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    Luciana da Cruz tem uma loja de artesanato que faz reaproveitamento de jeans Foto: Arquivo pessoal

depoimento

“Uma mulher preta pode ser empresária tanto quanto qualquer pessoa”

Empreendedora negra relembra dificuldades e conquistas em sua trajetória

Luciana da Cruz | 02 jan 2022_09h28
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A microempresária Luciana da Cruz, 50 anos, cresceu no meio do samba. Seu pai era Dráuzio da Cruz, fundador da Império do Samba em 1955, escola tetracampeã do estado de São Paulo. O sambódromo de Santos leva seu nome. Luciana cresceu em uma família de lideranças pretas. Já trabalhou em salão de beleza, telemarketing e como auxiliar de cozinha. Aos 40 anos, se formou em gestão logística para atuar no sistema portuário da região, mas não conseguiu oportunidades de emprego. Foi trabalhar na área da cultura e do artesanato, paixão que carrega desde pequena. Em 2019, fundou o Coletivo AfroTu, que tem como objetivo resgatar e valorizar a identidade afro-brasileira e fortalecer a economia criativa da região. À piauí, ela fala sobre as raízes familiares no samba e os obstáculos que passa por ser uma mulher preta empreendedora.

Em depoimento a Amanda Gorziza

 

Eu sou filha de um sambista renomado de Santos (SP), que é o Dráuzio da Cruz. Ele fez muito pelo carnaval santista nas décadas de 1960 e 1970. O evento da cidade era o segundo maior do Brasil na época, logo após o do Rio de Janeiro. Meu pai foi um dos grandes incentivadores do carnaval estadual, e a escola dele, a Império do Samba, ganhou quatro títulos. Portanto eu nasci no meio do samba. A minha mãe também era de escola de samba e já foi a rainha das porta-bandeiras do estado.

A minha casa sempre foi um local de liderança. As pessoas me falam que sou uma líder nata, mas na verdade os exemplos que eu tive foram assim. O meu pai era um líder e a memória dele permanece até hoje na cidade. A minha mãe era totalmente politizada e passou muitas das lutas dela para nós, seus filhos. O meu pai também nos deu uma educação ótima e de muito orgulho. Hoje em dia, eu tomo a frente para ajudar os outros que são semelhantes a mim. Busco a liderança para fazer algo para o meu povo.

Eu sou formada em gestão logística. Entrei na faculdade quando estava com 40 anos e já tinha meu filho. Eu tinha uma expectativa muito grande de trabalhar no complexo portuário de Santos. Acreditei que, assim que entrasse na faculdade, teria oportunidades. Trabalhar no complexo portuário era a saída. Quando eu fui fazer a faculdade, eu já tinha feito alguns cursos para me qualificar para a área. As empresas no setor contratavam pessoas com até 38 anos – mas eu já estava com 40. Hoje, eu acredito que eles tenham revisto esses conceitos, mas eu fiquei bem frustrada na época. Acabei, com isso, indo trabalhar na área da cultura, o que reacendeu o artesanato em mim. É uma paixão que tenho desde pequena. Eu empreendi por conta da frustração com a faculdade e com a área em que não consegui atuar até hoje.

Estou na minha segunda gestão do Conselho Municipal de Cultura e do Conselho Municipal da Comunidade Negra. Eu fiz a primeira feira afro de Santos pelo Conselho. O que me incomoda é que só focam em atividades voltadas ao povo preto em novembro, no mês da Consciência Negra. Só temos uma ou outra atividade ao longo do ano. Eu quero que trabalhem com o nosso povo o ano todo. Sempre briguei por isso.

Hoje eu tenho uma loja de artesanato e faço reaproveitamento de jeans que seriam descartados erroneamente no meio ambiente para fazer peças e acessórios. Quando eu entrei no Conselho, uma das primeiras coisas que procurei foi desenvolver um curso focado no afroempreendedorismo. Era algo necessário para o povo preto, porque a gente não acreditava no nosso potencial. Sempre nos foi colocado que não sabemos fazer as coisas suficientemente bem. Então, consegui uma parceria para realizar o curso. Um ano depois, me chamaram para conversar e apresentaram o projeto como se eles tivessem montado sozinhos. Na mesa, só tinha eu de mulher. Eu disse bem assim: “Quem teve a ideia e passou todas as necessidades fui eu.” Falei na frente de todos. Acabou que fizemos uma semana de curso, mas ele não foi para frente. Estamos esperando até hoje. Parece que damos um passo para frente e dois para trás.

Hoje em dia há mais obstáculos que tenho que passar por ser uma mulher negra. Os comentários na internet, essa terra sem dono que o povo pensa que pode fazer e acontecer, sempre machucam. A questão do empreendedorismo é muito forte para as mulheres pretas. As pessoas me perguntam: “Por que afroempreendedorismo?” Eu vejo isso como um fortalecimento da comunidade negra. Para o povo preto, esse movimento é muito positivo, pois sempre tivemos problemas de autoestima por conta do que sempre foi colocado pra gente.

O projeto Memórias, Narrativas e Tecnologias Negras, desenvolvido pelo Instituto Procomum entre 2020 e 2021, que tem como objetivo afirmar a importância da população negra da Baixada Santista, gerou uma mistura de sentimentos. O mapeamento online que identifica iniciativas do presente e do passado na região gerou saudade e muitas lembranças. Passa um filme na minha cabeça dos locais que a gente frequentou. Foi muito bom participar desse projeto porque era exatamente o que estávamos precisando. É um lugar de pesquisa e em que temos nossa referência registrada.

Em 2019, fundei o Coletivo AfroTu, que tem a missão resgatar e valorizar a identidade afro-brasileira, além de fortalecer o afroempreendedorismo, mantendo a identidade santista. Quando eu formei o coletivo, coloquei como um dos pilares a participação dos habitantes da Baixada Santista. Hoje somos quarenta integrantes, entre artesãos, artistas e designers. Nós fazemos uma feira fixa mensalmente numa antiga estação de trem da cidade. O que diferencia a nossa feira é o fortalecimento do artesão e do seu trabalho. Além disso, o apoio que damos mudou a autoestima de vários integrantes. Agora eles se reconhecem e têm orgulho de serem pretos. Uma mulher preta pode ser empresária tanto quanto qualquer pessoa. Nossa cor não vai nos atrapalhar em nada.

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