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    Uma das cenas da HQ Damasco, de Alexandre S. Lourenço e Lielson Zeni Foto: Divulgação

pitacos da redação

Uma HQ, um show, uma mostra…

As dicas culturais reunidas pela Redação da piauí

| 03 abr 2024_10h03
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Quinzenalmente, os leitores da newsletter cultural da piauí recebem uma cuidadosa seleção de livros, filmes, exposições e discos feita pelo editor Alejandro Chacoff. Abaixo, o conteúdo da última edição. Clique aqui para receber as próximas gratuitamente.


Com um maior debate em torno das questões raciais no meio artístico, já era esperado que em algum momento as diásporas asiáticas surgissem de forma concentrada na programação do Instituto Tomie Ohtake. Esse movimento tardou, mas chegou. A exposição Chen Kong Fang: O Refúgio faz parte de um ciclo composto ainda por duas outras mostras – uma com obras da artista coreana Hee Sub Ahn, e outra com cerâmicas, dentre elas as feitas pela japonesa radicada no Brasil Kimi Nii.

Nascido na China em 1931, Fang chegou ao país na década de 1950. Ainda que não seja um nome desconhecido no meio artístico, tampouco evoca familiaridade completa, daí a grande valia da exposição que traz um panorama da produção dele.

Há parcos retratos pintados pelo artista; naturezas-mortas, gênero que o levou à boca do meio; e paisagens de uma São Paulo tomada pelo desejo de afogar suas raízes caipiras na industrialização.

A expografia, com uma espécie de biombo em zigue-zague, ao mesmo tempo que sugere um percurso, abre a possibilidade de o olho caminhar por outros núcleos. O texto curatorial é certeiro, destacando o tratamento que Fang dá a objetos cotidianos e aproximando-o de uma família de artistas formada por Alfredo Volpi, Eleonore Koch (a única aluna de Volpi), Mira Schendel e Rubem Valentim. Um bichano de cor preta cercado por vegetação evoca também, mais sutilmente, Nilda Neves, artista da cidade de Botuporã (BA), nascida em 1961 – o que sugere um diálogo entre a liberdade compositiva de Fang e a pintura dita popular.

Vale muito ver a mostra durante o entardecer. A luz que entra muda de forma delicada o espaço expositivo. O único ponto um pouco na contramão da exposição são os textos de parede. O ritmo deles, ao congregar tantas informações, parece rápido demais, em desacordo com a pintura de Fang, que faz arranjos delicados. Fang não se entrega a categorias: nota-se a influência da sua origem, seu olhar atento ao destino brasileiro, mas ele não deglute nada disso a partir de estereótipos, nem sobre si nem sobre os outros.


Consta que na estrada a caminho de Damasco um conhecido perseguidor dos cristãos chamado Saulo viveu uma experiência mística que o fez transcender a própria identidade. Renomeando-se Paulo, convicto da verdade do cristianismo, tornou-se um de seus maiores divulgadores, sistematizadores e apóstolos.

Em Damasco, Alexandre S. Lourenço e Lielson Zeni usam essa narrativa como uma espécie de ponto de fuga para a história de Saulo, um funcionário menor na burocracia de uma organização contemporânea em uma cidade grande. Este outro Saulo contemporâneo é um jovem acossado entre sua própria vida, apequenada num cubículo de empresa e num apartamento minúsculo, e uma outra vida, que deseja, mas não sabe qual é. Já Damasco, a cidade real da Síria – palco de conflitos sangrentos, arruinada – aparece logo no início como parte do pano de fundo.

O espectro amplo de recursos visuais que um quadrinho proporciona comunica bem uma história que, na forma de texto, talvez exigisse muito mais espaço e manobras. A riqueza expressiva das fisionomias humanas, configuradas em alterações muito sutis que expressam os mais variados estados de humor e de atenção, é um ponto alto de Damasco, que no mais reflete o momento impressionante dos quadrinhos nacionais, de forma mais geral. Há uma abundância de criadores muito diversos em poéticas e abordagens, como Marcello Quintanilha, Luli Penna, Marcelo D’Salete, Diego Gerlach, André Dahmer, e tantos outros. Mas há também o desenvolvimento consistente de uma audiência capaz de sustentar iniciativas editoriais como essa de Damasco, que deposita nos leitores a confiança de investir em uma narrativa ambiciosa e recompensadora.


Cantora e compositora nascida em Natal (RN), atriz e vocalista da banda Pietá, Juliana Linhares é um exemplo muito bem-acabado de artista que preserva as raízes e cria asas ao mesmo tempo. Suas canções têm cheiro de terra firme, o aconchego do forró, numa voz que honra a tradição das nossas maiores cantoras. Em 2021, a artista lançou o seu primeiro álbum solo, Nordeste ficção, e fez alguns shows pelo Brasil; no fim de 2023, fez uma turnê pela Europa, passando por França, Espanha e Portugal. Neste primeiro semestre, Linhares planeja levar outra vez seu show a diversas cidades brasileiras.

O próprio gesto de conceber um álbum numa época dominada pelo streaming pode ser visto como um ato de coragem. Nordeste ficção tem um conceito muito bem amarrado, em que todas as faixas compõem um conjunto coeso e surpreendente. Juliana não produz música estritamente regional, mas sua voz límpida e forte vem temperada no sotaque e na profusão de ritmos que trazem o Nordeste como guia. No palco, com tiradas de bom humor nos gestos e no figurino descolado e chique, Linhares passa a impressão de alguém que não se leva muito a sério – o que só os muito preparados conseguem dissimular.

Até pouco tempo, Juliana Linhares não era conhecida do grande público, mas sua voz já está no radar de quem assiste tevê: a música Bombinha – uma composição de Carlos Posada incluída no primeiro disco da artista – fez parte da trilha da novela Mar do sertão, e agora a linda canção Balanceiro está no remake da novela Renascer, num recado explícito de quem sabe a que veio, com os versos: “Eu não posso mudar o mundo, mas eu balanço. Eu balanço o mundo.”


Em janeiro de 2021, na posse do presidente americano Joe Biden, a poeta e ativista Amanda Gorman mesmerizou os espectadores com a recitação de The Hill We Climb, um poema que ressaltava a opressão da comunidade negra americana e ao mesmo tempo pleiteava a união do país logo após a invasão do Capitólio em 6 de janeiro daquele ano. Com apenas 22 anos, a poeta negra se tornou naquela ocasião a pessoa mais jovem a ler o poema inaugural de uma posse presidencial, e desde então seu trabalho tem tido inúmeras traduções mundo afora. No Brasil, Gorman terá um novo livro lançado pela editora Intrínseca em maio, intitulado Seremos chamados pelo que levamos. Na edição de abril, a piauí antecipa um poema inédito da coleção. A verdade em uma nação apresenta algumas das características que chamaram a atenção do mundo na posse presidencial, sobretudo um modo fluido de conjugar experiências íntimas a pleitos coletivos, sombreado por um questionamento constante do sentimento nacional:

Pensamos que nosso país poderia queimar.

Pensamos que nosso país poderia aprender.

América,

Como cantar

Nosso nome?

Singular,

Singelo,

Sujo.


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