Quando viu pela tevê e pelos sites de notícia o assassinato do narcotraficante Jorge Rafaat Toumani com uma metralhadora calibre 50 encomendada pela facção Primeiro Comando da Capital (PCC), em Pedro Juan Caballero, Paraguai, em junho de 2016, o delegado da Polícia Civil no Rio Maurício Demétrio Afonso Alves enviou um áudio no WhatsApp para um informante seu, Marcelo José Araújo de Oliveira. “Vamos ver esse negócio de resolver esse Rogério logo”, disse.
Alves se referia ao bicheiro Rogério de Andrade, na época envolvido em uma sangrenta disputa com o também bicheiro Fernando Iggnácio pelo controle do jogo do bicho no Rio e na Baixada, espólio do “capo” Castor de Andrade, morto em 1997. Rogério era sobrinho de Castor, e Fernando Iggnácio, genro. Segundo investigação do Ministério Público Estadual, Alves e Oliveira associaram-se a Iggnácio para assassinar Andrade – o bicheiro já havia escapado de dois atentados, em 2001 e 2010. Faltava convencer o terceiro integrante do esquema, o também delegado Allan Turnowski, chamado de Judeu, Guru ou Amigo de Israel pela dupla. Turnowski fora chefe da Polícia Civil do Rio entre 2009 e 2011, mas naquele 2016 estava escanteado na corporação, ocupando um cargo burocrático na Cedae, a empresa de saneamento fluminense. Mesmo assim, mantinha prestígio e força política. O que a investigação do MP afirma é que Turnowski, além da atuação policial, era agente duplo no mundo do crime: recebia informações do grupo de Andrade, onde era considerado um aliado, e repassava para Iggnácio por meio do delegado Alves.
Diálogos obtidos pelo Ministério Público mostram que Turnowski, Alves e Oliveira passaram a discutir um “teto” financeiro a ser cobrado de Iggnácio para bancar o plano de assassinar Andrade. “Ele [Allan Turnowski] falou que tá beleza, eu falei mais ou menos, aí, aquele papo que a gente teve… de teto, pra resolver… […] ele falou ‘mermão, preciso do gasto e a gente vê aí, então, aí o teto, que é uma vez só.”
Paralelamente, Turnowski vinha pressionando um aliado de Andrade, Jorge Luiz Fernandes, o Jorginho, a passar para o lado do bicheiro rival, principalmente quando, naquele ano, Andrade discute com Jorginho e ameaça tomar desse último o território explorado com caça-níqueis. Turnowski e Alves tentam convencer Jorginho a providenciar a morte de Andrade e até estipulam um “custo” pelo homicídio: 3 milhões de reais, divididos em partes iguais entre os dois delegados e Oliveira. “Eu acho que não, cara, eu acho que ele já deve acertar um valor aí… Três milhões? Um milhão pra cada um tá bom…”, diz Alves.
O assassinato de Rogério de Andrade não deu certo naquele ano. Somente em março de 2017 surge o plano de matar o contraventor em Ibiza, Espanha, onde Andrade passava férias em agosto: “Era interessante pensar em alguma coisa lá na Espanha, sabia? Pensa nisso. Vou pensar também”, diz Alves. Três meses depois, em junho, o grupo retomou o tema, cogitando um atentado contra o bicheiro dentro de um shopping center no Rio, executado por assassinos vestidos com farda da Polícia Militar. “Eu tava pensando em dois ou três… com farda de PM, que que tu acha? Era uma boa, né?”, afirma Alves ao informante Oliveira. Mas nenhum dos dois planos foi posto em prática.
O monitoramento de Rogério de Andrade por Alves era permanente, com busca incessante por informações sobre o bicheiro e sua família, incluindo declarações do Imposto de Renda, veículos e viagens. Em julho de 2018, quando Rogério de Andrade estava preso devido a uma condenação por contrabando, Alves cogita envenenar a comida dele na cadeia: “Tudo que passa ali, pra alimentar, o rapaz… tá na mão do garoto, entendeu? De um garoto lá deles. Tudo… ele tá comendo tudo de fora. E quem guarda é um cara deles, entendeu? Um cara nosso aí, que tá pra falar. […] Sinceramente, eu achei bem razoável, tá?” O plano só não foi adiante porque Fernando Iggnácio não autorizou.
Em novembro de 2020, foi Iggnácio quem acabou assassinado a tiros assim que desceu de helicóptero no Recreio dos Bandeirantes, Zona Oeste do Rio. Em agosto último, Andrade foi preso, acusado de ser o mandante do crime.
Para o Ministério Público, os delegados Turnowski e Alves mantinham uma sociedade criminosa dentro da Polícia Civil. Em maio de 2020, quando a Polícia Federal anuncia o delegado Tássio Muzzi como o novo superintendente da corporação no Rio, Turnowski diz em mensagem pelo Whatsapp que dois delegados da PF desafetos seus, Fábio Galvão e Jaime Cândido, “deve vir junto”. “Tá ferrado”, respondeu Alves. “Chuva de pk [pica]”, retrucou Turnowski. Em seguida, Turnowski enviou um áudio ao colega delegado: “Guru, se ele me pegar ele vai te pegar, Guru. Tem que me proteger por você! Me esquece! Porra, tá maluco? Nós somos um CNPJ, um CPF só! Irmãos de embrião!”
Três meses depois, em setembro de 2020, por indicação do senador Flávio Bolsonaro, Turnowski foi nomeado secretário de Polícia Civil pelo recém-empossado governador Cláudio Castro. Assim que assumiu o cargo, o delegado Alves pediu um favor ao amigo agora secretário: retaliar uma delegada que vinha investigando Alves por envolvimento em um esquema de recebimento de propinas de comerciantes da rua Teresa, em Petrópolis, em troca de fazer vista grossa para a venda de roupas piratas no local. Segundo o Ministério Público, Turnowski monitorou o andamento do inquérito e repassava as informações para Alves. Ainda assim, a investigação prosseguiu, e Alves foi preso em julho de 2021 com 240 mil reais em dinheiro vivo e três veículos blindados. Ao extrair o conteúdo do celular de Alves, os promotores do Gaeco, braço do Ministério Público que investiga o crime organizado, encontraram os diálogos comprometedores de Alves, Oliveira e Turnowski.
O delegado Turnowski só deixaria o posto de secretário no início deste ano para concorrer a uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PL, partido do clã Bolsonaro. Seu número de urna é o 2227 – os dois últimos dígitos fazem referência aos 27 assassinados em operação coordenada por Turnowski no Jacarezinho no ano passado, na maior chacina da história do Rio.
Dois dias depois de participar das manifestações bolsonaristas do Sete de Setembro na orla de Copacabana, com direito a fotos com Jair Bolsonaro e Cláudio Castro, Turnowski foi preso na manhã desta sexta-feira, 9, em seu apartamento na Barra da Tijuca. No mesmo dia, ele foi denunciado pelo Ministério Público pelo crime de associação criminosa. Alves, que já estava preso, e Oliveira, foragido, foram denunciados por organização criminosa e corrupção passiva. O advogado de Turnowski, Fernando Drummond, não foi localizado. Em vídeo gravado em 11 de agosto, Turnowski disse que soube do mandado de busca que estava para ser cumprido em sua residência pelo Ministério Público e criticou os promotores do Gaeco, braço do órgão que investiga o crime organizado. “Vocês sabem que eu tô forte na minha campanha. E como deputado federal, o jogo vai inverter. […] Vocês são a escória do Ministério Público. Eu vou ser deputado federal e vou abrir investigação contra vocês. Vocês são canalhas, arapongas.”
Em nota, a Associação dos Delegados da Polícia Civil do Rio criticou a operação. “Temos profundo respeito pelo trabalho do Ministério Público, contudo, conforme noticiado pela imprensa, os fatos investigados são pregressos e não estariam em curso atualmente, o que nos leva a perguntar a razão de a operação não ter ocorrido há mais tempo ou após o pleito eleitoral.”
Até as 19h desta sexta-feira, Turnowski permanecia em uma sala da Corregedoria da Polícia Civil, enquanto sua defesa buscava um habeas corpus no Tribunal de Justiça.
Figura bem relacionada politicamente e influente na comunidade judaica carioca, Turnowski coleciona polêmicas na carreira. Nos anos 2000, chefiou uma equipe de PMs cedidos para a Polícia Civil. Parte dessa equipe se tornaria conhecida no submundo do crime, como Ronie Lessa, acusado de matar a vereadora Marielle Franco em 2018, e Carlos Humberto da Silva Moreira, o Cachorrão, preso posteriormente acusado de envolvimento com a milícia.
Em depoimento ao Ministério Público Federal revelado pela piauí, o miliciano Orlando Curicica disse que, em 2010, Turnowski foi um dos mandantes do assassinato de um sargento do Exército acusado de matar o filho de Rogério de Andrade, em 2010 (o contraventor sobreviveu), em troca de 2 milhões de reais. O delegado, segundo Curicica, também recebia propina do jogo do bicho para não apreender máquinas caça-níqueis espalhadas pelo Rio.
Em novembro de 2010, a Polícia Federal gravou um telefonema de Turnowski no qual ele parecia alertar um inspetor da Polícia Civil de que estava sendo investigado. O inspetor, segundo o Ministério Público, estava envolvido com a milícia e recebia até armas apreendidas em operações “oficiais” contra o narcotráfico. “Fica esperto aí porque nego da Federal tá dizendo que caiu na escuta. […] Vê se não tem ninguém mais agarrado. […] Confere suas equipes aí”, avisou Turnowski. Apesar de indiciado pela PF, não chegou a ser denunciado à Justiça pelo Ministério Público.
Depois disso, Turnowski renunciou à chefia da Polícia Civil e passou alguns anos atuando na área de segurança empresarial da Cedae, até que retornou à cúpula da corporação no governo Witzel, como subsecretário de Polícia Civil. “Ainda mais agora com doutor Allan Turnowski, esse pessoal chefiando a polícia, volta um monte de bandido a ter poder no Rio de Janeiro”, disse Curicica.