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Um poema ainda existe?

    Memorial onde estão os restos mortais de Che Guevara, em Santa Clara Foto: Sven Creutzmann/Mambo Photo/Getty Images

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Um poema ainda existe?

Um ato em memória de Che Guevara em meio aos impasses da revolução cubana

André Uzêda, de Santa Clara, Cuba | 11 nov 2025_08h42
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Cerca de trinta crianças acompanhadas de seus pais subiram apressadas uma colina, cujo fim do percurso leva até uma imponente estátua de Ernesto Che Guevara. Uniformizadas com trajes nas cores branco e vinho, elas se preparavam para homenagear o revolucionário argentino naquele 8 de outubro, data que marcou as homenagens pelos 58 anos de sua morte.

A cerimônia aconteceu em Santa Clara, capital da província de Villa Clara, que fica no Centro-Norte de Cuba, a aproximadamente quatro horas e meia de carro da capital, Havana. Logo na entrada da cidade há um enorme cartaz com o desenho da bandeira do país em formato de ilha e a frase: Cidade de Che.

Em dezembro de 1958, Che liderou um grupo de guerrilheiros que venceu as tropas do ditador Fulgêncio Batista em Santa Clara. A batalha, vencida após uma ofensiva contra um trem blindado (um dos atrativos históricos da cidade), foi decisiva para Batista perceber a iminente derrota e abandonar o país, decretando assim a vitória dos guerrilheiros – a revolução cubana assumiu o poder em janeiro do ano seguinte.

A estrutura montada em Santa Clara para homenagear um dos líderes mais carismáticos e internacionais da revolução cubana atualmente contrasta com a baixa adesão ao evento. Em meio às músicas, condecoração escolar e um grupo de militantes latino-americanos, quase não havia cidadãos cubanos no ato cívico que reuniu cerca de 150 pessoas em homenagem à memória de Che.

“Nas datas redondas, como 50 e 55 anos, todas as províncias fazem uma solenidade para homenagear nosso guerrilheiro. Fora das datas redondas, a celebração fica concentrada aqui em Santa Clara, que é onde está a marca mais poderosa do seu legado”, explica Juan Carlos Díaz Ibáñez, 54 anos, funcionário do comitê estadual do PCC, o Partido Comunista de Cuba.

No fim dos anos 1980, foi levantada na cidade uma estátua de bronze de aproximadamente 7 metros de Che carregando um fuzil, apoiada sobre uma imponente base de mármore, na qual se lê uma das mais célebres frases de sua autoria – “Hasta La Victoria Siempre”. Era diante da estátua que as crianças aguardavam o início da celebração.

O local conserva também um museu que reconta os passos de Che, desde a infância, na cidade de Rosário, na Argentina; o apreço pelos esportes; a formatura como médico; passando pela famosa viagem a bordo de uma motocicleta pela América Latina, até se entrincheirar nas fileiras revolucionárias, ao lado de Camilo Cienfuegos e dos irmãos Raúl e Fidel Castro.

O espaço mais reservado do complexo ganha contornos quase religiosos. É um mausoléu com luz baixa, onde não são permitidas fotografias. Uma fonte d’água corrente preenche o som ambiente, enquanto um guia explica a simbologia de cada elemento presente na sala. Ali repousam os restos mortais de Che, trazidos para Cuba trinta anos após sua morte na Bolívia.

Do lado de fora, guardada por jovens do serviço militar obrigatório cubano, uma pira permanece sempre acesa simbolizando a chama revolucionária de Che e dos demais guerrilheiros que tombaram em combate.

No dia 8 de outubro de 1967, Che foi capturado pelas Forças Especiais da Bolívia, onde havia desembarcado clandestinamente onze meses antes, com o objetivo de instaurar uma guerrilha no país sul-americano. Um dia depois, foi assassinado com tiros à queima-roupa na aldeia de La Higuera.

Somente em 1995, um militar do exército boliviano revelou para o jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, biógrafo de Che, que o corpo do revolucionário havia sido desovado próximo a uma pista de pouso no povoado de Vallegrande. O longevo segredo cumpria à risca um propósito claro: evitar que o lugar se transformasse em um ponto de peregrinação.

O governo cubano, então, enviou especialistas e médicos forenses para ajudar na localização e identificação dos restos mortais. Em outubro de 1997, a ossada de Che foi levada de avião da Bolívia para o mausoléu na ilha caribenha, inaugurado em 1988.

 

A celebração em torno da figura de Che começou por volta das oito da manhã. Uma menina de aproximadamente 6 anos de idade se destacou do grupo escolar e subiu ao palco cumprindo a função de oradora. Com o braço em riste, disse frases que foram repetidas pelos coleguinhas. “Pela pátria e socialismo. Pioneiros pelo comunismo, seremos como Che.”

De cócoras, as crianças foram posicionadas nas marcações previamente desenhadas na praça para formar um mosaico com a palavra “Che”. Em seguida, receberam dos pais um pano azul claro para ser adornado na gola do uniforme escolar, como símbolo da bravura e coragem demonstrada por Che. 

O lenço azul simboliza os Pioneiros Moncadistas, turma dos alunos mais novos da Organização dos Pioneiros José Martí – entidade escoteira que leva este nome em homenagem ao herói da independência de Cuba contra os espanhóis, no fim do século XIX. Já o nome Moncadistas é uma referência ao Quartel Moncada, localizado em Santiago de Cuba, e que foi atacado em uma ofensiva liderada por Fidel Castro em 26 de julho de 1953. Ainda que derrotada, a ação é considerada o início da revolução que se tornaria vitoriosa seis anos depois.

Além das crianças, outros estudantes adolescentes também acompanharam o ato, sem esconder a impaciência natural com celebrações oficiais longas, cutucando uns aos outros em meio a curtas risadas. Ao fim da condecoração, foi pedido silêncio para a execução do hino oficial de Cuba – o que foi plenamente respeitado pela garotada.

Na sequência, uma das autoridades presentes subiu ao púlpito e, antes de discursar sobre o legado de Che, falou sobre os dois anos de “massacre de Israel sobre Gaza”, completados exatamente na véspera, dia 7 de outubro. “Tudo feito com anuência dos Estados Unidos”, disse. 

Um dos integrantes do Partido Comunista de Cuba ressaltou a necessidade de iniciar a organização dos festejos para o centenário de Fidel Castro, programados para o ano que vem. “Fidel não foi apenas um estrategista político e militar. Foi um educador que entendeu que o futuro de nossa nação são os pioneiros. Em suas palavras e ações, encontrava inspiração para fazer os cidadãos comprometidos, respeitados e solidários. Ao iniciarem esse caminho como pioneiros, vocês assumem a missão de continuar seu legado por uma sociedade mais justa e igualitária”, disse.

Ao fim da cerimônia, uma cantora local, acompanhada por um tecladista, puxou a música Hasta Siempre, composta pelo cubano Carlos Puebla em 1965, em homenagem a Che. A letra fala da bravura de Che em percorrer o mundo para manter viva a chama revolucionária, além de citar a grande batalha que ele comandou na cidade de Santa Clara. A canção foi gravada pelo conjunto Buena Vista Social Club, impulsionando-a como trilha internacional. Em coro, as crianças acompanharam a melodia, sobretudo no refrão.

“Quando Che foi dado como morto, Fidel fez um discurso bonito dizendo que o exemplo dele deveria ser passado para todas as crianças cubanas. Eu já fui uma dessas crianças de Santa Clara e aquilo me inspirou para continuar o processo revolucionário, ao longo de todos esses anos”, pontua o dirigente partidário DíazIbáñez.

Militantes políticos de treze países que estavam em Havana para um curso de formação de novas lideranças políticas acompanharam a celebração em Santa Clara. A argentina Lucía Reartes, de 35 anos, afirmou que as ideias de Che ainda influenciam a América Latina. “Estamos vivendo uma quadra política muito difícil com o avanço da extrema direita no mundo e, em particular, na Argentina, com Javier Milei. Vir a esse lugar é reafirmar novas convicções revolucionárias e nossa força para combater esse mal que nos aflige.”

A brasileira Beatriz Santos, de 30 anos, também esteve nesta comitiva. Natural de Ariquemes, em Rondônia, ela faz parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para ela, a figura de Che é “mítica no imaginário de todo militante político” e, muitas vezes, “é o início da tomada de consciência pelo símbolo de liberdade que ele representa.”

Para o casal de turistas argentinos Fany Mansilla e Marcelo Guagliardo, integrante que foram a Santa Clara visitar o mausoléu de Che, a figura do compatriota alimenta múltiplos sentimentos e interpretações. “Ele é um ideal de vida, luta política e liberdade. Por isso, ele segue encantando tanta gente ao longo de tantas gerações. E é justamente quando o momento não é bom que devemos buscar o que ele disse, escreveu e como guiou sua vida. Por que há uma nobreza muito clara na sua luta: combater a opressão e defender a liberdade”, disse Guagliardo.

 

Enquanto estrangeiros estavam emocionados com a cerimônia,uma comerciante cubana manifestou descontentamento com a situação do país. “Para mim, a revolução se foi com a morte de Fidel. O novo governo não tem o mesmo compromisso com o povo que os guerrilheiros tinham. A gente sente a falta de um líder para nos guiar nesse momento difícil”, disse ela, que não compareceu à homenagem. 

Quase sessenta anos após a vitória sobre as tropas de Batista, o movimento revolucionário que chegou ao poder em Cuba parece viver um momento de descrença junto à população – e o esvaziamento das celebrações em torno de Che é um elemento que corrobora isso.

O atual presidente, Miguel Díaz-Canel, de 65 anos, goza de pouco prestígio popular. Natural da província de Villa Clara, onde também iniciou sua militância política, ele é o primeiro dirigente de Cuba que não participou da guerrilha em Sierra Maestra. Sua carreira foi construída dentro da burocracia do Partido Comunista de Cuba, que o alçou aos cargos de presidente do país e primeiro secretário-geral do partido.

Díaz-Canel sucedeu Raúl Castro em 2018. O caçula dos Castro, por sua vez, ficou no comando de Cuba por dez anos, depois que o irmão Fidel renunciou em 2008 para tratar de problemas de saúde. “El Comandante” morreu em 25 de novembro de 2016, aos 90 anos. Raúl hoje tem 94 anos e se diz oficialmente aposentado da vida pública.

Embora não haja uma pesquisa insuspeita que meça o nível de confiança da gestão de Díaz-Canel junto ao povo cubano, as queixas estão em toda parte. 

Uma das principais reclamações diz respeito aos constantes apagões que afetam diferentes partes da ilha. Em Havana, chega a faltar luz 8 horas por dia. Em municípios mais afastados do litoral ou áreas mais rurais, o tempo aumenta para até 12 horas diárias. 

Uma paisagem noturna que se tornou comum é ver a orla da capital cubana, chamada de Malecón, completamente às escuras, enquanto grupos usam a lanterna do celular para iluminar pequenos focos que concentram rodas de conversas, paquera ou praticam a pesca na baía de Havana.

Desde o ano passado, quando a usina Antonio Guiteras, principal do país, entrou em pane, a crise de abastecimento elétrico passou a ser frequente na ilha. O governo justifica que, com o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos, há dificuldade de compra de peças de reposição, o que impede uma manutenção adequada das máquinas geradoras de energia. 

Isso cria situações embaraçosas. O Museo Nacional de Bellas Artes de Cuba, por exemplo, tem todo seu acervo de pinturas e esculturas exposto ao público em galerias extremamente quentes, cujas altas temperaturas podem prejudicar a conservação das próprias obras. Os donos de restaurantes, barzinhos ou pequenas lanchonetes propositadamente reduzem suas produções já colocando na ponta do lápis que, com o apagão, vão perder parte de suas produções.

Somado a isso, há uma crise também de combustível, o que é ilustrado pela reduzida frota de carros que circula em Havana. Nas motos, há uma visível preferência pelas elétricas, importadas da China. 

Nos anos 2000, Fidel Castro e Hugo Chávez, presidente da Venezuela, firmaram um acordo para fornecimento de barris de petróleo em troca de ajuda em missões médicas cubanas ao país sul-americano. Com a morte de Chávez e a forte crise do petróleo, em 2015, pouco a pouco a política de cooperação foi perdendo força na gestão Nicolás Maduro. Isso trouxe sérios problemas de abastecimento em Cuba e longas filas nos dias autorizados para encher os tanques dos carros.

No fim de outubro, a ilha sofreu os impactos do furacão Melissa, que chegou ao solo cubano na categoria 3 – o máximo é 5, na escala Saffir-Simpson. O governo não notificou mortes, mas anunciou ter remanejado mais de 700 mil pessoas, além de prejuízos na agricultura, cortes de energia e desabamento de casas. A área oriental da ilha foi a mais afetada, onde fica a cidade de Santiago de Cuba, a segunda maior do país.

Há ainda uma crise no turismo, ocorrida a partir da pandemia. Desde 1991, com o colapso da União Soviética, a atividade passou a ser a principal fonte de receita do país, sobretudo pela remessa de dólares que os turistas trazem para gastar em cidades como Varadero e Trinidad, além dos “cayos”, pequenas ilhas banhadas pelo mar do Caribe, como Cayo Guillermo e Cayo Coco. 

Nos primeiros nove meses deste ano, a ilha recebeu 1,4 milhão de turistas, 20% a menos do que no mesmo período do ano passado. Já a taxa de ocupação dos hotéis caiu em 21,5% no primeiro trimestre, em comparação com o mesmo período de 2024. Os dados são do Escritório Nacional de Estatística e Informação, órgão oficial do governo cubano.

 

Essa crise econômica impacta diretamente o poder de compra dos cubanos, cujo salário mínimo é de 17,50 dólares por mês (aproximadamente 93 reais). O descontentamento é ainda maior porque parte da população reclama de regalias econômicas da classe política. “Pelo padrão de vida que eles levam, aqui todo mundo comenta que eles compram fora da libreta. Não se submetem ao racionamento de alimentos como a gente. E nem conseguimos ver esses políticos no dia a dia, porque a casa onde moram tem uma zona perto da qual não podemos circular”, diz, sob anonimato, uma guia de turismo em Havana.

A libreta é o caderno de controle, instituído pelo governo em 1963, como forma de garantir a distribuição equitativa de alimentos, após os Estados Unidos instituírem um bloqueio econômico sobre Cuba para retaliar o país pela revolução feita no contexto da Guerra Fria. A medida impede que diversas nações exportem seus produtos para a ilha, forçando uma crise geral de abastecimento. Até hoje, tanto a libreta quanto o bloqueio seguem em vigor, ainda que com brechas conquistadas nas últimas décadas. Diversos países retomaram as relações comerciais com Cuba, a exemplo do Brasil, em 1986. 

O fato é que, em Cuba, há quem consiga comprar produtos pelo mercado paralelo para driblar o controle da libreta e há quem sobreviva com o controle instituído pelo governo. Nas ruas de Havana, no entanto, já é possível notar uma pobreza acentuada com pessoas revirando as enormes montanhas de lixo e constante assédio aos turistas, com pedidos de remédios (paracetamol), papel higiênico, leite e roupas – produtos difíceis de serem encontrados até mesmo no mercado alternativo. 

A perspectiva de futuro é ainda mais desanimadora pelo retorno de Donald Trump à Casa Branca. O republicano retrocedeu nos avanços que os democratas Barack Obama e Joe Biden fizeram para reaproximar os dois países. 

Ao desembarcar em Havana, em março de 2016, Obama foi o primeiro presidente dos Estados Unidos a pisar em solo cubano desde a revolução. Se não conseguiu acabar com o longo embargo econômico, conforme havia prometido em campanha presidencial, trouxe outras flexibilizações, como a volta da rota de cruzeiros à ilha, levando turistas norte-americanos a bordo.

“Recebemos muitos deles aqui em Havana e isso trouxe uma nova dinâmica para a nossa economia com a circulação do dólar. Havia uma curiosidade muito genuína, da parte deles, em conhecer Cuba”, pontua a guia de turismo. 

Biden, em um dos seus últimos atos administrativos como presidente, retirou Cuba da lista de nações que não cooperam plenamente com os esforços antiterrorismo. O gesto teve mais valor simbólico ao reinserir a ilha nas relações diplomáticas com outros países e diminuir os impactos do embargo econômico.

Com Trump a relação azedou. Seu secretário de Estado, Marco Rubio, filho de pais cubanos que deixaram a ilha para se estabelecer em Miami nos primeiros anos do início da guerrilha no país, adota uma linha dura contra regimes que considera inimigos dos Estados Unidos. Em maio deste ano, Rubio revogou a decisão de Biden e reinseriu Cuba entre as nações que não cooperam contra o terrorismo. No mês seguinte, Trump assinou um memorando proibindo a visita de viagens a lazer para Cuba. O mesmo documento também recrudesce as sanções do embargo econômico, ao renovar a proibição de transações financeiras com entidades controladas pelos militares cubanos. Ao que tudo indica, a vida dos cubanos seguirá complicada pelos próximos anos.

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