Uma das seções da Frente Negra Brasileira, no interior de São Paulo, em 1935 Foto: Reprodução/Memorial da Democracia
Uma biblioteca contra a indiferença
Os livros que trazem a reflexão fundamental de pensadores negros brasileiros sobre o racismo e a luta contra a discriminação
Em janeiro de 1937, Carolina Maria de Jesus saltou de um trem na Estação da Luz, em São Paulo. Nascida em Sacramento (MG), ela vinha de Franca, no interior paulista, e ficou impressionada com a multidão que transitava pelas ruas da capital. Todas as pessoas, além de bem vestidas, pareciam muito apressadas. Também chamou sua atenção outra característica dos moradores de São Paulo: a indiferença. Durante décadas, foi esse sentimento que a acompanhou mais de perto, enquanto ela trabalhava como catadora de despejos nas ruas da cidade. Até que, em 1960, foi alçada à fama, com a publicação de Quarto de despejo: diário de uma favelada, as memórias que escreveu nas horas vagas e foram compiladas pelo jornalista Audálio Dantas. O sucesso do livro foi gigantesco, mas não durou muito. Suas obras seguintes causaram menos impacto, e a escritora negra imergiu outra vez na indiferença, até sua morte em 1977, aos 62 anos.
Nas décadas posteriores sua obra praticamente cairia no esquecimento não fossem as ações editoriais pontuais do Círculo do Livro e da Ática, nos anos 1980 e 1990, para um clube de leitores e para o público infanto-juvenil, respectivamente. Foi preciso esperar até 2021 para que os livros de Carolina Maria de Jesus retornassem ao público pela Companhia das Letras, devidamente restituídos de sua importância social e literária. Junto com esse reconhecimento editorial, veio uma mostra de grande porte, Um Brasil para os brasileiros, realizada no mesmo ano pelo Instituto Moreira Salles¹, sobre a vida e a arte da escritora, em diálogo com a produção de artistas plásticos negros contemporâneos.
Indiferença parecida com a enfrentada por Carolina Maria de Jesus atingiu um número incalculável de artistas, escritores e pensadores negros no Brasil, sem falar dos indígenas. Foi como se eles não existissem, ou se apenas alguns existissem, em pequeníssimo número, desde que estivessem bem assimilados ao sistema intelectual e artístico dominante deste país racista.
Então, na entrada do século XXI, sinais de mudança começaram a aparecer no horizonte. Diante das crescentes pressões do antirracismo organizado, liderado por movimentos negros, das ações afirmativas de duas décadas no ensino superior, das políticas de fomento cultural e de inclusão, o mercado editorial se viu impulsionado a ampliar o escopo de suas publicações.
Assim, um número cada vez maior de intelectuais e escritores negros começou a ser incluído no elenco das editoras, que agora não os publicam apenas por questões de consciência. Além disso, eles representam uma direção inédita para a vida cultural brasileira, ao abri-la à diversidade, ao trazer questões, experiências e conhecimentos novos – ou muito antigos, atualizados – essenciais à compreensão do país. O interesse se reflete em lançamentos em diferentes áreas, das ciências sociais à história, da filosofia à política, da literatura aos quadrinhos.
A diversidade, com relação à cor negra, se apresenta como um negócio que pode ser interessante e lucrativo, tendo em vista o volume de publicações. Também há sinais de que já não é possível admitir a ausência de intelectuais negras e negros, indígenas, mulheres e homens trans nos principais catálogos editoriais ou em mostras artísticas do país. Todo mundo ganha com isso, especialmente o pensamento nacional, e espera-se que também ganhem os intelectuais que produziram esse pensamento por décadas, a maioria às próprias custas, sentindo na pele o drama de existir como tais.
Apesar do número crescente de títulos de autores negros, o mercado editorial tradicional não é uma instância do antirracismo brasileiro. É preciso lembrar como foram e são importantes as autoedições e a publicação das obras por meio da cotização. Deve-se lembrar, ainda, das pequenas editoras e gráficas comprometidas com os movimentos negros e com a publicação de autores brasileiros ou estrangeiros (sobre as quais escrevi em A descoberta do insólito: literatura negra e literatura marginal no Brasil, 1960-2020, Edições Sesc). Exemplos desses empreendimentos são a Mazza Edições, Nandyala Livros, Editora Malê, Kapulana, Ciclo Contínuo Editorial, Kitabu Livraria Negra, Pallas Editora, Selo Negro, entre outras. Elas abriram caminhos e romperam bloqueios, arriscando seus poucos recursos nas publicações, em uma época que outras editoras não ousavam fazê-lo.
A profusão de obras transmite um sinal positivo sobre o momento que vivemos. Mas será que isso significa que o Brasil está se tornando menos racista e comprometido com os direitos da população negra? Absolutamente não, como comprovam as estatísticas da violência sofrida pelas pessoas negras no país. Pode-se dizer, contudo, que agora estamos mais bem equipados para o debate de ideias e as lutas pela afirmação dos direitos dos negros. No futuro será importante perguntar se nós, leitores, nos tornamos mais e melhores antirracistas, comprometidos com causas que julgamos justas.
Em vista do número de obras publicadas recentemente, tem-se a impressão que o pensamento negro nasceu ou renasceu nas últimas décadas, o que não é verdade. Neste texto correrei o risco de traçar um breve panorama da produção de autores negros em ciências humanas desde o fim da Segunda Guerra até agora. Não é tarefa fácil, dada a amplitude do tema, e por isso mesmo ressalto que deixarei muitas lacunas pelo caminho deste pequeno guia que trago ao leitor.
O mito da democracia racial organizou, especialmente entre os anos 1930 e 1970, o debate político e intelectual brasileiro no que diz respeito às relações entre as diferentes etnias no país. Não foi um mito inventado em Casa grande & senzala (1933), estudo sociológico de Gilberto Freyre a respeito da formação da família patriarcal no Brasil (remonta à contínua formulação da ideia de povo no Brasil, em que as “três raças” se misturariam, ora de forma negativa, ora positiva), mas passou a ser associado a esse autor por causa de sua argumentação de que existiria no Brasil um equilíbrio entre esses dois polos antagônicos: o senhor e o escravo, o branco e o negro. Essa formulação intelectual, utilizada por agentes políticos, midiáticos, diplomáticos e pelo senso comum, serviu como mote político para acomodar tensões sociais e para negar o racismo como prática que se estende no Brasil da vida cotidiana até as estruturas do Estado.
Intelectuais negros e os movimentos sociais denunciaram, por décadas, o racismo e o preconceito racial contidos na obra de Freyre. Alguns desses pensadores foram agora reeditados e se tornaram conhecidos do grande público, em um contexto no qual as sequelas da escravidão persistem na sociedade, como prova o Censo de 2022. Atrasado pela política anticientífica e racista do governo anterior, que provocou um apagão de dados sobre a sociedade brasileira, o recenseamento foi finalmente realizado e revelou o tamanho da população quilombola no Brasil: mais de 1 milhão de pessoas em todo o território nacional. A estatística conferiu ainda mais importância à luta por direitos e à demanda por políticas públicas da parte dessa população, cujos direitos foram definidos pela Constituição de 1988.
Para muitos, os dados do Censo sobre o universo quilombola foram uma surpresa. Mas a reflexão sobre os quilombos nunca foi colocada de lado pelos pensadores negros, que sabem desde sempre que eles são muitos e persistentes em sua resistência à dominação. Durante todo o século XX, esses pensadores chamaram a atenção para a importância dos quilombos na construção de novas formas de sociabilidade e experiências políticas. Foi o que fez, nos anos 1930, Edison Carneiro (1912-72), em O quilombo de Palmares, de 1947, obra que infelizmente ainda não ganhou nova edição. O autor recupera a história da mais famosa estrutura de organização negra no Brasil colonial, dando ênfase às estratégias políticas, econômicas, culturais, diplomáticas dos aquilombados na Serra da Barriga, situando-os no universo colonial como interlocutores da Coroa portuguesa e também da diáspora africana.
Também Clóvis Moura (1925-2003) enfatizou a organização insurrecional de Palmares em Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas, lançado em 1959. Este livro se contrapunha, desde o título, ao mito da democracia racial e à ideia de equilíbrio dos antagonismos de Freyre. Um dos objetivos de Moura foi tornar a luta dos escravizados conhecida e reconhecida, especialmente por seus descendentes, para a efetiva vivência de direitos civis, sociais e políticos no século XX. Seu pensamento fecundo acerca da luta do povo negro contra o racismo é uma das redescobertas editoriais recentes, graças aos esforços de pesquisadores como Márcio Farias para trazer à luz as obras. Em 2019 foi reeditado Sociologia do negro brasileiro (Perspectiva), seguido de Rebeliões de senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas (Anita Garibaldi, 2020), O negro: de bom escravo a mau cidadão? (2021), Os quilombos e a rebelião negra (2022) e Brasil: as raízes do protesto negro (2023), os três últimos pela editora Dandara.
Essa imaginação política sobre os direitos, angulada pela perspectiva negra, animou também Abdias Nascimento (1914-2011). A obra desse escritor, jornalista, ator e dramaturgo voltou à baila na última década (em 2017, a Perspectiva publicou O genocídio do negro brasileiro), com o lançamento de diversos livros, entre eles Submundo: cadernos de um penitenciário, que ele não publicou em vida (Zahar, 2023), obra que faz, por meio da arte, uma muito atual reflexão sobre racismo e o encarceramento (predominantemente de negros). O volume reúne os escritos de Nascimento durante o período em que esteve preso, em 1941, por perseguição política, e organizou um teatro com encarcerados que seria a base para o Teatro Experimental do Negro e o Teatro Experimental do Negro de São Paulo, experiências centrais da organização e dramaturgia negras no século XX.
Ainda no campo da sociologia, outro nome essencial é o de Alberto Guerreiro Ramos (1915-82), autor de Negro sou: a questão étnico-racial e o Brasil (Zahar, 2023), uma reunião de seus artigos publicados entre 1949 e 1973, organizada pelo cientista social Muryatan Barbosa. Hoje parece novidadeiro falar em sociologia engajada, mas Guerreiro Ramos e outros de sua geração já o faziam. No caso dele, a teoria se estendeu à prática, na participação na política (chegou a deputado federal), em governos e na administração pública, ou na colaboração com o Teatro Experimental do Negro, de Abdias Nascimento. Também parece muito contemporâneo e parte do senso comum discutir a ideia de branquitude, a necessidade de estudar e explicar a dinâmica do racismo brasileiro a partir das formas de pensar e de agir do “branco brasileiro”. Mas essa é uma proposta que Guerreiro Ramos já havia feito em um ensaio dos anos 1950, A patologia social do branco brasileiro, que se encontra em Negro sou. Como parte de sua geração, devido a suas posições políticas, Ramos foi perseguido pelo golpe civil-militar de 1964 e sua vida teve um desenlace complicado: exilado, jamais voltou ao Brasil, e tampouco viu suas obras serem reeditadas nos anos 1990 (pela Editora UFRJ), hoje quase todas elas fora de mercado.
Entre esses cientistas sociais do imediato pós-Segunda Guerra é importante lembrar intelectuais que anteciparam discussões importantes sobre psicanálise, negritude e relações sociais. Dentre elas, a paulista Virgínia Leone Bicudo (1910-2003), que se formou em ciências sociais na Escola Livre de Sociologia e Política, em São Paulo, mas se encaminhou mais tarde para a psicanálise, tendo se associado à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, a primeira sociedade psicanalítica da América Latina.
Antes de se enveredar pelo pensamento de Freud, ela escreveu em 1945 uma tese pioneira em ciências sociais, Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Publicada somente em 2010, com organização de Marcos Chor (para a Editora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo), o livro está fora de catálogo, o que demonstra que ainda há muita coisa para as editoras garimparem. O trabalho de Bicudo mostra o processo prático de realização e acomodação do racismo no âmbito interpessoal e como se inculcam comportamentos racistas entre brancos, negros e mestiços. As formas coletivas de resistência ao racismo também foram assinaladas por Bicudo na parte da pesquisa apresentada na tese e muitas décadas depois em seu livro sobre da Frente Negra Brasileira (1931-37), uma das primeiras organizações políticas negras do país, e seu jornal, A Voz da Raça.
Uma boa maneira de seguir a reflexão antirracista nos últimos 45 anos no Brasil é acompanhando os passos de alguns dos principais nomes ligados ao Movimento Negro Unificado (MNU). Seu ato de criação, em 1978, ocorreu no Centro de São Paulo, culminando em uma manifestação nas escadarias do Theatro Municipal, motivada por vários casos de racismo que ocorriam na cidade à época. Com intelectuais como Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento e Thereza Santos atuando lado a lado de jovens militantes negros e negras, o MNU resultou do aprofundamento crítico do pensamento negro a respeito da luta por direitos dos negros. Com isso, estimulou a cena política nacional e promoveu a memória dos negros no país, como ao defender o tombamento do Quilombo de Palmares, em Alagoas (o que ocorreu em 1985) e ter intelectuais que ajudaram a incluir a questão da propriedade das terras quilombolas nos debates da Constituinte (o que resultou na efetiva inclusão na Constituição, em 1988).
Lélia Gonzalez (1935-94) esperou quase quarenta anos para ter seus artigos e ensaios reunidos em livro, o que foi feito em Por um feminismo afro-latino-americano, organizado pelas sociólogas Márcia Lima e Flávia Rios (para a Editora Zahar, em 2020). Textos como Racismo e sexismo na cultura brasileira, com seus estudos sobre a linguagem brasileira (o “pretuguês”), ou aqueles em que ela trata da construção da solidariedade política e cultural de mulheres negras (Por um feminismo afro-latino-americano e As amefricanas do Brasil e sua importância) voltaram com força para moldar o vocabulário e a consciência dos novos estudantes e ativistas.
Seu livro Lugar do negro, escrito em parceria com o sociólogo Carlos Hasenbalg e publicado pela primeira vez em 1982 (relançado em 2022 pela Zahar), mostra como o lugar subalterno do negro no Brasil foi naturalizado, justificando assim o racismo no país e autorizando a discriminação e a série de injustiças. Por contradição, essa situação gerou também a insubordinação e a insurgência de pessoas negras que questionam sua posição inferior. Os trabalhos de Gonzalez são também importantes para que possamos refletir sobre questões que permanecem sem resolução na experiência coletiva: as violências sexuais estruturantes das relações sociais, a discriminação sofrida em diferentes níveis pelas pessoas negras, o racismo como uma componente fundamental da vida política brasileira. Por outro lado, suas análises também ajudam a entender as estratégias de lutas e solidariedade, em particular de mulheres negras, que construíram pouco a pouco o que hoje chamamos de “feminismo negro”.
Na extensa obra de Abdias Nascimento (que vem sendo reeditada pela Perspectiva), dois livros se destacam: Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, de 1979, e O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista, de 1980. São trabalhos importantes para compreender as entranhas assassinas do racismo brasileiro e a possibilidade de um projeto político autônomo para o povo negro. Esses eram os objetivos da geração de 1978, do MNU, com a qual Nascimento dialogou: denunciar a existência e a prática sistemática do racismo, agudizado pela ditadura com sua violência letal, mas também propor uma plataforma de organização política para o povo negro. Esse projeto coletivo, chamado por Abdias Nascimento de “quilombismo”, evidencia algo que será muito importante para o movimento negro nos anos seguintes – até nossos dias. O quilombo, especialmente o de Palmares, como forma de organização política, simboliza a capacidade de autonomia, luta por direitos, negociação e heroísmo.
Também a historiadora Beatriz Nascimento (1942-95), autora de Uma história feita por mãos negras (Zahar, 2021) e O negro visto por ele mesmo (Ubu, 2022), aprofundou pesquisas sobre as comunidades quilombolas e reflexões sobre a continuidade dos quilombos no século XX. Novamente, o quilombo como unidade política e cultural é acionado para discutir a possibilidade de uma história negra no país que não seja apenas a da subalternidade. Nascimento, retomando as propostas de Carneiro ou do próprio Abdias, insere a discussão sobre o aquilombamento na diáspora africana, propondo a reconstrução da experiência negra brasileira que foi extremamente fragmentada no Brasil. Esse seu projeto intelectual já estava presente no filme que coproduziu com a diretora Raquel Gerber, em 1989, intitulado Ôrí. E seus trabalhos, há muito fora de circulação, têm sido recuperados pelo geógrafo e cientista social Alex Ratts, responsável pela organização de sua obra há anos.
Outra intelectual muito atuante com a geração do MNU foi Neusa Santos Sousa (1948-2008), médica formada pela Universidade Federal da Bahia que se especializou em psiquiatria e, mais tarde, dedicou-se também à psicanálise, seguindo a linha lacaniana. Sua dissertação de mestrado em psiquiatria na Uerj, Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, publicada em 1983 (e reeditada em 2021 pela Zahar) tem se tornado uma obra de referência. O livro acompanha aspectos desenvolvidos por Virginia Leone Bicudo, décadas antes, sobre o dilaceramento psíquico causado pelo racismo e o apelo ao embranquecimento. A obra é também um intenso diálogo com as ideias do psiquiatra martinicano Frantz Fanon a respeito da produção de uma consciência racial negra. Outro livro que ficou quase quarenta anos no ostracismo editorial convencional, mas não fora do radar de gerações de intelectuais negras e negros que o leram, apesar de pouco inserido em bibliografia de cursos universitários.
Sem a geração do MNU não haveria solo fértil para as ideias da filósofa e ativista paulistana Sueli Carneiro, hoje septuagenária. Seu trabalho é um amálgama de forças e ideias, numa longa trajetória pessoal e coletiva de lutas antirracistas e antimachistas, que a levou a entrar, sair e voltar à universidade, até que, em 2005, finalmente defendeu sua tese de doutorado em educação na USP. O texto circulou em cópias ao longo de duas décadas e só foi lançado em livro no ano passado, com o título de Dispositivo de racialidade: a fundação do outro como não-ser como fundamento do ser (Zahar). A investigação do racismo brasileiro feita por Carneiro é tratada dentro da filosofia política, mostrando os modos como se gerou a subalternização do negro, mas também como se produzem as formas de resistência e rebelião.
Pode soar estranho que ainda falemos da escravidão no Brasil, mas esse é um passado que não passa no país. Todos os dias, surgem fatos que demonstram como as formas de poder organizadas pelo racismo e o sistema de violência que ergueu ameaçam as vidas negras de maneira mortal, após relegá-las a uma posição subalterna em todos os âmbitos, da habitação ao trabalho, da saúde à educação. Qualquer que seja a experiência social brasileira, apesar da propalada igualdade dos cidadãos perante a lei, o racismo é um marcador incontornável e um campo aberto à luta por direitos da parte da comunidade negra.
Alguns autores e autoras contemporâneos, em continuidade com trabalhos anteriores, tratam justamente da maneira como se pode enfrentar hoje essa situação – tarefa que não compete exclusivamente às pessoas negras. Uma delas é a psicóloga Maria Aparecida da Silva Bento (1952), que participou da fundação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), organização criada há mais de trinta anos. Silva Bento é uma das mais respeitáveis intelectuais de um debate que tem invertido o sinal analítico dos estudos sobre o racismo, ao propor que se pense o papel da pessoa branca nessa relação e exigir que esse sujeito social se comprometa de fato com ações antirracistas.
Em sua tese de doutorado defendida há mais de vinte anos na USP e retomada em certos aspectos no importante livro como O pacto da branquitude (Companhia das Letras, 2022), ela argumenta que será necessário que o branco rompa com as relações de privilégios que o beneficiam e pelas quais tem responsabilidade. A branquitude – conceito que hoje extrapolou o espaço da academia e da militância negra – estabelece entre os brancos uma rede entre iguais, com compromissos de manutenção e perpetuação do seu poder sobre os não brancos. É um processo de aprendizagens e internalizações de modelos sociais por meio do qual se naturaliza a experiência da iniquidade. Reconhecer a condição do ser branco, os significados da cor na história das desigualdades, e romper com tal condição é um desafio primordial para a própria pessoa branca enfrentar o seu racismo.
O pacto da branquitude racista é mais antigo do que se imagina e estrutura uma visão de mundo, afetando a construção da própria modernidade ocidental. É o que demonstra a filósofa e artista plástica carioca Denise Ferreira da Silva em Homo modernus: para uma ideia global de raça (Cobogó, 2022), publicado pela primeira vez nos Estados Unidos em 2007. Professora no Instituto de Justiça Social na Universidade da Columbia Britânica, em Vancouver, no Canadá, ela coloca em questão nesse livro importante as próprias bases do pensamento moderno, passando em revista os seus conceitos e princípios que levaram à fundação de um sistema científico e teórico racialmente hierarquizado, cuja influência se estende até a atualidade.
Em três partes, o livro analisa os fundamentos da epistemologia e da ontologia da modernidade e do sujeito moderno. Seu foco são as investigações sobre os saberes que se ocuparam da ideia de homem (a filosofia e as ciências sociais, com destaque para a antropologia) e as justificações jurídicas e éticas para a máquina colonial e a produção da colonialidade (a interiorização da dominação). A noção de raça e a efetivação do racismo como relação social e de poder são, segundo Ferreira da Silva, aspectos inerentes à modernidade e seus desdobramentos: o capitalismo, a industrialização, o Estado nacional, o nacionalismo, a ciência e a própria democracia liberal. A hierarquização promovida excluiu todos que não cabiam no projeto em curso, os “outros” da modernidade, ou seja: os não brancos, os não europeus ocidentais.
Na reflexão de Ferreira da Silva, uma das proposições de um pensamento antirracista é ultrapassar a ideia de raça no debate sobre o modelo de sociedade que se queira construir. Por esse caminho, a filósofa brasileira se aproxima de outros pensadores críticos do conceito de raça e da subalternização que ela historicamente produziu, colocando-se em diálogo com relevantes pensadores contemporâneos, como os ingleses Charles Mills (1951-2001) e Paul Gilroy (1956), a indiana Gayatri Spivak (1942) e americana Judith Butler (1956).
Questões parecidas são evocadas também no mais recente livro do sociólogo Muniz Sodré, O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional (Vozes, 2023). O autor está preocupado com a gênese da forma de racismo que se implantou no Brasil no período pós-abolição e como a República brasileira, desde o seu nascedouro, foi atravessada por ideologias segregacionistas e eugenistas, por políticas de “melhoramento da raça brasileira” por meio da imigração europeia, bem como pela violência policial contra negros e pobres.
A nova ordem republicana, logo nas primeiras décadas do século XX, acaba por produzir o que Sodré chama de uma “forma social escravista”, mas em um país sem escravidão formal, onde a lei ostenta um princípio de igualdade racial que não realiza efetivamente. A sociedade brasileira, apesar de livre da escravidão, se estrutura desde a República em termos racistas para a fruição desigual de direitos e manutenção de hierarquias entre desiguais. Como Ferreira da Silva, Sodré também reflete nesse livro sobre os aspectos que nos aproximam e nos distanciam dos Estados Unidos, duas sociedades onde a modernidade escravista aclimatou do racismo ao liberalismo, mas seguindo modelos distintos (ainda que com pontos de contato).
Por fim, quase encerrando 2023, um esforço conjunto de intelectuais contemporâneos deve ser também lembrado, como o encontro atual do Brasil consigo mesmo. “Para que servem os dicionários e enciclopédias?”, se pergunta Kabengele Munanga, antropólogo africano há mais de quatro décadas residente no Brasil, durante anos docente da USP e seu mais recente professor emérito. A questão está longe de ser retórica, ao ser inscrita na orelha do Dicionário de relações étnico-raciais contemporâneas, organizado por Alex Ratts, Flávia Rios e Marcio André dos Santos (Perspectiva, 2023). De verbetes que vão de “ação afirmativa” a “xenofobia”, com um conjunto expressivo de pesquisadoras e pesquisadores das principais universidades brasileiras e estrangeiras, o livro é uma excelente contribuição a precisar os sentidos de termos empregados no debate atual sobre as relações raciais.
Os verbetes não se propõem somente a historiar conceitos, mas também a interpelá-los criticamente, verificando alcances, limites e renovações para temas do presente. Quais os sentidos do “antirracismo” e de “consciência negra” hoje? Que histórias e ressignificações têm termos como “associativismo negro”, “cinema negro”, “colonialismo” ou “genocídio”? Há novidades sugeridas pelo debate a respeito de “convivialidade” e “gentrificação”, visto pelo prisma das relações raciais? “Islamofobia”, “perigo amarelo”, “povos indígenas”, de um lado; de outro, “filosofias africanas”, “filosofia afrodiaspórica”, “mulherismo africana”: o que isso quer dizer para agendas do pensamento e das lutas antirracistas no século XXI? Essas, entre outras entradas no dicionário, podem ser um bom mapa para dialogar e agir no tempo presente, tendo em vista a longa história de algumas questões que permanecem não resolvidas até agora.
A literatura negra estabeleceu uma conversa intensa com o pensamento crítico negro ao longo de todo século XX – até a atualidade. Das experiências convergentes, eu gostaria de ressaltar algumas poucas, uma vez que o objeto desse texto são as ciências humanas, e não as obras literárias.
Uma dessas experiências foram os Cadernos Negros, criados em 1978 pelos escritores Oswaldo de Camargo, Cuti, Mário Jorge Lescano e Hugo Ferreira, e que duram até hoje. O título foi uma dupla homenagem: à escrita negra e ao aquilombamento, claro, mas também a Carolina Maria de Jesus, falecida no ano anterior, cujos escritos foram descobertos nos cadernos que ela coletava nas ruas da cidade e nos quais escreveu seus diários, peças, romances, contos e poesias.
Os Cadernos Negros foram responsáveis por publicar autores e autoras hoje consagradas e até então inéditos, como Miriam Alves, Allan da Rosa, Elizandra Souza, Cristiane Sobral e Conceição Evaristo, além de ser um espaço de renovação permanente da literatura negra brasileira como projeto intelectual e artístico. Desde 1982, a publicação é organizada pelo coletivo Quilombhoje, atualmente comandado pela dupla de escritores Esmeralda Ribeiro e Márcio Barbosa. Graças aos esforços conjuntos de vários escritores negros, autofinanciados, nunca os Cadernos Negros deixaram a paisagem editorial, mantendo assim a diversidade no meio literário brasileiro.
A importância dos “patriarcas” paulistas Carlos de Assumpção, de 96 anos, e Oswaldo de Camargo, de 87 anos, ultrapassa o campo literário: eles são antigos militantes de lutas antirracistas. Os dois se conheceram na década de 1950, na Associação Cultural do Negro de São Paulo, criada em 1954 e que reuniu cerca de setecentos sócios. Eram professores, jornalistas, empregadas domésticas, funcionários públicos e outros profissionais, interessados em artes, literatura, política e esportes.
Assumpção é essencialmente um poeta, mas seu trabalho literário está impregnado de uma evidente dimensão política. Basta lembrar a leitura feita por ele, em 1958, na Associação Cultural do Negro, de seu poema mais famoso, Protesto, que expressa a indignação com o racismo e a história de discriminação do negro no Brasil. Em 2020, Assumpção publicou a antologia Não pararei de gritar (Companhia das Letras), título que remete a um verso do poema Protesto. Não parar de gritar é o mesmo que não parar de lutar – trata-se de um mantra a ser repassado ao longo de gerações, o que ele faz sobretudo em leituras em saraus e coletivos, conectando-se a uma nova geração de poetas negros, periféricos e de slams.
Camargo estreou na vida literária em 1959, com o volume de poemas Um homem tenta ser anjo. Sua trajetória é similar à de tantos intelectuais negros: ele editou a maioria de seus livros com dinheiro do próprio bolso e passou décadas conhecido apenas por pesquisadores especializados. Entre 2021 e 2023, foram republicados (pela Companhia das Letras) o volume de contos O carro do êxito (lançado originalmente em 1972), a coletânea 30 poemas de um negro brasileiro (1961) e a novela A descoberta do frio (1979). Camargo é um retratista de pessoas negras que vivem a discriminação e lutam contra ela, buscando soluções para os problemas impostos por sua condição racial. Seus textos compõem o projeto estético e político da literatura negra brasileira contemporânea: contar histórias que rompam com os estereótipos, estimulam a solidariedade e valorizam a memória social negra como forma de luta antirracista.
A marca constante da indiferença, com a qual iniciei este texto, que atravessou a experiência intelectual e política de intelectuais negras e negros no século XX, parece ter uma cena mais arejada reaberta nos últimos anos. O pensamento negro, diversificado, está exposto nessas obras citadas e em muitas outras, e somente se manteve no radar, à espera de escuta sensível e ventos novos do mercado editorial, pela persistência de intelectuais insistentes. Lê-lo é homenagear seus autores e autoras, mas também se prover de posições críticas para o enfrentamento ao anti-intelectualismo discriminatório e racista que, muitas vezes em nossa história, igualmente teima em não se deixar passar, com consequências nefastas para todos nós.
¹ O fundador da revista piauí, João Moreira Salles, é presidente do conselho do Instituto Moreira Salles.
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