três bandos de criminosos, cada um deles formado por sete pessoas. Naquele mesmo mês, antes da elaboração do documento, Diego Lopes de Oliveira, 36, ex-brigadista no parque, foi encontrado por policiais militares com vinte toras de pau-brasil e detido por crime ambiental e associação criminosa. Em depoimento à Polícia Civil da Bahia, afirmou que a madeira seria exportada para Itália e Portugal, onde serviria para a confecção de arcos de violino.
“Peões” como Oliveira, que cortam madeira dentro do parque, são a base da pirâmide do contrabando do pau-brasil. No meio está o artesão que recebe a madeira sem origem legal. No topo, empresários que exportam o produto, com lucro semelhante ao do tráfico de cocaína, conforme mostrou a piauí. Uma vareta da matéria-prima, usada para fabricar o arco, pode custar de 20 a 40 reais, segundo a PF. Em loja no exterior, alguns modelos de arco podem custar mais de 20 mil reais.
Desde 2021, Polícia Federal e Ibama investigam o esquema na chamada Operação Ibirapitanga, que só no ano passado cumpriu 37 mandados de busca e apreensão – três deles no Sul da Bahia. Os empresários acusados de usar madeira obtida ilegalmente sempre alegaram que a matéria-prima para produzir os arcos vinha de plantios próprios ou doações de extrações mais antigas, autorizadas e dentro da lei.
O que os documentos obtidos pela piauí mostram, porém, é que parte considerável da madeira sai do parque na Bahia. A perícia da Polícia Federal estudou a composição anatômica de amostras de madeira do parque e de outras apreendidas em propriedades e pátios dos investigados na operação. Os laudos técnicos, finalizados em dezembro passado, apontaram que a maior parte das amostras apreendidas “corresponde às de referência oriundas do Parque Nacional do Pau Brasil, de origem natural”.
A hipótese de que a madeira utilizada pelos fabricantes de violino investigados é extraída de árvores centenárias é corroborada pelas características do pau-brasil necessárias para fabricar um arco, que demandam árvores mais maduras. Depois de extraída, a espécie demora, no mínimo, dois anos para secar e ser manuseada. Um arco de violino costuma ser produzido com o cerne da árvore.
“Essa é uma parte mais mole, tipo uma medula. Demora a se desenvolver. É uma questão que estamos estudando: quanto tempo demoraria [a plantação] para virar um arco de violino. Cinco anos é impossível para fazer um arco; em trinta anos, tem arcos que foram produzidos. É que nem whisky. Um de oito anos não vai ser igual a um de trinta”, explica o engenheiro florestal Daniel Piotto, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e doutor em estudos florestais pela Universidade de Yale, que pesquisa Mata Atlântica há vinte anos.
A investigação da PF e das autoridades americanas apontou ainda que empresários do setor dos arcos de violino usaram documentos falsos, terceirizam atividades com laranjas para evitar embargos e fizeram exportações ilegais. Um exemplo é o caso de Julio Cesar Batista, da empresa JB Atelier e presidente da associação que reúne alguns dos principais fabricantes de arcos de violino, a AAUMAbr (Associação dos Artesãos e Empresas de Cordas Unidos na Preservação da Mata Atlântica Brasileira). Ao menos cinco processos foram abertos contra a JB Atelier, que soma 3,2 milhões de reais em multas, mostram dados abertos do Ibama.
Segundo o relatório, Batista usou um trio de artesãos autônomos como laranjas para despistar a fiscalização do Ibama, depois de sofrer embargos pelo instituto, em 2018, por não comprovar a origem da madeira que usava para fabricar os arcos. Os artesãos recebiam a matéria-prima de Batista e devolviam o produto acabado para venda, incluindo exportação. Batista também controla uma empresa nos Estados Unidos, a Sousa Bows, criada por ele em 2002.
Lá também houve investigação. A piauí teve acesso a dois documentos produzidos pela agência governamental US Fish and Wildlife Service, que apontam que, entre 2018 e 2021, Batista exportou para os Estados Unidos 1.502 arcos feitos de pau-brasil. Para a agência americana, o empresário descumpriu o Lacey Act, legislação que proíbe a importação de produtos de origem animal ou florestal obtidos em violação a outras leis, o que pode levar à prisão por cinco anos e multas de mais de 1 milhão de reais. A JB Atelier segue impedida de comercializar e fabricar instrumentos musicais.
Batista afirmou à piauí que sempre respeitou os embargos impostos pelo Ibama e que a JB Atelier encontra-se em insolvência. Sobre a acusação do uso de laranjas, ele admitiu que contratou serviços de outra empresa e forneceu material de seu estoque particular para confecção de arcos, mas negou irregularidades. Disse ainda que a Sousa Bows não comercializa mais arcos desde o final de 2021.
A JB Atelier afirmou desconhecer que a madeira utilizada tenha sido extraída no parque. “Toda matéria-prima utilizada pela JB Atelier foi adquirida por meio de documentos de origem florestal e lançados no sistema DOF [Documento de Origem Florestal, uma licença obrigatória para transporte e armazenamento de produtos florestais de origem nativa] através dos meios legais, sendo exigido dos fornecedores responsabilização contratual pela legalidade das matérias-primas, informando inclusive as coordenadas de origem das madeiras. Sendo assim, se ela foi extraída do Parque Nacional do Pau Brasil, nós não podemos afirmar, uma vez que o processo de aquisição cumpriu todos os requisitos previstos em lei e não temos recursos técnicos para fazer esta avaliação. Cumprimos o que a legislação determina.”
Susanne Breitkopf, vice-diretora de Campanhas Florestais da Environmental Investigation Agency (EIA), organização que investiga crimes ambientais pelo mundo, critica a falta de ações capazes de assegurar o fim do contrabando. “As agências [do governo americano] precisam receber os recursos e treinamento adequados para que possam controlar as importações e parar e investigar remessas suspeitas. A Lacey Act é uma das leis mais importantes que temos atualmente para impedir o destruição ilegal de florestas e violações de direitos humanos associadas.”
Além da extração ilegal de madeira, outros crimes ambientais, como a caça, extração de areia ilegal e invasão e ocupação de área sem autorização são frequentemente coibidos no parque. Na última década, ao menos cinquenta infrações foram registradas pelo ICMBio dentro do parque, segundo dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação pela agência Fiquem Sabendo. Quem frequenta a unidade de conservação está acostumado a ver os rastros deixados por infratores. “Já vimos caçadores às seis da manhã. A gente já viu armas”, conta o publicitário Daniel Silva, que contou vinte troncos de pau-brasil cortados no chão do parque enquanto percorria, de bicicleta, uma das seis trilhas do lugar, em 2021.
Outro desafio para o ICMBio é a permanência, no interior e no entorno do parque, de diversas áreas privadas, pois ainda não foram desapropriadas. A criação da unidade de conservação, há mais de duas décadas, e sua ampliação em 2010 enfrentaram resistência de médios e grandes proprietários que queriam manter a posse de suas fazendas. Antes de ser transformada em área de proteção ambiental, a área era explorada por uma empresa privada estrangeira. Depois que a companhia saiu da região para que a unidade de conservação fosse criada, antigos proprietários questionaram o status do território como bem público. Quase metade da área do parque (46%) ainda não está regularizada, segundo o ICMBio. A instituição tem adotado uma estratégia para aumentar essa fatia: se uma pessoa ou empresa precisa regulamentar outra área dentro do mesmo bioma (a Mata Atlântica), ela pode, como compensação, comprar terras dentro do parque e doá-las ao Estado.
Até hoje há, dentro do parque, terrenos fechados com portões e cadeados, fora do alcance das autoridades. “Praticamente nenhum dono de fazenda mora ali. Ou ficam em Porto Seguro ou no Espírito Santo. Não se entra na fazenda quando quer. Geralmente há controle, portaria”, diz o ex-chefe do ICMBio na unidade, Fábio Faraco.
Um exemplo desse conflito entre o público e o privado aconteceu em 2021. No dia 27 de setembro, servidores do ICMBio enviaram um pedido de socorro à Polícia Federal. No documento, no qual solicitavam “suporte institucional e proteção”, narraram que, na semana seguinte a uma fiscalização que flagrou extração ilegal de madeira em uma fazenda privada com acesso ao parque pelos fundos, foram informados do assassinato do gerente do imóvel. O corpo foi encontrado fora do parque, na zona rural de Queimado, distrito vizinho à unidade. O crime é investigado pela Delegacia Territorial de Arraial D’Ajuda, mas o inquérito policial ainda não foi concluído e não se sabe se há ou não relação com a fiscalização.
Oito dias antes de o gerente ser encontrado morto, o ICMBio encontrou 26 trilhas ligando a propriedade a áreas de extração de madeira dentro da unidade de conservação. Para camuflar os atalhos, havia mudas recém-plantadas de bananeiras. Na propriedade, foram encontrados 36 m3 de madeiras nativas, principalmente Paraju e Pequi, extraídas ilegalmente e usadas para ornamentar forros de casas luxuosas, segundo as autoridades. A infração gerou uma multa de 58 mil reais (proporcional à quantidade de madeira encontrada).
Um dos donos da fazenda, que mora no Espírito Santo, disse não ter participação na extração das árvores e negou que a madeira tenha sido apreendida no interior da propriedade. Ele pediu para não ser identificado por motivos de segurança. Disse que nunca recebeu a multa e que, se alguém tirou ilegalmente madeira de sua propriedade, não foi ele. Sobre a morte do funcionário, disse que a última vez que soube de Derivaldo foi três dias antes do corpo ser encontrado e confirmou que o clima na região do parque é de insegurança.”São pessoas que andam armadas o tempo todo, você pode pôr segurança na porteira, eles vão passar por algum lugar. São situações que levam a gente a temer, ficamos refém.”
Para o agrônomo João Carlos Rocha Júnior, que assessora quinze produtores rurais no entorno do Parque Nacional do Pau Brasil, os proprietários das terras também são vítimas de uma rede criminosa que utiliza as fazendas quando os donos estão longe. “Eles [criminosos] usam e abusam dos pequenos. Uma semana, a gente vê a porteira pocada [arrombada], consertamos. Na semana seguinte, estava na porteira assim: ‘Doutor, não tranca de novo não, nós sabemos quem você 锑, exemplificou o consultor, que admite ser “uma realidade a extração ilegal de pau-brasil no parque”, mas nega a participação dos assessorados por ele.
A inevitável conexão entre a atividade criminosa e a indústria musical também preocupa a Associação Nacional da Indústria da Música (Anafima). Presidente da entidade, Daniel Neves tem organizado encontros com os fabricantes de arcos. Diz que a organização repudia qualquer atividade ilegal, mas defende uma regulamentação mais clara, capaz de assegurar o direito dos artesãos ao trabalho. “O governo deve estar tão atento com a ilegalidade quanto apto a buscar soluções para que o Brasil não perca a liderança e tradição do arco de violino. Há de se buscar soluções que voltem a viabilizar o trabalho de quem produz o arco no Brasil e restabelecer o fornecimento global para as empresas que tenham possibilidade de se regularizar.”
É jornalista em Salvador
É mestre em jornalismo de dados pela Universidade Columbia e um dos diretores da Abraji
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