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Uma carta-desenho de Ismael Nery

Poucas “cartas” ilustradas são tão belas na arte brasileira quanto esta magnífica missiva críptica de Nery

| 19 maio 2016_15h43
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Cartas podem assumir os mais diversos formatos, e os conteúdos podem ser longuíssimos ou breves. Ficou célebre a troca de bilhetes entre Victor Hugo e seu editor. Ansioso por saber se um livro recém-lançado estava ou não fazendo sucesso, o escritor dizia apenas: “?”. A resposta do editor, igualmente lacônica, foi: “!”.

O formato das cartas foi evoluindo ao longo do tempo, e a partir do século XVIII disseminou-se um padrão com menções de data e local, além da inclusão de saudações iniciais (“Caro amigo”, “Ilustre senhor” etc.) e de uma despedida final antes da assinatura (“Atenciosamente”, “Cordialmente”), a qual por vezes era precedida da empolada fórmula “Seu mais humilde e fiel servidor”.

A carta ilustrada do pintor Ismael Nery de convencional só tem o respeito do artista à maneira usual de abertura e fechamento das missivas: a folha é datada, “Rio, 21 de maio de 1929”, começa com “Caríssimo amigo” e acaba com “Sempre seu” e as iniciais. O que numa carta comum seria o texto, aqui é uma sucessão de imagens surrealistas, flutuando como num sonho.

Ismael Nery, que morreu precocemente, aos 33 anos, foi um dos maiores artistas do nosso modernismo. Era casado com a bela Adalgisa, cujos traços parecem se incorporar aos da figura feminina no centro da composição. O casal acabara de voltar de Paris, onde o pintor acabou conhecendo a obra de Chagall, influência de peso em seu trabalho (bem como no de Cícero Dias, seu contemporâneo).

Embora lembrasse os assim chamados “rebus” – mensagens antigas em que imagens substituíam palavras –, a carta do pintor deles difere, pois aqui os elementos servem apenas a uma mensagem estética, sem significado particular. Ainda que aplique sua assinatura em letras diferentes (numa delas, como se fosse escrita por Adalgisa) e os rostos talvez se assemelhem a figuras que o destinatário poderia identificar, Nery não parece encandear os elementos com outra finalidade que não seguir o que o momento lhe inspira.

Poucas “cartas” ilustradas são tão belas na arte brasileira quanto esta missiva críptica de Nery, que talvez tenha querido presentear um amigo com um desenho em forma de carta (ou seria uma carta em forma de desenho?).

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