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    A medalha da categoria OBE Foto: Matt Limb/Alamy/Fotoarena

anais da monarquia

Uma brasileira na realeza

Economista que vive em Londres há duas décadas recebe condecoração da família real similar a de David Beckham por sua atuação em investimentos de impacto social e ambiental

Tania Menai, de Nova York | 15 jun 2024_08h43
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Em uma noite de maio passado, o britânico Robert Datson checava a correspondência recém-entregue pelo correio no apartamento londrino onde vive com a esposa, a mineira-paulistana Daniela Barone Soares. No topo de um envelope timbrado enviado pelo gabinete do primeiro-ministro Rushi Sunak, figurava a frase: “On His Majesty’s Service”, ou “A Serviço de Sua Majestade”. Logo abaixo, lia-se “Urgente e Pessoal”. A destinatária era Daniela, mas Robert não se conteve. Mesmo sabendo que encontraria a companheira horas mais tarde para assistir a uma peça de teatro, a curiosidade foi irresistível. Decidiu então abrir  a missiva. Ao encontrá-la, ele leu o conteúdo da carta em voz alta. Os pais de Daniela, que visitavam o casal vindos de São Paulo, assistiam à cena. 

Escrita em 8 de maio, a mensagem de sete parágrafos assinada por uma diretora do gabinete do primeiro-ministro começava assim: “Escrevo com estrita confidência para lhe informar que você foi recomendada à sua Majestade, o Rei, para a honra da Ordem do Império Britânico, na lista das Honras do Dia de Seu Aniversário [O rei Charles nasceu em 14 de novembro, mas a celebração pública é uma data móvel – neste ano, 15 de junho]. A citação será: Chief Executive Officer, Snowball. Por serviços em Negócios e Investimento de Impacto. Essa recomendação foi feita pelo primeiro-ministro aconselhado pelo comitê independente das Honras Principais seguindo uma avaliação independente.”

Oferecer o título de “Officer” da Ordem do Império Britânico (em inglês, Officer of the Most Excellent Order of the British Empire, ou OBE) é o reconhecimento da Inglaterra pela contribuição que Daniela fez ao longo de duas décadas ao país no setor de impacto social. Atualmente, a economista comanda um fundo de investimentos sediado em Londres, mas com atuação global. “Minha primeira reação foi de extrema surpresa. Mas depois parei e pensei: não acredito! Fiquei muito feliz”, disse ela à piauí. “Vivendo na Inglaterra por tantos anos, nos inteiramos do peso desta condecoração numa sociedade aristocrática”, celebra ela, que conquistou cidadania britânica em 2007.

A partir deste 15 de junho, Daniela poderá usar o título OBE depois de seu sobrenome em todas as suas assinaturas e apresentações, e sua titulação será divulgada na The Gazette, o diário oficial do país, junto com os demais homenageados. Ainda este ano, eles receberão a medalha da Ordem das mãos do Rei, da Rainha ou do Príncipe William, numa cerimônia no Palácio de Buckingham. Daniela também poderá usar a capela no interior da Catedral de Saint Paul, em Londres, para casamentos, batizados ou memoriais. “O OBE por si só não traz uma vantagem profissional direta, mas, sem dúvida, tem uma influência positiva em reputação, credibilidade e visibilidade”, diz a executiva.

As condecorações britânicas datam de 1066, e foram sendo adicionadas ao longo dos séculos. A Ordem do Império Britânico, categoria da medalha com a qual a Daniela será agraciada, foi estabelecida pelo Rei George V em 1917 para condecorar aqueles que serviram o país de forma não combativa na Primeira Guerra Mundial. Posteriormente, o reconhecimento foi estendido àqueles que contribuíram para as artes, ciências, caridade e serviço público. 

Esta Ordem é dividida em cinco classes. A primeira se chama GBE (Knight Grand Cross ou Dame Grand Cross), que automaticamente estabelece o título de Sir ou Dame. Entre eles, estão o ex-primeiro-ministro Winston Churchill, o biólogo David Attenborough, e os músicos Elton John, Ringo Starr e Mick Jagger. Em seguida vem os KBE (Knight Commander) e DBE (Dame Commander), que também usam os títulos de Sir e Dame. Ali figuram o estilista Ralph Lauren, o cantor Rod Stewart, e os brasileiros Pelé e Gilberto Freyre. 

A terceira classe é a Commander, ou CBE, a qual inclui o ator Anthony Hopkins, a atriz Kate Winslet e o cientista Stephen Hawking. Os dois cavalheiros receberam também o título de Sir, como acontece em alguns casos nesta classe. Em seguida, vem a classe dos Officers ou OBE, onde está Daniela, ao lado do ex-jogador de futebol David Beckham e sua esposa, Victoria, e do climatologista brasileiro Carlos Nobre, agraciado em 2021 pelos quarenta anos de pesquisas sobre o meio ambiente. A quinta posição se chama Members ou MBE, composta por cantores como Adele e Ed Sheeran. 

O caminho até a condecoração tem doses de mistério. Começa com a indicação anônima feita por qualquer cidadão no site do governo, assinalando um ângulo específico de atuação do escolhido (entre eles filantropia, medicina, música, artes) a partir de demonstrações concretas de que a pessoa impactou positivamente a sociedade, superou obstáculos e foi além do esperado para alcançar seus objetivo.

O comitê das Honras Principais, então, faz uma minuciosa investigação e entrevista profissionais que conviveram com os candidatos ao longo dos anos. Todo trabalho de pesquisa é feito com grande discrição. Este comitê decide ainda qual tipo de medalha corresponde a atuação do postulante. Nem todos os concorrentes passam por este pente fino: se a carta não chegar em dois anos a partir da indicação, é sinal de que a condecoração não ocorrerá. Mas ninguém fica desolado justamente por desconhecer sua participação no processo. Vale a máxima: o que os olhos não veem, o coração não sente.

Assim como outros listados para o seleto grupo, Daniela não faz ideia de quem a indicou e nem quem estará na lista divulgada na noite de sexta-feira (14). Sabe-se, porém, que o comitê tem procurado garantir a representatividade da população, diversificando a premiação entre gêneros, etnias, pessoas com alguma deficiência, grupos sub-representados, orientação sexual, localização geográfica e camada econômica. 

Daniela é formada em economia pela Unicamp e vive em Londres há duas décadas Foto: Igor E.

 

Daniela tem 53 anos e é formada em economia pela Unicamp. Ela ingressou no mercado financeiro pelo Citi, em São Paulo. Três anos mais tarde, cursou MBA na Harvard Business School. Seguiu a carreira no Goldman Sachs e no BankBoston Capital, em Nova York, Boston e, finalmente, em Londres. Em 2003, deixou o setor, uma transição que levou três anos de pesquisas e reflexões. Ela diz que o receio da mudança veio acompanhado da certeza de que poderia ajudar o mundo de outra forma. 

Desde então, cooperou com diversos projetos no âmbito do impacto social. Tornou-se CEO da Impetus Trust, organização não governamental local que aplica os conceitos de venture capital no mundo da filantropia, dando assistência a organizações inglesas que lidam com temas sociais em diversas áreas. Nesse período, a entidade recebeu o Charity Awards, o equivalente ao Oscar das instituições filantrópicas inglesas, e Daniela foi citada pelo jornal britânico The Independent entre as cem pessoas que fazem do Reino Unido um lugar melhor. 

Em 2011, a brasileira foi convocada para compor o Advisory Board de um dos primeiros bancos de investimento de impacto no mundo, o Better Society Capital, cuja missão é investir e atrair recursos para combater a desigualdade no Reino Unido. Dois anos mais tarde, integrou o National Advisory Board, uma iniciativa do então primeiro-ministro David Cameron quando o Reino Unido presidiu os países do G8 (hoje G7, sem Rússia). O objetivo era criar condições e regulamentações para catalisar o desenvolvimento deste mercado globalmente.

Com duas décadas de atuação no segmento, Daniela afirma que o assunto ganhou espaço na agenda econômica mundial, mas ressalta que as inversões não ultrapassam 1% dos cerca de 130 trilhões de dólares em ativos sob administração no mundo. “Não há como investirmos do mesmo jeito. Não podemos mais destruir o planeta. Acredito que chegamos a um ponto de inflexão, onde aplicações que não levam em conta questões sociais e ambientais vão sofrer desvalorização”, alerta. 

Há quatro anos, Daniela é CEO da Snowball Impact Investment, um fundo de investimentos criado em 2019 orientado pelos objetivos estabelecidos pelas Nações Unidas para um desenvolvimento sustentável, como transição energética, ecossistemas regenerativos, eficiência de recursos, saúde e bem-estar, equidade, entre outros. 

A Snowball tem portfólio diversificado entre empresas privadas, listadas no mercado e fundos. A diferença é que, para além das análises tradicionais (equilíbrio de risco, perfil do setor, retorno financeiro), há um olhar para os efeitos que aportes em setores ambientais e sociais podem causar. Uma das realizações apoiadas é a Women in Safe Homes, no Reino Unido, que provê moradia decente e segura para mulheres em situação de risco. Outra é a New Globe, que atua na África e na Ásia, focada na educação de crianças em áreas de ensino precário. 

“Criamos uma metodologia para acompanhar cada dimensão da operação”, vangloria-se a brasileira. “Por exemplo, numa escala de 1 a 5, medimos a escalabilidade da aplicação, além do tempo que se leva para alcançar o objetivo. Estudamos cuidadosamente os níveis de impacto em cada grupo de beneficiários afetados direta ou indiretamente. Todas as decisões fazem parte deste processo, incluindo monitoramento e pesquisas sobre as melhores práticas.”

A CEO afirma que na Snowball o primeiro passo para investir é olhar para o tipo de ativo que o fundo precisa naquele momento em seu portfólio. Depois, eles observam tendências e soluções de problemas. Por exemplo: um estudo feito pela World Wide Fund for Nature (WWF) e pela auditoria PwC apontou que o mundo não vai produzir de forma sustentável proteína suficiente para suprir a demanda mundial a partir de 2040. 

“Teremos um déficit. E qual a forma de resolver esse dilema? Certamente não é por meio do gado tradicional, e nada que já tenha desmatado florestas, ou consumido quantidade ilimitadas de água”, explica. A Snowball já investe no desenvolvimento de proteínas, como marcas de carne feitas em laboratório. Mas, como se trata de um setor que levará anos para escalonar, devido à sua complexidade, preço e distribuição, seu time passou a estudar soluções em outras áreas, como a aquacultura sustentável. 

Para isso, a equipe pesquisou a categoria do Desenvolvimento Sustentável da ONU que lida com a vida marinha, buscando entender os pilares que tornam a aquacultura sustentável. “A indústria de pesca e de aquacultura tem muita precariedade em relação à mão de obra, incluindo escravidão. Queríamos garantir que o fundo em que desejávamos investir estava atento a essa questão”, diz Daniela.

O resultado dessa jornada foi a escolha da eFishery, uma startup criada em 2013 na Indonésia, um país onde há 3 milhões de piscicultores. A startup, que virou unicórnio (ou seja, atingiu um valor de mercado de mais de 1 bilhão de dólares), foi criada para resolver um dos maiores problemas do setor: o desperdício em comidas para peixes, que gera desperdício financeiro e polui as águas. Sua solução foi adaptar um sensor que, quando submerso, identifica se os peixes estão com fome pela forma como eles se movimentam. Se há fome, o sensor solta comida. Caso contrário, retém. 

A ferramenta, salienta Daniela, resultou em uma redução de 25% no acúmulo de comida no fundo do mar e de 30% nos gastos das pisciculturas com a alimentação dos peixes. “Com essa economia, um piscicultor indonésio pode prover uma melhor educação para os filhos, com repercussão na economia local”, comenta. “A eFishery já é um unicórnio servindo hoje 200 mil piscicultores em 280 cidades da Indonésia, uma fração de todo o setor no país e do mercado global. Este é o tipo de apoio que mais gostamos: quanto maior o impacto, maior o lucro. Quanto maior o retorno, maior o impacto.”

Daniela e o marido guardam uma tradição: sempre que um dos dois começa em um novo emprego, eles saem para jantar em algum restaurante sofisticado de Londres. Paga a conta quem está iniciando a nova jornada profissional . “Desta vez, ainda não decidimos onde ou quando vamos comemorar. E como não se trata de um novo trabalho, também está em aberto quem vai quitar a dolorosa. Porque, provavelmente, ela será proporcional ao motivo do jantar”, brinca. “Mas o Robert já insinuou que quem ganha a medalha é quem passa o cartão.” 

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