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    O advogado Wolmer Araújo: depois de embolsarem 9 milhões de reais, ele e o colega fizeram repasses considerados atípicos pelo Coaf Foto: Reprodução/Instagram

anais do judiciário

Vale-tudo contra a Vale

Uma nova história dos advogados e desembargadores investigados por venda de sentenças no Maranhão – dessa vez, envolvendo a maior mineradora do país

Allan de Abreu, do Rio de Janeiro | 03 abr 2025_09h41
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Há mais de quinze anos, a Vale enfrenta um périplo judicial no Maranhão. Um processo com tantos vaivéns, coincidências improváveis e transações incomuns que já custou à empresa mais de 20 milhões de reais, segundo a estimativa de seus advogados. Agora, o caso tem se mostrado mais ruidoso do que parecia inicialmente: entrou no radar do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). O órgão, vinculado ao Banco Central, constatou saques milionários e transações suspeitas entre os advogados que processaram a mineradora. 

O litígio chama atenção não apenas pela sequência de decisões estranhas, mas pelos personagens envolvidos nele. Muitos são juízes e desembargadores que foram indiciados, recentemente, por suspeita de participação em um esquema de venda de sentenças. Segundo a Polícia Federal, eles lesaram o Banco do Nordeste em ao menos 17 milhões de reais e distribuíram o dinheiro entre si. O processo contra a Vale guarda semelhanças com esse caso, e não apenas pelo nomes dos envolvidos.

A história começou em dezembro de 2009, quando uma dupla de advogados maranhenses – Wolmer de Azevedo Araújo e Arão Mendes de Melo – abriu duas ações contra a mineradora. Eles diziam representar, ao todo, 110 pescadores que trabalhavam na Praia do Boqueirão, em São Luís, e que reclamavam da construção de um píer da Vale. Segundo eles, a obra feita naquela praia vinha dificultando o sustento da atividade pesqueira na região. O processo dizia que os pescadores haviam sido “submetidos a violência moral e psíquica” e “impedidos de trabalhar, de pescar, de viver”. Pedia, por isso, que cada um deles recebesse da Vale uma indenização por danos materiais (de 200 mil reais), uma indenização por danos morais (80 mil reais) e uma pensão mensal (1,5 mil reais) pelo tempo que durasse o processo judicial.

O caso andou lentamente, ao longo de três anos, na 5ª Vara Cível de São Luís. Em 2012, enfim, a juíza responsável constatou não haver provas de que aquelas 110 pessoas dependiam, de fato, da pesca, nem de que haviam sido prejudicadas pela construção do píer da Vale. Negou, por isso, o pedido dos advogados. Eles recorreram da decisão, e o processo foi parar no Tribunal de Justiça. O colegiado negou os pedidos de indenização, mas concordou que os pescadores recebessem a pensão mensal de 1,5 mil reais. O processo foi relatado pela desembargadora Nelma Sarney Costa, cunhada do ex-presidente José Sarney.

Por força dessa decisão, a Justiça emitiu alvarás para que cada pescador pudesse sacar o dinheiro. Foi quando os dois advogados fizeram um pedido incomum: que eles, e não os pescadores, fossem autorizados a fazer os saques. Argumentaram que seria complicado, e tumultuaria o processo, se cada pescador recebesse um alvará individual. O pedido foi prontamente acatado. O juiz Luiz Gonzaga Almeida Filho (que, assim como Sarney Costa, foi indiciado em fevereiro no caso da venda de sentenças) ordenou que a Vale pagasse 5,6 milhões de reais aos dois advogados. O valor era alto assim porque o tribunal fez um cálculo retroativo, considerando que as pensões deveriam ter começado a ser pagas em 2009.

A mineradora recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e obteve uma liminar que suspendeu o pagamento (a essa altura, como tinham o mesmo objetivo, as duas ações contra a Vale foram reunidas em uma só). A história, porém, estava longe de acabar. De uma hora para a outra, alegando se tratar de um processo coletivo, a 5ª Vara Cível transferiu o caso dos pescadores para a recém-criada Vara de Interesses Difusos e Coletivos. O Ministério Público se manifestou contrário à mudança. O próprio juiz dessa nova vara também disse que não fazia sentido a transferência e se declarou, por isso, incompetente para julgar o processo.

Com essa bola dividida, coube ao Tribunal de Justiça decidir quem tinha razão. A praxe seria que o tribunal sorteasse um desembargador para tomar essa decisão, mas não foi o que aconteceu. Wolmer Araújo e Arão de Melo, a dupla de advogados, recorreram diretamente à desembargadora Sarney Costa, que, sem consultar os pares, decidiu novamente em favor da dupla. Em outubro de 2013, o caso foi para a Vara de Interesses Difusos e Coletivos.

A série de decisões, a essa altura, já era digna de nota. Ficou ainda mais peculiar.

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Wolmer Araújo, de 47 anos, não é um advogado qualquer. Tem boas relações na elite política do Maranhão. Seu pai, Edson Araújo, é deputado estadual em quarto mandato e presidiu a Federação das Colônias de Pescadores do estado. Influenciado por ele, Wolmer também enveredou pela política. Depois de algumas tentativas frustradas de se eleger deputado federal, conseguiu uma suplência e exerceu um breve mandato pelo Solidariedade, entre 2023 e 2024. Hoje é secretário da Pesca e Aquicultura do Maranhão, nomeado pelo governador Carlos Brandão (PSB), do mesmo partido de seu pai. Sua mulher, Nívea Azevedo, trabalhou nessa secretaria há alguns anos, como assessora jurídica (embora não seja advogada). Arão Mendes de Melo, o colega de Wolmer no litígio contra a Vale, foi assessor de Edson Araújo na Assembleia Legislativa.

A dupla passou a ter boa sorte depois que o processo chegou à Vara de Interesses Difusos e Coletivos. O primeiro acontecimento improvável se deu em março de 2015: ignorando a decisão do STJ, o juiz auxiliar Clésio Coelho Cunha autorizou a dupla de advogados a sacar todo o dinheiro que a Vale havia depositado na conta judicial. Àquela altura, mais pensões haviam se acumulado, e o que antes eram 5,6 milhões de reais já somavam 8,3 milhões.

A Vale, é claro, protestou a decisão. No dia seguinte, 1º de abril, o desembargador Lourival Serejo concordou com a mineradora e mandou cancelar a liberação do dinheiro para os advogados. Mas era tarde demais. Ainda no dia 31, tão logo foi publicada a decisão em seu favor, os dois advogados foram a uma agência do Banco do Brasil em São Luís e, segundo um relatório do Coaf obtido pela piauí, sacaram de uma só vez 9 milhões de reais (valor que corresponde aos 8,3 milhões com correção monetária). Em seguida, transferiram o dinheiro para uma conta corrente de Arão, um dos advogados.

Aconteceram, a partir desse momento, movimentações que o Coaf considerou atípicas. Dos 9 milhões de reais, 7,1 milhões foram repassados para uma conta de Nívea Azevedo, a mulher de Wolmer. Outro milhão foi transferido para um advogado chamado Frederico de Abreu Silva Campos. O pai de Frederico, na época, era assessor do então deputado estadual Edilázio Gomes da Silva Júnior (PSD-MA) – que, por sua vez, é genro da desembargadora Sarney Costa. Os 900 mil reais restantes foram repassados, por meio de cheques, para dois irmãos, Arnaldo e José Helias Sekeff do Lago, este último lotado no gabinete de Edilázio. Quase todos esses personagens – Frederico, Edilázio e os dois irmãos – foram indiciados pela PF, em fevereiro, por suspeita de participar da venda de sentenças no Tribunal de Justiça do Maranhão.

De mãos atadas, a Vale acionou novamente o STJ, que ordenou que os advogados maranhenses devolvessem os 9 milhões de reais. Tratava-se, na visão do ministro Antonio Carlos Ferreira, de um saque flagrantemente ilegal. A dupla de advogados devolveu então 6,6 milhões de reais à conta judicial da Vale, mas não esclareceu onde estavam os outros 2,4 milhões nem deu sinais de que os devolveria. A mineradora pediu ao juiz Cunha, aquele que havia liberado o dinheiro, que mandasse a Polícia Civil investigar os advogados pelo crime de apropriação indébita. Mas nada foi feito até hoje, e o dinheiro não apareceu.

O que era ruim, piorou: em dezembro de 2015, o ministro Ferreira, do STJ, derrubou a decisão do próprio tribunal que, meses antes, tinha mandado bloquear o saque do dinheiro pelos advogados. Ferreira argumentou que o bloqueio dizia respeito a apenas um dos dois processos movidos pelos advogados (ignorou, com isso, que o Tribunal de Justiça havia unido as ações). A ordem para que os advogados devolvessem o dinheiro continuou de pé, mas pouco importou: ao descobrir que o STJ havia mudado de posição, Cunha, o juiz, autorizou a dupla a sacar mais 5,9 milhões de reais da conta judicial da Vale. O dinheiro, segundo ele, era destinado ao pagamento de uma nova leva de pensões acumuladas.

Resumo da história: Wolmer e Arão não só embolsaram mais dinheiro, como não foram cobrados a explicar onde estavam os 2,4 milhões de reais que não devolveram da leva inicial. Novamente, a Vale recorreu da decisão. Foi atendida pelo Tribunal de Justiça do Maranhão, que ordenou a devolução de todos os milhões de reais. Mas os advogados, que já ignoravam a ordem do STJ, ignoraram também o tribunal maranhense sem maiores consequências.

 

A situação começou a mudar no início de 2016. Cunha, o juiz que deu sucessivas decisões em favor da dupla de advogados, foi transferido para outra comarca de São Luís. Em seu lugar, na Vara de Interesses Difusos e Coletivos, entrou a juíza Alessandra Costa Arcangeli. Passando o olho pelos processos que agora estavam sob sua supervisão, Arcangeli estranhou o caso dos pescadores contra a Vale. Notou que parte dos 9 milhões de reais liberados para Wolmer Araújo e Arão de Melo tinha ido parar nas mãos de advogados e assessores da Assembleia Legislativa do Maranhão que nada tinham a ver com o caso.

Para esclarecer a situação, a juíza intimou todos os 110 pescadores e perguntou a eles se tinham recebido alguma parte dos 2,4 milhões de reais que estavam desaparecidos. O tribunal registrou que apenas dois terços dos pescadores foram localizados e receberam a intimação. Eles negaram terem recebido dinheiro do processo. A juíza achou tudo ainda mais estranho quando advogados da Vale, depois de conduzirem uma investigação própria, demonstraram que parte dos tais pescadores tinham, na verdade, outras profissões. Havia entre eles, por exemplo, um mecânico, um fiscal de loja, um encanador e um operador de tratores.

A juíza, que havia assumido a vara interinamente, foi substituída meses depois por um colega, o juiz Douglas de Melo Martins, que deu continuidade a seu trabalho. Ao se informar do processo contra a Vale, Martins acionou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a corregedoria do Tribunal de Justiça do Maranhão, pedindo que fossem instauradas sindicâncias contra todos os magistrados que atuaram no caso. Afirmou, no despacho enviado em junho de 2017, que as “suspeitas de leniência e/ou de atuação movida por interesses pessoais” dos juízes “ferem de forma grave a imagem do Poder Judiciário do Maranhão”.

A dupla de advogados não demorou a reagir: ao saber das ações de Martins, pediu ao Tribunal de Justiça que o declarasse suspeito para julgar o caso. Alegaram que o juiz fazia ilações infundadas e, com isso, vinha retardando o processo. O pedido foi parar nas mãos do desembargador Antônio Guerreiro Júnior, que, em agosto, concordou com a reclamação e afastou Martins do processo. Justificou-se dizendo que “o magistrado já pressupõe atos de corrupção sem que ao menos tenha comprovação dos fatos, prejudicando o curso processual”. Guerreiro Júnior, como tantos personagens desse enredo, também está na lista de indicados pela Polícia Federal em fevereiro, suspeito de envolvimento na venda de sentenças.
Com isso, o caso foi parar nas mãos de outro juiz, Anderson Sobral de Azevedo. Em novembro de 2019, passados dez anos da abertura do processo, ele negou o pedido de indenização e pensão aos pescadores. Afirmou não haver provas de que o píer da Vale havia prejudicado a pesca na Praia do Boqueirão, tampouco de que aquelas 110 pessoas eram mesmo pescadoras. O juiz intimou a dupla de advogados a devolver, em até cinco dias, os 9 milhões de reais que haviam obtido (o valor é a soma dos 2,4 milhões de reais que eles não devolveram e dos 5,9 milhões que obtiveram depois, com correção). Por fim, Azevedo determinou que, diante das suspeitas de fraude, o caso fosse enviado ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público.

Os dois advogados, vendo o cerco apertar, recorreram mais uma vez ao Tribunal de Justiça. Só então o Ministério Público se manifestou no processo, apontando que havia mesmo indícios de crimes no caso. “Não se trata [] de verba de natureza alimentar, mas de verdadeira apropriação indébita desse valor”, escreveu a procuradora Sandra Lúcia Mendes Alves Elouf. Ela ressaltou que os advogados estavam claramente descumprindo ordens judiciais, “sem que ainda fosse adotada uma medida mais drástica contra os mesmos”.

Foi em vão. O recurso apresentado pelos advogados caiu novamente no colo do desembargador Antonio Guerreiro Júnior, o mesmo que havia afastado o juiz Martins do caso. Ao analisar o recurso, Guerreiro Júnior concordou que não cabia indenização aos pescadores, mas eximiu os dois advogados de devolverem os 9 milhões de reais, “tendo em vista o caráter da verba, qual seja, eminentemente alimentar”. Ou seja: o desembargador ignorou frontalmente o parecer do Ministério Público e o fato de que todos os pescadores ouvidos nos autos afirmaram não terem recebido nenhum centavo desses 9 milhões de reais.

Guerreiro Júnior ainda foi além: reformou a sentença da primeira instância de modo a impedir que o caso fosse investigado pelo Gaeco. O pedido de investigação, ele alegou, deveria partir da Vale, e não do Judiciário. O voto do desembargador foi endossado pelos outros dois integrantes da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça (entre eles, Luiz Gonzaga Almeida Filho, aquele que também havia sido indiciado pela PF em fevereiro). A Vale estimou, a essa altura, que já tinha gasto mais de 20 milhões de reais com as pensões retroativas e aquelas que foram pagas todo mês durante o processo, entre 2009 e 2019.

Tanto a dupla de advogados quanto a Vale recorreram ao STJ depois dessa decisão os primeiros, na tentativa de obter a indenização por danos morais e materiais que pleiteiam desde 2009; os segundos, na tentativa de reaver os 9 milhões de reais sacados pelos advogados e nunca devolvidos. Os dois recursos ainda aguardam julgamento em Brasília.

 

O juiz Clésio Cunha, responsável por liberar os 9 milhões de reais para os advogados, foi afastado do cargo durante a sindicância aberta pelo CNJ. Ao final da investigação, foi absolvido, e hoje trabalha no tribunal do júri em São Luís. A corregedoria do Tribunal de Justiça também abriu uma sindicância contra Cunha, pedindo ao Ministério Público que fornecesse subsídios à apuração. Os promotores, depois de analisar o caso, pediram o arquivamento da investigação. Alegaram que Cunha não havia desrespeitado a decisão do STJ, já que o tribunal bloqueou o dinheiro de uma ação e o juiz liberou o dinheiro de outra (novamente, ignorou-se o fato de que os dois processos tinham virado um só). A corregedoria acatou o parecer e inocentou Cunha.

À piauí, o juiz negou qualquer irregularidade e disse que as decisões do CNJ e da corregedoria do Tribunal de Justiça são uma demonstração de sua inocência. “O que eu fiz foi justo. Porque é difícil decidir a favor do lado mais fraco. Se eu tivesse continuado à frente do processo, minha sentença seria favorável aos pescadores”, afirmou, por meio de nota.

O advogado Arão de Melo, também por meio de nota, negou que tenha cometido crime. “Todos os valores recebidos pelo escritório foram devidamente repassados aos pescadores através da liberação mensal via alvará judicial”, afirmou, embora todos os pescadores ouvidos no tribunal tenham dito que não receberam dinheiro algum. O repasse, segundo ele, “era feito de forma organizada e honesta pela sra. Nívea Heloísa [Azevedo]”, mulher de Wolmer Araújo. “Portanto, não houve fraude, não houve favorecimento indevido e não houve irregularidade processual quando este causídico recebeu alvará judicial”, concluiu. “Nunca tive ganância por dinheiro. Vivo de forma simples e modesta até hoje.”

Wolmer Araújo, por sua vez, afirmou que possuía uma conta corrente conjunta com Nívea na época dos acontecimentos, o que explica, segundo ele, o repasse de parte do dinheiro a ela. Questionado sobre o dinheiro transferido a advogados que não participaram do processo, Wolmer respondeu que eles vinham colaborando informalmente com o caso. “A atuação dos advogados não necessariamente se dá na formulação de peças processuais, mas também em diligências, em consultorias, dentre outras [ações]”, afirmou, por escrito. Arnaldo Sekeff do Lago não explicou por que recebeu parte do dinheiro do alvará de março de 2015, embora nem ele nem seu irmão José Helias constassem como advogados no caso. “Pergunte ao meu irmão”, disse à piauí. José Helias só respondeu após a publicação da reportagem. Afirmou ter atuado informalmente no caso, e que não assinou nenhum documento nos processos “por exigência do Wolmer”. “Ele e o pai são políticos ligados à causa dos pescadores e ele queria ser o único a falar com as famílias”, disse o advogado. Segundo ele, Wolmer “poderia utilizar isso politicamente”.

Procurada pela piauí, a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça afirmou que não poderia contatar os desembargadores Sarney Costa, Guerreiro Júnior e Almeida Filho, já que os três foram indiciados pela Polícia Federal na investigação da venda de sentenças e estão afastados do cargo por determinação do STJ. A piauí tentou contato direto com eles e com seus advogados, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

 


A reportagem foi atualizada às 12h12 de 03/04/2025 para incluir o posicionamento do advogado José Helias Sekeff do Lago.