A mãe, Adriana Braga, junto a Rafael e à irmã Crislaine. A tuberculose, que matou um colega de cela, foi o motivo da liberdade provisória ARTE: JOÃO BRIZZI
Uma mãe à espera
A volta de Rafael Braga para casa
Fazia dois dias que a catadora de sucata Adriana Braga esperava pela volta do filho, Rafael Braga Vieira, 29 anos, preso em dezembro de 2013 por porte de dois frascos de produtos de limpeza – que a polícia disse ser matéria-prima para a confecção de bombas usadas em manifestações. No meio da tarde da última sexta-feira, sem saber o que fazer, ela foi dormir. “Já dormi, já acordei. E nada de ninguém”, reclamou.
Na quarta à noite, a Justiça havia autorizado o cumprimento da pena em prisão domiciliar a Rafael, que pleiteava o direito de tratar em casa uma tuberculose adquirida na cadeia. Sem informação sobre os trâmites legais, a mãe aguardou por ele durante todo o dia de quinta. Telefonei para ela ao cair do sol para dar a notícia. “O Rafael vai ser solto amanhã, sexta”, eu disse. Ela respondeu de forma resignada: “Nunca me dizem nada.” Seus rins doíam tanto que acabara de voltar do médico.
Naquele dia, Adriana Braga pulou da cama cedo. Para convencer os filhos menores a irem ao colégio – dois meninos, irmãos de Rafael somente por parte de mãe –, ela mentiu que ele só chegaria no sábado. Estava grudada ao telefone à espera de notícias, mas, nas poucas vezes em que ele tocou, eram parentes.
A residência dos Braga, onde me recebeu, fica na Vila Cruzeiro, no subúrbio do Rio. É também seu local de trabalho: ela e o marido mantêm um depósito de itens recolhidos na rua – partes de armários e televisões, sempre prontos para venda. Um vaso de gerânios cor-de-rosa enviados por movimentos sociais de São Paulo por conta do habeas corpus enfeitava a mesa. “As flores estão até murchando de tanto esperar”, constatou.
Aos 47 anos, ela usava um vestido de renda preto, que caía bem em seu corpo esguio; calçava sandálias e tinha as unhas dos pés pintadas com esmalte também preto, adornado por flores brancas. “Minha cunhada faz muito bem as unhas.” Naquele dia, Adriana Braga não foi para a rua atrás de sucata. Acomodada em uma cadeira, explicou sua rotina de desencontros depois da prisão do filho. Duas semanas atrás, contou, pegou um ônibus, um trem e uma van para cumprir um trajeto de mais de duas horas, mas não conseguiu encontrá-lo na penitenciária Alfredo Tranjan, no Complexo Penitenciário de Gericinó, onde ele deveria estar.
Foi outra viagem perdida, como a que tinha feito há cerca de um mês. Por conta da tosse frequente, Rafael Braga fora internado – a família e os advogados não foram informados.
Ele havia sido diagnosticado com tuberculose, passou a receber tratamento na ala médica do presídio e os advogados do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos realizaram um novo pedido de habeas corpus para retirá-lo da prisão. O primeiro pedido foi negado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. “Mãe, tem muita gente aqui na mesma situação”, disse, durante uma visita. Contou que um colega de cela havia morrido ao seu lado. Ele seria liberado somente depois de outro pedido, desta vez no Superior Tribunal de Justiça.
O almoço para a espera de Rafael ficou pronto pouco antes do meio-dia. Feijão, arroz, macarrão e carne de panela. Só quem comeu foi o avô materno, que tem passado mais tempo em casa após ser diagnosticado com cardiomegalia, também conhecida como doença do coração grande. Auxiliar de pedreiro, José Evangelista de Freitas, de 65 anos, já agendou visita ao INSS para o próximo mês para solicitar sua aposentadoria. “Não tenho mais condições de carregar peso”, contou.
O marido de Adriana, Gildo Santos, com quem ela está casada há dez anos, chegou um pouco mais tarde. “Nada ainda?” Adriana balançou a cabeça em sinal negativo. O padrasto, sem almoçar, se recolheu no quarto do casal. Estava exausto depois de uma jornada que iniciara às quatro horas da manhã como catador nas áreas próximas do bairro, em especial um conjunto de prédios vizinhos. Naquele dia, pela ausência de Adriana, teve que trabalhar pelos dois.
Não demorou muito para que os filhos menores, Mateus e Felipe, chegassem do colégio, eufóricos pela possibilidade de rever o irmão mais velho. Sob os olhares da mãe, eles entram numa brincadeira de luta corporal, brincam com um pião de madeira criado pela professora da escola – feito de CD, bola de gude e tampinha de garrafa de refrigerante. “Eles ficam assim agitados quando tem gente diferente em casa”, comenta Adriana.
A euforia duraria pouco. Entediadas pela espera, as crianças foram levadas por uma vizinha. A falta de notícias sobre a chegada, que deveria acontecer entre uma e três da tarde, deixou a mãe mais uma vez sonolenta. “Nem sei mais o que fazer.” Diante da tevê ligada, ela passou a prestar atenção em um programa chamado Casos de Família, que disseca, de modo sensacionalista, relacionamentos familiares, frequentemente com os protagonistas – pais, irmãos e parentes em geral – se digladiando no estúdio.
“Para mim, ciúmes é doença”, sentenciou, ao analisar brevemente o caso daquela tarde. Ela disse que nunca sentiu ciúmes das mulheres que, com frequência, paqueravam seu marido. Ele também nunca reclamou com ela, “mesmo quando eu usava roupa curta”. Gildo é seu terceiro companheiro. “Os outros eram lixo, por isso, deixei.” Entre eles, o pai natural de Rafael, Reginaldo Pião Vieira. A mãe se mudou para Aracaju com o filho ainda pequeno. O pai sempre prometia visitá-los, mas nunca foi. Rafael não tem lembranças dele, que mora em Minas. Na única vez em que veio ao Rio, em 2014, não visitou o filho na cadeia. “Ele tem vontade de conhecer o pai. Eles são muito parecidos. Quando esteve aqui, todos achavam que era o Rafael que tinha voltado”, disse.
O telefone tocou e ela correu para atender. Era um advogado, que garantia que seu filho havia sido liberado naquele momento, 16h30. Adriana calculou que a viagem levaria uma hora. Tensa, levantou-se, abriu a porta de casa e foi caminhar a esmo pelo bairro.
Os materiais que levaram Rafael Braga Vieira à prisão estavam na rua, segundo a versão que ele deu para a polícia. Encontravam-se na entrada do casarão antigo onde costumava dormir depois de fazer seu trabalho como catador no Centro do Rio. Sua busca era por itens que pudesse vender na Feira de Antiguidades da Praça XV aos sábados. Entre os objetos que rendiam a melhor venda estavam porta-retratos e fotografias antigas. Segundo o relatório da Polícia Civil, os produtos de limpeza que ele portava tinham “mínima aptidão para funcionar como coquetel molotov”. Braga disse não ter feito coro nas manifestações daquele dia.
Foi direto para Bangu. A família só soube da prisão seis meses depois. “Ele costumava voltar para casa de 15 em 15 dias, mas de vez em quando dava uma sumida”, contou a mãe, quando nos encontramos pela primeira vez, duas semanas atrás. Ela atribui os sumiços à perda da avó, morta há sete anos e responsável pela criação do menino até a adolescência. “Desde que ela morreu, ele nunca mais visitou a casa onde ela morou.”
Depois de dois meses sem ter notícias do filho, a mãe pediu que um outro irmão de Rafael fosse procurá-lo pelo Centro da cidade. Nada. Souberam por uma vizinha que ele estava preso. O paradeiro só foi descoberto pelas advogadas do Instituto de Defensores de Direitos Humanos em dezembro de 2013.
A integrante da Assembleia Popular da Grande Tijuca, Sara Boechat, foi a responsável por levar Adriana Braga a reuniões que dariam início a uma campanha para soltar seu filho. Sara morreu em novembro de 2014, mas a campanha continuou reunindo doações financeiras permitindo assim que não faltem itens essenciais, além do suporte emocional. “Eles são como uma família, estão sempre preocupados comigo.”
Rafael Braga chegou a progredir para o regime semiaberto em 2014. Arranjou emprego e teve permissão, no final do ano seguinte, para ficar livre da cadeia, com o uso de tornozeleira. Foi quando voltou a morar com os familiares. Menos de dois meses depois, em janeiro de 2016, no entanto, foi novamente preso quando ia à padaria. Acusação: associação ao tráfico de drogas. No processo, as testemunhas, todas policiais, informaram que Rafael Braga Vieira carregava uma sacola com 0,6 gramas de maconha, 9 gramas de cocaína e um sinalizador. Foi condenado a onze anos e três meses de prisão e levado de volta para a cadeia.
Meia hora depois de voltar de sua caminhada pelo bairro, a mãe se acomodou em uma cadeira na sala pouco antes de ouvirmos uma buzina. Ela ficou imóvel. Sem pensar, corri para a janela a tempo de ver as portas de um carro estacionado na esquina se abrirem. De longe, reconheci um dos advogados. “Seu filho chegou, dona Adriana!”, eu disse. Rafael desembarcou do carro com um envelope cheio de remédios. Dentro de casa, ela disfarçou o nervosismo: “Justo agora que eu ia tomar meu café.”
Sem se mover, perguntou se o filho vinha sozinho, e só então se levantou e caminhou em direção à porta. Ao descer as escadas da casa, ela viu Rafael subindo os poucos metros da rua acompanhado de jornalistas com câmeras ligadas. Assustou-se e correu para dentro de casa. Rafael dispensou os jornalistas e entrou sozinho para abraçar a mãe, estampando um sorriso enorme. Cumprimentou também a irmã, o avô e o padrasto, também sorrindo, também sem dizer nada. Ninguém chorou.
Dulcineia Silva, sua vizinha e muitas vezes companheira de garimpo pela Zona Sul do Rio, irrompeu na sala para lhe dar um abraço. As câmeras entraram, e a mãe se encolheu em um canto da sala. Rafael, sorridente, pediu a ela que falasse para a imprensa. Ela se recusou. Alguém pediu para que eles se abraçassem para um registro fotográfico.
Os advogados informaram à família sobre as próximas etapas do processo. Eles reforçam que, ainda que mais confortável, Rafael continua preso e que não é possível se deslocar além da frente de casa. Ele se espantou: tinha entendido que não precisaria mais voltar ao presídio. Até que o tratamento seja terminado, os advogados esperam ganhar em segunda instância.
Após a conversa, novos abraços e comemoração por parte da equipe de advogados e apoiadores. A notícia da chegada já estava nas redes sociais. “O que é preciso de mais urgente?”, alguém perguntou em um grupo de WhatsApp. Um advogado que viu a mensagem, preocupado em entreter Rafael no tempo da prisão domiciliar, quase berrou: “um videogame!”
A casa ficou mais calma em cerca de uma hora. Quando os advogados e a imprensa se foram, Rafael decidiu tomar o café recém-preparado pela mãe. Em seguida, tomou um banho e trocou de roupa. De volta ao portão, repassou com a mãe as orientações sobre não ultrapassar o limite da frente da residência, e que as únicas saídas serão para o tratamento médico na unidade de saúde do bairro. Tudo deveria ser cumprido à risca para não dar margem para uma volta à prisão. Ao retornar à sala, ele soltou uma das parcas frases que diria naquele dia, ao olhar para seus dois irmãos mais novos: comentou que os meninos cresceram enquanto ele esteve preso. “Criança cresce muito rápido.”
Um primo que ainda estava por lá passou a atualizá-lo das novidades do bairro. A mãe ainda conversava com alguns vizinhos e visitantes, dizia que, se não fosse os remédios para os rins, já teria começado a comemorar tomando uma cerveja na frente de casa, ouvindo música. Mas tudo bem, o filho tinha voltado.
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