Uma mesma canção de Caetano: sobre Quando o galo cantou
Será “Quando o galo cantou” uma das mais belas canções sobre sexo dos últimos tempos?
Texto escrito por Pérola Mathias a convite de Paulo da Costa e Silva
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Será Quando o galo cantou uma das mais belas canções sobre sexo dos últimos tempos? Passando ao largo de todo e qualquer desfile banal dos relatos de uma trama amorosa, a canção traz uma atmosfera que combina o amor, o prazer e certa resiliência sobre a sublimação individual e o encarar do mundo lá fora.
Quando o galo cantou é um episódio de felicidade transcendente em que seu sujeito alcança, por um instante, a mais completa existência do ser. A voz da letra fala em três pessoas: a do sujeito mesmo, sobre sua experiência sublime que congrega a felicidade do corpo, da alma e do espírito; a da amante, que tem sua fala reproduzida (e a identidade feminina revelada quando descrita por seu par); e a do casal, o “nós” erguido e deliberado por quem fala.
A canção é aberta pelo canto que precede o primeiro acorde. Sua primeira imagem é a de uma figura invariavelmente melancólica, que remete a um resquício bucólico do mundo rural por subúrbios e morros urbanos, que atravessa uma cena de amor: o galo. Situando-me enquanto ouvinte junto ao compositor no seu disco marcadamente carioca, começo a ouvir a canção imaginando a cidade, em sua geografia irregular, como descrito por sambas clássicos. Ou sou jogada para as raízes baianas do samba de roda que influenciaram a primeira canção que Caetano Veloso teve gravada: É de manhã, como já havia notado Paulo da Costa em seu texto Uma canção de Caetano, publicado em janeiro deste ano, em que analisa esta mesma faixa.
A letra-poesia narra o embate dos amantes com suas sensações e percepções sobre os espaços e os tempos, construindo ao longo de toda a música um jogo de diferença: uma brincadeira com as escalas que “traz para o convívio íntimo signos que pertencem à imensidão sem fim”, como diz Paulo da Costa. Aos amantes está posta a adversidade de lidar com as horas e a incapacidade de sobreporem-se ao compositor de destinos:
O relógio parou, mas o sol penetrou entre os pêlos brasis
que definem sua perna e a nossa vida eterna
Os pelos brasis me lembram a malha do “pelo dongo, congo, gê, tupi, batavo, luso, hebreu e mouro” da Musa híbrida. Eles definem, numa rima inusitada, a perna e a vida eterna, continuando esta relação entre o mínimo íntimo e o imenso e além.
Caetano Veloso, nas letras de suas canções, faz com que nos percebamos existencialmente no mundo a partir de pequenas ocasiões ou de gestos muito particulares. Em Quando o galo cantou a brincadeira é coordenada pelo movimento dentro/fora, que vai do que é pessoal, que se passa dentro do quarto, à projeção disto no imenso infinito do universo. O jogo começa no singular imediato das coisas (ou das relações) para alcançar os significados últimos do espírito. E a primeira imagem desta relação é a própria união dos corpos que recusam a “desgrudarem-se”. Seguida por aquela que mais desafia a nós humanos: o que define o instante e o eterno? Passamos a vida ansiando a transcendência a um mundo de paz extraterreno que, ali no pós-sexo, tendo realizado o gozo (eterno enquanto dura), não opõe, mas conjuga o carnal e o sublime, ligados por qualquer operação metafísica ou “cósmica”.
Vejo até aqui dois tempos da poesia. Um primeiro, de esperança e projeção ao iniciar da canção:
Eu pensava que nós não nos desgrudaríamos mais
O que fiz pra merecer essa paz
Que o sexo traz?
E outro que é uma tentativa de enfrentamento, revelada na reprodução da fala da amante, que põe em xeque a felicidade proporcionada pelo momento do prazer:
‘não, não se pode, ninguém, pode ser tão feliz’
É como se esta felicidade não condissesse com o fluxo da vida, sendo a própria geradora da tristeza, que vem por sabermos ser a felicidade passageira – dura o eterno e fugidio instante (“de nunca parar”).
A consternação da amante se transforma na resignação do sujeito com aquilo que não pode ser por ele mudado, levando-o do âmbito pessoal ao cósmico:
Deixa esse ponto brilhar no atlântico sul
todo azul
deixa esse cântico entrar no sol
no céu nu
Creio que seja aí que se forma o jogo do “erotismo astral” que deixa a dúvida colocada pelo texto citado: “erotismo romântico ou romantismo erótico?”. Deste projetar do íntimo ao estratosférico, Paulo da Costa simboliza “a fatia celeste” da poesia, que me remete a uma imagem na qual pulo dentro da imensidão do azul: a cor do sonho e do gozo, símbolo da luz que rompe a escuridão e clareia tal qual um céu limpo (ou nu – diferente de em Terra) de verão. Sentimento que segue pela alegria do sexo, da sensação de acordar num mar de rosas na manhã seguinte, leve como uma luz amarelada que toma o quarto com o raiar do dia por detrás das cortinas. Nesta cena de amor, não imagino o “sexo heterodoxo”, resultado de “lapsos de desejo” que resultam no céu que desaba de Deusa Urbana, mas um céu ao qual se adentra, que é imenso e azul.
A narrativa poética continua a descrever a hesitação do casal em sair da cena do amor vivido, que é atravessada pela polifonia louca do ambiente urbano que os rodeia. A suposta contradição entre o som do galo e o do pagode romântico que invade o momento incrementa o jogo entre o tempo que criamos e o tempo que não controlamos. E não estou convencida de que o som do pagode é algo que precisa ser “aturado”, como diz Paulo. Ele é o mundo lá fora que precisará ser enfrentado, mas não agora.
A felicidade carnal e transcendente (ainda que sóbria) de Quando o galo cantou é consciente de uma tensão entre os sentimentos de alegria e tristeza presente na obra de Caetano Veloso. Mesmo que estes dois sentimentos convivam de formas diferentes na poesia das canções – e que a tristeza conste de forma mais marcante na trilogia Cê -, quando apreendidos ali, ambos acabam por formar, imaginariamente, uma imagem da pessoa que se expressa. Em Quando o galo cantou é como se esta tristeza abrisse os braços para receber aquela alegria breve e plena. O instante de nunca parar, lugar instituído de superação do movimento, fora atravessado, levando os amantes de uma realidade anterior menos prazerosa para um repouso meditativo. O galo cantou e o amor, com prazer, se consumou. Ao invés de implorar aos deuses para que o universo pare de rodar depois disto, o desejo final colocado na canção é simples:
Deixa o cântico do amor
prazer entrar, brilhar, explodir, ressoar; deixa o pagode romântico soar; deixa o tempo seguir; deixa o galo cantar…
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