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Uma canção de Bob Dylan

É curioso como às vezes grandes obras de arte passam por nós sem obter uma resposta à altura. Demorou para que eu compreendesse a grandeza de Tangled up in blue, uma canção de Bob Dylan. A letra conta a história de um relacionamento amoroso, suas idas e vindas através do tempo.

Paulo da Costa e Silva | 20 jun 2014_14h47
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É curioso como às vezes grandes obras de arte passam por nós sem obter uma resposta à altura. Demorou para que eu compreendesse a grandeza de Tangled up in blue, uma canção de Bob Dylan. A letra conta a história de um relacionamento amoroso, suas idas e vindas através do tempo. O pano de fundo é a transição dos anos 1960 para os 70, e a história particular do casal aos poucos vai revelando de modo magistral, a história mais ampla da geração do drop out – a geração que abandonou o território familiar para cair no mundo. As referências a esse imaginário geracional são precisas e concretas – o encontro que acontece quando a mulher está prestes a se divorciar, a debandada para New Orleans, os sucessivos empregos, o período de moradia num vão de escada na Montague Street (Brooklyn, Nova York), numa época romântica em que “havia música nos cafés à noite / e revolução no ar”.

Os sucessivos ciclos de encontros, desencontros e reencontros do casal são narrados dentro de uma estrutural musical bastante simples e recorrente, típica da tradição do blues, que, em sua dinâmica de tensões e repousos, se assemelha ao movimento de ondas que se armam e depois quebram na areia. As estrofes são iniciadas com frases mais curtas e descritivas (girando em torno de dois acordes), e depois ganham tensão com frases mais longas e maior progressão de acordes, culminando sempre na cadência final do refrão de fechamento (“tangled up in blue”). Nesse segundo momento das estrofes o canto é acelerado. Eles fornecem ocasião para que Dylan demonstre sua imensa destreza com as palavras, como poeta, e também como cantor. As construções verbais trazem imagens inesperadas e lances espontâneos de sentido, mas sempre com imensa beleza plástica, com o fascínio dos sons da língua inglesa. É uma experiência hipnótica ouvir o modo como as consoantes são plasmadas no canto de Dylan, de como sua voz rascante, suja – que um crítico dos anos 1960 descreveu como “a voz de um cachorro que ficou com a perna presa no arame farpado” – injeta vida nelas. Ao mesmo tempo, o compositor é mestre em encontrar “espaços de discurso” no interior da canção. Fica tudo meio embaralhado: canto melódico, fala coloquial, discurso estilizado.

Há algo de grandioso e de heróico no estilo de Dylan, o que acaba por enquadrar a singela história do casal de Tangled up in blue – suas alegrias, intensidades, frustrações e decadências – numa moldura épica. O resultado é que sentimos a força não apenas do cruzamento entre história individual (com “h” minúsculo) e a História do tempo (com “H” maiúsculo), mas também da convivência intensa entre vulgaridade e nobreza. Os saltos temporais vão sendo pontuados de modo indireto por detalhes que fazem parte do universo da narrativa – as mudanças de cidade e de emprego, a indagação final sobre o que teria acontecido com a vida dos amigos de outrora (“alguns são matemáticos / algumas são casadas com marceneiros / não sei como tudo isso começou / não sei o que estão fazendo da vida”).  A letra é tão visual e precisa que poderia ser vertida diretamente para o cinema, na forma de um road movie. Dylan é ao mesmo tempo roteirista e diretor da canção. Está ao mesmo tempo dentro e fora dela. Transita narrativamente entre pontos de vista, entre a terceira e a primeira pessoa. Cria cenas de forte impacto dramático e grande riqueza de detalhes.

Na quarta estrofe, por exemplo, ele encena o reencontro do casal num bar de topless. O personagem, que ali havia parado para tomar uma cerveja, descobre que seu antigo amor estava trabalhando como stripper. Começa, então, a observá-la de perfil sob a luz dos refletores, até que mais tarde, “quando a multidão dispersava”, ela se aproxima por trás de sua cadeira e diz: “eu não sei o seu nome?” Desconcertado, o narrador conta, na primeira pessoa, que “murmurou algo em voz bem baixa”, enquanto ela “estudava as linhas do meu rosto”. “Devo admitir que me senti um pouco constrangido, quando ela se abaixou para amarrar os cordões do meu sapato”, arremata o canto. Talvez nada seja mais revelador das misérias da América do que cenas de nostalgia e decadência em clubes de topless – o ritmo lento da tristeza contrapondo-se à demanda non stop por mais espetáculo, por mais imagens, mais estímulos excitantes. A cena é tão bem descrita que quase imagino as marcações dos atores num set de filmagem. Além disso, a livre mistura de banalidade, decadência e das ridículas pretensões humanas parecem resumir um pouco a face miserável da experiência americana, mas sem deixar de jogar sobre ela uma tinta de afeição. Uma estranha mistura de solidão, abandono e audácia, tudo isso combinado com uma atmosfera existencial de road movie – que é a atmosfera de grande parte da tradição do blues -, e que me faz pensar em alguma semelhança com filmes como Paris Texas, de Win Wenders. Logo na primeira estrofe o protagonista evoca na lembrança o duro momento em que “estava em pé na beira da estrada, com a chuva molhando meus sapatos, indo para a Costa Leste. Deus sabe que paguei minhas dívidas tentando me virar”.

Há ainda outro elemento essencial que faz de Tangled up in blue uma grande canção. Esse elemento é bastante difícil de ser colocado em palavras. Vem do fato de que a música possui um indefinível traço de sinceridade, uma nota de verdade trazida da vivência real do compositor. Pode soar romântico, mas me parece que a canção nasceu de uma necessidade. Ela aconteceu em um momento em que Dylan precisava fazer um acerto de contas com o passado. De fato, antes de apresentar a canção nos shows, ele sempre dizia que havia levado “dez anos para viver esta música, e dois anos para compô-la”. Tangled up in blue foi sendo criada ao mesmo tempo em que Dylan vivia o doloroso término de seu casamento, e percebia, junto com isso, o fechamento de um ciclo histórico, o fim de uma era, segundo o próprio Dylan, teria começado por volta de 1965, e terminado no começo dos anos 1970, quando a música vem à luz. Não é exatamente autobiográfica, mas confessional. Foi feita para expurgar uma série de fracassos e frustrações, pessoais e coletivas, olhando de frente para as tristezas e nostalgias, com cruel sinceridade, mas sem jamais abaixar a cabeça para elas.

No documentário que Martin Scorcese fez sobre o cantor, Dylan comenta que uma das coisas que mais o atraíam nas músicas folk é que se poderia aprender a viver ouvindo essas canções. Tangled up in blue condensa a sabedoria que vem com a experiência da dor. É uma canção alegremente amarga. Só um sábio como Dylan para fazer com que um refrão tão soturno (tangled up in blue = “enredado em tristeza”) soasse tão luminoso.

Tangled up in blue

Early one mornin’ the sun was shinin’
I was layin’ in bed
Wonderin’ if she’d changed at all
If her hair was still red

Her folks, they said our lives together
Sure was gonna be rough
They never did like mama’s homemade dress
Papa’s bankbook wasn’t big enough

And I was standin’ on the side of the road
Rain fallin’ on my shoes
Heading out for the east coast
Lord knows I’ve paid some dues gettin’ through
Tangled up in blue

She was married when we first met
Soon to be divorced
I helped her out of a jam, I guess
But I used a little too much force

We drove that car as far as we could
Abandoned it out west
Split up on a dark, sad night
Both agreeing it was best

And she turned around to look at me
As I was walkin’ away
I heard her say over my shoulder
“We’ll meet again someday on the avenue”
Tangled up in blue

I had a job in the great north woods
Working as a cook for a spell
But I never did like it all that much
And one day the ax just fell

So I drifted down to New Orleans
Where I was lucky to be employed
Workin’ for a while on a fishin’ boat
Right outside of Delacroix

But all the while I was alone
The past was close behind
I seen a lot of women, but she never escaped my mind
And I just grew
Tangled up in blue

She was workin’ in a topless place
And I stopped in for a beer
I just kept lookin’ at the side of her face
In the spotlight so clear

And later on when the crowd thinned out
I was just about to do the same
She was standing there in back of my chair
Said to me, “Don’t I know your name?”

I muttered somethin’ underneath my breath
She studied the lines on my face
I must admit I felt a little uneasy
When she bent down to tie the laces of my shoe
Tangled up in blue

She lit a burner on the stove
And offered me a pipe
“I thought you’d never say hello,” she said
“You look like the silent type”

Then she opened up a book of poems
And handed it to me
Written by an Italian poet
From the thirteenth century

And every one of them words rang true
And glowed like burnin’ coal
Pourin’ off of every page
Like it was written in my soul from me to you
Tangled up in blue

I lived with them on Montague street
In a basement down the stairs
There was music in the cafes at night
And revolution in the air

Then he started into dealing with slaves
And something inside of him died
She had to sell everything she owned
And we froze up inside

And when finally the bottom fell out
I became withdrawn
The only thing I knew how to do
Was to keep on keepin’ on like a bird that flew
Tangled up in blue

So now I’m goin’ back again
I got to get to her somehow
All the people we used to know
They’re an illusion to me now

Some are mathematicians
Some are carpenters’ wives
Don’t know how it all got started
I don’t know what they’re doin’ with their lives

But me, I’m still on the road
Headin’ for another joint
We always did feel the same
We just saw it from a different point of view
Tangled up in blue

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