Manifestação em frente ao Parlamento da Geórgia, na capital Tbilisi, em apoio à adesão do país à União Europeia Foto: Vano Shlamov/AFP
Uma bala sai mais barato
A história em resumo
“Mentir, quando é no interesse do Estado, não é crime”, afirma o escritor georgiano Dato Turashvili em seu livro Flight from the USSR (Fuga da União Soviética). O título original do livro, escrito em georgiano, traduz-se por Geração jeans: fuga da União Soviética. Isso porque o livro foi escrito no tempo em que o jeans era considerado um símbolo de liberdade, mais ainda atrás da Cortina de Ferro. Trata-se de um relato levemente ficcionalizado do sequestro do voo 6833 da Aeroflot, que decolou de Tbilisi em 18 de novembro de 1983 com destino a Leningrado – cidade que voltou a se chamar São Petersburgo. Sete jovens, todos pertencentes à elite georgiana, haviam decidido sequestrar um avião para deixar seu país. Queriam ir para a Turquia, mas os pilotos conseguiram retornar à capital da Geórgia, a despeito dos esforços dos sequestradores. Diversos passageiros e três dos sequestradores foram mortos durante uma violenta incursão logo após o pouso no aeroporto de Tbilisi. Os demais sequestradores foram condenados à morte, à exceção da única mulher, Tina Petviashvili, sentenciada a catorze anos de prisão. Ela estava grávida de um dos sequestradores e foi coagida a abortar na prisão antes do início do julgamento.
Os pais dos condenados à morte não foram informados da execução de seus filhos; receberam apenas a cobrança pelo valor da bala: 3 rublos. Em um dos casos, cobraram 6 rublos, porque a primeira tentativa de execução falhara. “Como é que uma pessoa podia errar de tão perto? Eis aí a história completa do império soviético resumida em poucas palavras”, Turashvili escreve. Hoje em dia, os refugiados morrem afogados no Mediterrâneo; ao contrário dos pais dos sequestradores georgianos em 1983, não pagam pela bala: pagam apenas ao traficante de seres humanos. Uma bala sai mais barato.
No mesmo ano em que os filhos da intelligentsia georgiana fizeram sua tentativa vã de escapar da prisão que se tornara sua terra natal, Vladimir Putin se casou com Lyudmila Aleksandrova Ocheretnaya, com a qual teve duas filhas. Ele já trabalhava para a kgb, mas ainda não tinha sido enviado a Dresden para supervisionar o desmonte da República Democrática da Alemanha, ou, na verdade, de todo o império soviético. Esse desmonte foi um processo longo e demorado, que os refugiados, no entanto, aceleraram.
Emigrar voluntariamente é votar com os pés, embora muitas vezes os chamados Estados civilizados tentem invalidar esses votos, e isso sem necessariamente se furtar a promover uma matança. A questão permanece sendo onde termina a emigração voluntária e começa a emigração involuntária.
Numa manhã abafada, uma terça-feira de junho, estou sentado no Holiday Inn de Tbilisi diante de Kemlin Furley e Nino Kvirkvelia, ambas do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Furley vem da Inglaterra e trabalhou em Uganda há uns poucos anos. Kvirkvelia é uma funcionária local da organização proveniente da Abkházia, a república “independente” situada no noroeste da Geórgia, na costa do Mar Negro. Apenas um punhado de países reconhece a independência da Abkházia, entre eles Rússia e Síria.
A Geórgia perdeu a Abkházia para os abkhazianos numa guerra em 1994. Os dois lados cometeram crimes de guerra no conflito. O exército da Geórgia era, na verdade, uma milícia composta de gângsteres de elite chamada, em russo, Vory v Zakone: literalmente, “ladrões dentro da lei”. São criminosos com frequência tolerados pelo Estado, ou, antes, o Estado se beneficia do gângster, que, por sua vez, se beneficia do Estado. Também essa simbiose dos mundos superior e subterrâneo traduz a história em poucas palavras. Hoje, uma “força de paz” russa patrulha a Abkházia.
De acordo com o Acnur, 200 mil russos entraram na Geórgia desde o começo da guerra na Ucrânia. Destes, 184 mil já foram embora, mas claro que nem todos retornaram para a Mãe Rússia. As novas e rigorosas leis russas (para não caracterizá-las como as leis de uma ditadura brutal), aquelas que prendem por quinze anos quem se opuser à propaganda política oficial, conduziram a um pequeno êxodo. Os russos ricos estão em Dubai. Os judeus, ou os que fingem sê-lo, estão em Tel-Aviv. A intelligentsia está em Tbilisi.
Na verdade, três grupos de russos foram para a Geórgia desde o começo da guerra. O primeiro é formado pelos russos que trabalham para companhias internacionais de tecnologia da informação. “Por causa das sanções”, afirmam essas companhias, “não podemos pagar vocês enquanto estiverem na Rússia.” Em seguida, vem um grupo pequeno de russos em Tbilisi, composto por ativistas, jornalistas e advogados de direitos humanos. E há ainda um terceiro grupo: russos que julgam desagradável permanecer em seu próprio país sob as condições atuais. Como os ucranianos e os bielorrussos, os russos podem passar até um ano na Geórgia sem necessidade de visto.
“Cerca de 40 russos e mais de 450 ucranianos solicitaram asilo desde o começo da guerra”, informa Furley, refererindo-se a dados até o início de julho. “Lá pelo fim do ano, serão muitas mais as solicitações, e essas pessoas todas deveriam, de todo modo, receber asilo humanitário. Até o momento, cerca de 70 mil ucranianos vieram para a Geórgia, dos quais 48 mil já foram embora, muitas vezes de volta para a Ucrânia. Faz bastante diferença se você vem de Kiev ou de Mariupol. Os de Mariupol não têm para onde voltar.”
Em 1983, filhos e filhas da elite georgiana tentavam sair da jaula miserável em que seu país havia se transformado sob as ordens de Moscou. Agora, é a intelligentsia de Moscou que está inundando a Geórgia. Esses russos são tolerados, contanto que não se envolvam ostensivamente em atividades antirrussas. Afinal, os soldados russos estão perto demais de Tbilisi. O establishment georgiano não quer, pois, aborrecer Putin além da conta. E se, de repente, ele resolve deslocar a fronteira entre a Geórgia e a Ossétia do Sul algumas centenas de quilômetros para o Sul?
Furley relata: “Outro dia, alguém me perguntou: ‘Por que não podemos avançar o filme até o momento em que Putin se mata em seu bunker?’” Bem, avançar e voltar o filme é ofício dos historiadores. Quanto a refugiados e não refugiados, eles precisam esperar pacientemente pelos meandros e pelas reviravoltas da história, embora às vezes eles próprios tentem freneticamente interferir, com resultados incertos.
No badalado hotel Stamba, que já foi uma tipografia, encontro-me com um casal de jornalistas russos: Ekaterina Kotrikadze e Tikhon Dzyadko. Os dois trabalham para a Dozhd, também conhecida como tv Rain, um dos poucos canais independentes de televisão na Rússia. Em março deste ano, o canal saiu do ar. Até mesmo o último veículo independente tornara-se intolerável para Putin. Os dois tiveram de sair do país por causa da nova lei, ou poderiam acabar presos.
Quem quer que queira se encontrar com a intelligentsia russa ou não russa em Tbilisi deveria ir ao Stamba. Tudo e todos passam por ali: gente que trabalha na televisão, escritores e personalidades televisivas da Geórgia e jornalistas russos. O Stamba é o centro mágico da resistência silenciosa a Putin na capital.
Kotrikadze é quem fala a maior parte do tempo. Dzyadko fuma. E fuma como se o cigarro não fosse um passatempo, e sim um propósito de vida. “Eu venho analisando Putin ao longo dos 23 anos em que ele está no poder”, diz Kotrikadze. “Ele não quer reimplantar a União Soviética: quer voltar ao governo do czar, voltar a Pedro, o Grande, esse é seu sonho. Quer ser igual aos Estados Unidos e à China.” Pergunto: “Depois de 23 anos de análise, vocês esperavam essa guerra? Estavam preparados para fugir?” Kotrikadze responde: “Ele, não; eu, sim. Se você reúne 150 mil soldados na fronteira, o que pretende fazer? Putin não vai parar até tomar Kiev.”
Dzyadko tira o cigarro da boca. “Não sou um refugiado”, diz. “Isto não é um exílio.” E o cigarro volta para a boca. “Eu trabalhava nos Estados Unidos”, conta Kotrikadze. “Mas voltei para Moscou por causa deste homem.”
Ah, o hotel Stamba em Tbilisi, onde a dissidência e o erotismo, a fumaça do cigarro e a resistência firmam um matrimônio antiquado. O exílio é um estado mental, um estado mental que se pode desligar, como o interruptor de uma lâmpada.
“O canal da tv Rain no YouTube existe desde 2010, mas, depois de uma carta do Ministério Público, decidimos remover todos os vídeos”, diz Kotrikadze. “Há pouco tempo, abrimos um novo canal no YouTube. Aqui mesmo, na Geórgia. Para as pessoas na Rússia. Twitter, Facebook e Instagram são proibidos lá. Mas o YouTube, não. Haveria uma revolução se o proibissem. Tentaram criar uma alternativa, Rutube, mas lá você só vai encontrar propaganda política da pior qualidade. Muitos russos usam o YouTube para educar seus filhos com cantigas e rimas infantis, filmes e esse tipo de coisa; usam-no também para saber como consertar seus carros. Isso Putin não pode proibir.” Dzyadko tira o cigarro da boca. “Eu também uso o YouTube para isso, aprender a consertar coisas.”
“É um pouco como um século atrás, depois da revolução bolchevique. A intelligentsia foi embora da Rússia”, comenta Kotrikadze. “Se você sai numa sexta-feira à noite em Tbilisi, vai encontrar escritores, jornalistas, pintores e filósofos russos. Merkel e Obama acreditaram que a diplomacia produziria estabilidade, e eu respeito muito o Obama e a Merkel, mas eles subestimaram Putin. Com certeza, deveriam ter agido depois da ocupação da Crimeia, em 2014. Putin é um suicida? Essa é a grande questão. Estará disposto a destruir o mundo por seu ideal? Eu também não sei.”
Nós nos despedimos. O retorno de 1917, refugiados correndo por toda a Europa como rios sem fim. Você pode deslocar o rio, mas não pode pará-lo. A terra natal como um cinzeiro, a vida em trânsito. “Estamos pensando em ir para Riga”, diz o casal.
Surpreende-me que boa parte dos russos em Tbilisi se recuse a reconhecer a condição de refugiado, embora tenham sofrido ameaças por vezes bastante reais. Predominante há de ter sido o sentimento de que, sob as circunstâncias atuais, é desagradável permanecer por mais tempo na Rússia. E, já que estamos falando em história resumida em poucas palavras, isto é o que acontece: sobrecarrega-nos a sensação de que sermos humanos é de mau gosto. Mas, já que começamos, seguimos em frente.
No princípio da noite em que 100 mil georgianos, estima-se, manifestam-se diante do Parlamento em Tbilisi pela adesão à União Europeia, encontro Sasha Sofeev, membro do Pussy Riot. Ele também estava na manifestação, mas se dispõe a ir a um café nas redondezas para conversarmos. Por um momento, há um mal-entendido, porque um galerista diz que ele é produtor do Pussy Riot. “Eu não sou produtor”, protesta Sofeev, com suave indignação na voz. “Não temos produtor, não somos um grupo capitalista.”
O hino da União Europeia agora ressoa ao fundo. Alle Menschen werden Brüder – todos seremos irmãos. Se não lá, então que seja aqui; se não para sempre, ao menos por uma noite.
“Eu entrei para o grupo em 2012”, conta Sofeev. Está vestindo bermuda azul, camiseta preta e mantém um olhar algo zombeteiro. “Eu era fotógrafo. Observava e fotografava as apresentações do Pussy Riot. Resolvi participar também. Qualquer um pode entrar. Decidi pendurar bandeiras lgbtqia+ na fachada do prédio do serviço secreto em Moscou no dia do aniversário de Putin, 7 de outubro. Passei, então, um mês num centro de detenção para prisioneiros políticos. Com o intuito de combater os chamados extremistas, um agente secreto veio até mim e disse: ‘Que tal a gente sair e eu contar a todo mundo que você é bicha?’ Eu respondi: ‘Que tal a gente sair e eu contar a todo mundo que você trabalha para o serviço secreto?’ Os policiais comuns riram daquilo. Quem não tem ficha criminal, eles normalmente punem com uma multa e soltam, mas me deram pena máxima.”
Perguntei se ele não tinha sentido medo naquele centro de detenção. Ele me respondeu: “Em Moscou, não é como nas outras prisões. Lá, eles ainda temem publicidade negativa. Até fiz amizade com um dos guardas. Ele me ligou há pouco tempo para saber como eu estava. Na Geórgia também não é fácil para a comunidade lgbtqia+, mas estou mais seguro aqui do que lá.” Pergunto que, se qualquer um pode entrar para o Pussy Riot, então eu também poderia. “Tudo acontece espontaneamente”, ele me responde como uma verdadeira esfinge. “E não somos uma banda punk.” E então Sofeev foi-se embora, dissolveu-se na multidão que protestava.
Nós também vamos nos misturando aos poucos. “Os discursos são terríveis”, diz meu guia. “Mas à uma da manhã, eles param de falar, e a dança começa. Os protestos aqui sempre terminam em festa e dança.” As pessoas votam com os pés, até mesmo na luta contra Putin. Às vezes, fazem isso dançando na contramão do bom senso. Um homem agita diversas bandeiras da União Europeia de uma vez só. Um verdadeiro amante do Ocidente livre. Mas, quando chego mais perto, vejo que é um vendedor ambulante.
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