Porto de Da Nang: , economia do Vietnã resistiu aos momentos mais dramáticos da Covid e hoje volta a crescer. | Foto: Jamil Chade
Uma nova guerra pelo Vietnã
Para tentar conter avanço chinês, Estados Unidos investem em aliança com antigo inimigo comunista e financiam até cultivo de pérolas
Entre rochas que nascem do mar na baía de Halong, no Norte do Vietnã, os casebres de madeira mal parecem se sustentar. Erguidos em ilhas artificiais mantidas por boias improvisadas, eles servem de base para pescadores que passam dias e noites isolados do mundo. Cães circulam pelas finas vigas que ligam uma parte da casa flutuante às demais. Os animais estão ali para proteger o tesouro que os pescadores buscam no fundo do mar e que ficam guardados em redes nesses casebres: pérolas.
Na baía de Halong, a formação de rochedos e montanhas ao longo de mais de 120 km cria um lugar de beleza exuberante, com muros naturais. É essa proteção única, além da abundância de água, que permite o desenvolvimento dessas pérolas em fazendas e piscinas naturais. Nos barcos que conseguem chegar até lá, os símbolos comunistas são exibidos com orgulho. Tanto quanto camisas do Barça e roupas com símbolos de multinacionais americanas – tudo cópia. Questionados sobre quem estaria espalhando as bandeiras vermelhas com foice e martelo, os pescadores respondem com a ironia fina própria de uma comunidade vivendo por décadas sob uma ditadura: “Nós não somos.”
Mas, na casa comunal do vilarejo pesqueiro de mais de cem anos, Vung Vieng, uma primeira surpresa. Um cartaz explica que o projeto de cultivo de pérolas é, em parte, financiado pela Usaid, a agência de apoio ao desenvolvimento dos Estados Unidos, instrumentalizada para permitir que a Casa Branca estenda sua influência no Vietnã e tente conter a hegemonia cada vez mais presente da China na região.
As pérolas comunistas apoiadas por recursos de um ex-inimigo da Guerra Fria são um espelho de um país que, nos últimos anos, tornou-se um híbrido, uma criatura de corpo capitalista e cabeça política comunista, num sistema de partido único. Tudo isso em meio a uma nova tensão geopolítica, a ameaça de uma ação militar por parte dos chineses contra a ilha de Taiwan e de um enfraquecimento dos americanos na Ásia. Em nome da geopolítica, já não há obstáculos para que os Estados Unidos, “líderes do mundo livre”, busquem uma nova aliança com um partido comunista.
Para um país que tem sua trajetória confundida com a história de algumas das principais guerras do século XX, iniciar o século XXI sem conflitos armados parece um hiato tão precioso quanto as pérolas de Halong. E o Vietnã se torna novamente palco de uma disputa entre hegemonias, porém num momento radicalmente diferente daquele do fim dos anos 1960. Graças à abertura da economia, Hanói viveu um dos maiores saltos no combate à pobreza. Em dez anos, 10 milhões de pessoas saíram da extrema miséria. Carros sofisticados circulam pelas caóticas ruas de Hanói, enquanto aparecem as vitrines de lojas de luxo e uma insistente trilha sonora de bossa nova pelos cafés com ares de Paris.
Estudos realizados pelo Banco Mundial no final de 2022 mostram que a década entre 2010 e 2020 foi de um “progresso significativo” na redução da pobreza no país. Considerando a situação na qual uma pessoa ganha menos de 3,20 dólares por dia, a taxa de miseráveis caiu de 16,8% para apenas 5% em dez anos. Em algumas regiões, a pobreza foi reduzida pela metade. Num país com 100 milhões de habitantes, os desafios continuam existindo. Segundo a instituição, a vulnerabilidade daqueles que conseguiram sair da extrema pobreza ainda é elevada, e o país continua sendo marcado por salários baixos nas fábricas, altas taxas de informalidade e uma expansão lenta dos postos de trabalho de maior produtividade.
Mas são justamente alguns desses aspectos de vulnerabilidade que têm atraído empresários e multinacionais que buscam aumentar sua competitividade rifando a renda do trabalhador ou para fugir de tarifas. E mesmo a China se aproveita dessa situação: desloca sua produção para outro país comunista onde os salários são mais baixos.
Um impulso fundamental no deslocamento de empresas para o Vietnã viria, ironicamente, dos Estados Unidos. O ex-presidente americano Donald Trump abriu uma verdadeira guerra comercial contra a China em 2018, na esperança de frear o avanço do país e de sua influência. Ao impor barreiras aos produtos fabricados no rival asiático, o americano criou incentivos para que muitas multinacionais deslocassem sua produção para outras regiões asiáticas, e um forte candidato foi o Vietnã, que já desejava se integrar à cadeia de fornecimento da globalização.
A explosão comercial foi quase imediata. Ao final de 2021, o governo de Hanói já acumulava um superávit inédito com os EUA, de 81 bilhões de dólares. Se em 2007 o país registrava um fluxo total de comércio de 100 bilhões quando aderiu à OMC, o valor pulou para 400 bilhões em 2017 e, em 2022, fechou com 700 bilhões de dólares. Em 2010, o Vietnã era apenas o 40º maior exportador do mundo, quase empatado com a modesta Eslováquia e com um volume de comércio que era apenas um terço das vendas brasileiras.
Mas, em 2022, a OMC constatou que os asiáticos ocupam a 23ª posição mundial entre os exportadores. O Brasil já havia ficado para trás, na 25ª posição.
Para isso contribuiu também de forma importante a política chinesa de tolerância zero diante da Covid, levando empresários a avaliar a possibilidade de ampliar sua produção em locais com menos restrições. Mais uma vez, o Vietnã se apresentava como uma alternativa sedutora. A estratégia de Hanói foi a de implementar uma operação de vacinação em massa, na esperança de retomar a produção industrial do país e atrair investimentos. O contraste com a China chamou a atenção internacional e, para analistas, catapultou o Vietnã a uma condição de “Super Fábrica” do mundo.
De fato, apenas nos cinco primeiros meses de 2022, o governo de Hanói anunciou que recebeu quase 8 bilhões de dólares em investimentos. A exportação do Vietnã foi duas vezes superior às vendas de Shenzhen, epicentro do comércio chinês.
No lugar do “Made in China”, agora é o “Made in Vietnam” que ganha espaço, e os resultados rapidamente começaram a aparecer. Grandes empresas marítimas, como a MSC, anunciaram a criação de novos terminais de contêineres para ampliar as exportações a partir da costa vietnamita.
O país, que abastecia 8% do mercado mundial de móveis em 2016, hoje ocupa 17%. Taxas similares foram registradas no setor de calçados e têxteis. O país ainda passou a fabricar componentes para jatos da Airbus e Boeing, enquanto fornecedores da Apple, Google e Canon ampliam seus investimentos no Vietnã.
Hoje, metade dos celulares da Samsung já são produzidos no país, enquanto a chinesa Xiaomi anunciou que até ela começaria a produzir seus smartphones no país vizinho. Para 2023, o governo projeta um crescimento de 6,5%, acima das taxas chinesas, e projetos ambiciosos para atrair um número ainda maior de multinacionais para seus parques industriais.
Pelas ruas de Hoi An, Hanói, Ho Chi Min City e tantas outras, os sinais da prosperidade e da ironia com o capitalismo são evidentes. É possível encontrar lojas que vendem tanto uniformes de marines americanos quanto de soviéticos. Isso tudo para a delícia dos turistas chineses, cada vez mais abundantes. Quem desejar ainda pode fazer um tour em jipes usados na Guerra do Vietnã, inclusive pelos inimigos americanos.
Funcionários públicos deixaram seus trabalhos para, hoje, ganhar três vezes mais como motorista para empresas multinacionais ou guia para estrangeiros. “A vida mudou para muitos de nós”, disse Ming, um ex-professor de uma escola primária transformado em pequeno empresário de uma rede de transporte privado.
Quem permaneceu no interior do país, entre arrozais, também admite as mudanças. Mas muitas delas ainda intimamente ligadas a outra novidade que desembarcou no país: a desigualdade social. “Sinto que existem diferentes países dentro do mesmo lugar”, lamenta Tuan, que conduz seu barco nas proximidades de Halong.
Ele não está errado. Segundo a consultoria New World Wealth, a elite do Vietnã está ficando rica na velocidade mais acelerada do mundo hoje. Já em 2015, a análise da Knight Frank apontava que o país teria o potencial de registrar a taxa mais importante de crescimento da camada de ultrarricos no mundo. As projeções se confirmaram. Nos últimos dezesseis anos, o número de ultrarricos aumentou em 320%, com um duzentos indivíduos nessa categoria. Entre 2019 e 2026, o número de milionários passará de 14 mil para 38 mil.
A piauí percorreu diferentes regiões do Vietnã, repetindo em cada local a mesma pergunta: o que mantém ainda o regime de um partido único no poder? O desenvolvimento econômico ou a repressão? A resposta foi praticamente unânime: a inexistência da oposição. “Eles sobrevivem no poder por suprimir qualquer contestação”, contou o dono de uma pousada em Hanói, na condição de anonimato.
O problema, confessam muitos dos ativistas no país, é que o Ocidente não está disposto a denunciar Hanói e estabeleceu uma verdadeira parceria com o governo local. O motivo: tanto americanos como europeus consideram o Vietnã como peça estratégica numa eventual manobra de contenção da expansão da China.
Já a liberdade do povo vietnamita foi rifada em nome dos interesses geopolíticos. Em abril, a visita do chefe da diplomacia americana, Antony Blinken, ao país foi reveladora nesse sentido. Em seu discurso, o representante da Casa Branca disse que o foco americano continua sendo o de apoiar “o sucesso do Vietnã, que é bom para sua população, para os americanos e para a região inteira”.
Ele ainda garantiu que o governo dos Estados Unidos está “comprometido em apoiar um Vietnã forte, próspero, independente e resiliente”.
Em outras palavras: sem a presença ou influência da China.
Sobre o autoritarismo? Cumplicidade. “Respeitamos o direito do Vietnã de moldar seu futuro sob seu próprio sistema político”, afirmou o americano.
Segundo ele, o governo americano continuará a “enfatizar como o progresso futuro dos direitos humanos é essencial para liberar todo o potencial do povo vietnamita”. Mas nada de pré-condições, sanções por conta da repressão nem qualquer constrangimento em chamar uma ditadura de aliada.
Menos de um mês depois, o Vietnã era um dos poucos países convidados pelas democracias mais ricas do mundo – o G7 – a estar presente na cúpula do bloco em Hiroshima. O objetivo da coalizão: frear a expansão chinesa.
Para Hanói, o grande desafio é o de aceitar uma maior cooperação com Washington sem incomodar a China, país que já controlou o Vietnã por mil anos. O Vietnã tem ficado alarmado com as crescentes reivindicações militares da China na região. Mas se equilibrar entre as duas superpotências será uma das grandes tarefas do país.
Repressão
Em um recente informe apresentado a todos os países, a ONU alertou que as “crescentes restrições do governo do Vietnã ao espaço cívico e às liberdades fundamentais, bem como a condenação de pessoas por acusações relacionadas ao seu trabalho em prol dos direitos humanos e os esforços para promover um ambiente limpo, saudável e sustentável são preocupantes”. A ONU chegou a pedir que o governo vietnamita atue para “garantir a participação diversificada e robusta da sociedade civil, incluindo os defensores dos direitos humanos, e a libertar aqueles que foram arbitrariamente detidos ou presos por tais atividades”.
Desde o início do ano, as autoridades vietnamitas prenderam pelo menos dezesseis ativistas, oito deles acusados de “fazer propaganda contra o Estado” ou “fazer, armazenar e distribuir documentos para propaganda contra o Estado”. Cinco foram acusados de “abuso das liberdades democráticas”.
Em 2021, o escritório de direitos humanos da ONU já havia expressado preocupação com o uso de leis no Vietnã para deter arbitrariamente um número crescente de jornalistas, blogueiros, comentaristas e defensores de direitos, “em meio ao que parece ser parte de uma “crescente repressão à liberdade de expressão no país”. “Eles são frequentemente mantidos incomunicáveis por longos períodos em prisão preventiva, com relatos regulares de violações do direito a um julgamento justo e preocupações sobre seu tratamento na detenção”, disse a ONU.
Vários dos detidos receberam sentenças longas após serem condenados por crimes contra a segurança nacional. De acordo com a ONU, Pham Chi Dung, Nguyen Tuong Thuy e Le Huu Minh Tuan, respectivamente presidente, vice-presidente e membro da Associação de Jornalistas Independentes do Vietnã, foram condenados pelo Tribunal Popular da cidade de Ho Chi Minh por “fabricar, armazenar, divulgar informações, materiais e itens com o objetivo de se opor ao Estado”. Pham Chi Dung foi condenado a quinze anos de prisão e três anos de liberdade condicional. Nguyen Tuong Thuy e Le Huu Minh Tuan foram condenados a onze anos cada um e três anos de liberdade condicional.
Em seu mais recente informe sobre a liberdade de imprensa no mundo, a entidade Repórteres Sem Fronteiras colocou o Vietnã como o 178 colocado entre 180 países avaliados no mundo. Apenas China e Coreia do Norte teriam regimes mais repressivos contra jornalistas que Hanói.
De acordo com a entidade, o exército vietinamita criou a Força 47, uma unidade com 10 mil homens que tem como missão defender nas redes sociais o partido e atacar dissidentes. A prisão é o destino de qualquer um que publique matérias que possam ser interpretadas como “ações para derrubar o governo”, “propaganda antiestado” ou “abuso do direito da liberdade e da democracia”.
Quase quarenta anos depois das reformas liberalizantes adotadas pelo Vietnã, conhecidas como “Doi moi”, o crescimento econômico é uma realidade, e a paz, um cenário raro na história. Hoje o país que chegou a ser um dos mais pobres da Ásia está entre os principais exportadores do mundo e integralmente conectado à economia global.
O “Made in Vietnam” vingou. Mas vem acompanhado pela carcaça de um regime repressivo que não tolera questionamentos e que, nos últimos anos, passou a ser cortejado por americanos e europeus.
Para alguns, as pérolas ficaram mais acessíveis. Cobram, porém, outro preço: o silêncio, inaugurando uma nova fase de tensão na Ásia. Dessa vez, os inimigos não são soviéticos, mas sim chineses. E, de novo, no radar estão os Estados Unidos, velhos conhecidos dos vietnamitas.
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