A única anotação que fiz durante os 93 minutos iniciais de Conclave foi: “sobriedade impecável” Crédito: Divulgação
O valor da incerteza
Um colégio de cardeais elege o novo papa
O conhecido ditado “contra fatos não há argumentos” anda desacreditado. Mesmo assim, é difícil ver sentido em assinalar reparos a Conclave, dirigido por Edward Berger. O que caberia dizer sobre um filme coberto de louros mundo afora, desde sua estreia, em agosto de 2024, no Festival de Cinema de Telluride, e que obteve, em seguida, sucesso comercial inusitado no circuito mundial de cinemas?
Na cerimônia de premiação da BAFTA (sigla em inglês da Academia Britânica de Cinema e Televisão), realizada em 16 de fevereiro, Conclave recebeu os prêmios de Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Filme Britânico e Melhor Montagem.
Tendo alcançado receita de 95 milhões de dólares, quatro vezes e meia os 20 milhões de dólares de seu orçamento, tornou-se um caso raro – premiado em festivais e concorrente a oito Oscars, nos primeiros seis meses de lançamento comercial superou mais de três vezes seu custo, gerando lucro apenas com a venda de ingressos, sem considerar rendas das demais mídias ainda a serem auferidas.
No Brasil, onde está em exibição há quatro semanas, Conclave foi visto, até 16 de fevereiro, por mais de 500 mil pessoas, e está entre os dez títulos de maior renda no mercado exibidor (dados do portal Filme B).
Tamanho sucesso financeiro e mais de setenta prêmios em festivais não excluíram, porém, críticas ardilosas a Conclave, como as de Richard Brody, por exemplo, na revista The New Yorker, em outubro de 2024: “Seu enredo é tão esperto quanto sua imaginação é inexpressiva, seus temas são tão sérios quanto sua abordagem é insossa”, ele escreveu. E ainda, deixando explícita a sua soberba nova-iorquina:
Berger se deleita em mostrar a normalidade dos deveres extraordinários dos cardeais, além de apresentar os mistérios da religião envoltos em incenso como um campo profissionalizado e rigorosamente prático, cujos mais altos representantes são tão obstinados e mundanos quanto os políticos seculares. Esse ceticismo moderado, no entanto, está em conflito com a própria história, que em última análise sugere – com certa deferência – que alguma iluminação espiritual guia aqueles que fizeram das almas o seu negócio. Esta afirmação digna de nota torna ainda mais desanimador o fato de, em um filme que envolve a formação de alianças e a mudança de corações e mentes, quase nenhum tempo de projeção ser dedicado a discussões, entre os muitos cardeais, sobre as decisões a serem tomadas e o que eles pensam a respeito, fora do círculo interno de sacristãos e candidatos.
Há algumas semanas, enquanto eu assistia a Conclave pela primeira vez, a única anotação que fiz durante os 93 minutos iniciais foi “sobriedade impecável”. Até aquele momento, havia me parecido notável a encenação e o modo de narrar a reação à morte do papa, seguida das articulações dos cardeais eleitores e os sucessivos escrutínios para eleger um substituto. De repente, deus ex machina, um evento me surpreendeu e 12 minutos depois uma revelação ainda mais imprevista me pôs em estado de alerta, incrédulo ao perceber que Berger e o roteirista Peter Straughan haviam preservado a intenção deliberada do livro de Robert Harris, publicado em 2016, de se tornar um best-seller utilizando recurso dramático tão banal quanto revelar no fim um fato impensado para pegar o espectador desprevenido.
Publicada no USA Today, jornal diário de maior circulação nos Estados Unidos, a frase de venda reproduzida no alto da capa da edição de Conclave da Alfred A. Knopf, é inequívoca e serve à perfeição ao filme de Berger: “Pulsa com intriga… Ambição, escândalos sexuais, corrupção financeira e terrorismo… E Harris guarda uma tremenda surpresa para as páginas finais.” (A edição brasileira foi publicada com outra capa, em 2020, pela Alfaguara).
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O primeiro evento a me deixar com o pé atrás em relação à astúcia de Conclave é a explosão que estilhaça o vidro de janelas e pedaços da parede da Capela Sistina, derruba e fere de leve na testa o cardeal Thomas Lawrence, no momento exato em que ele deposita seu voto, dado a si mesmo, no sexto escrutínio para eleger o novo papa. Berger e Nick Emerson, editor do filme, se permitem forjar a impressão de que o voto de Lawrence, ao ser posto na urna, aciona o estrondo. A causa, na verdade, foi outra, conforme o próprio Lawrence explica pouco depois, tanto para os cardeais que estão isolados, sem contato com o que ocorre fora do conclave, quanto para os perplexos espectadores, sem ter como compreender o que aconteceu: “Um carro-bomba explodiu na Piazza del Risorgimento. Pouco depois, enquanto as pessoas fugiam do local, um indivíduo com explosivos presos ao corpo explodiu a si mesmo. Há relatos de outros ataques em Louvain e Munique. No momento, o número de vítimas é de 52. Centenas foram feridos.”
Impacto maior, porém, e decisivo para a receptividade dada a Conclave, resulta do que Lawrence ouve, pouco depois, do cardeal mexicano Vincent Benitez (Carlos Diehz), arcebispo de Cabul, recém-eleito o novo papa: “… com uns 30 anos, fiz uma cirurgia para remover o apêndice. Foi aí que os médicos descobriram que eu tinha um útero e ovários. Alguns diriam que meus cromossomos me definiriam como mulher, mas também sou como me vê… cogitamos [o então papa e ele] cirurgia para retirar minhas partes femininas, mas, na véspera da viagem, eu percebi que seria um erro. Eu era quem eu sempre fui. Mudar o trabalho Dele me pareceu um pecado maior do que deixar meu corpo como sempre foi.” “Então você ainda é…”, diz Lawrence, sem completar a pergunta. “Sou o que Deus me fez”, responde Benitez. “E talvez essa diferença me torne mais útil. Penso no seu sermão. Sei como é existir entre as certezas do mundo.” O sermão de Lawrence ao qual Benitez se refere, pronunciado na abertura do conclave, aos 35 minutos do filme, levou dois minutos – ele esclarece a premissa básica de Conclave e vai transcrito a seguir na íntegra:
Deixe-me falar de coração por um momento… Para trabalhar e crescer juntos, devemos ser tolerantes. Nenhuma pessoa ou facção deve buscar dominar a outra. E, falando aos efésios, que eram uma mistura de judeus e gentios, [São] Paulo nos lembra que o dom de Deus à Igreja é a sua variedade. É essa variedade, essa diversidade de pessoas e ideias, que confere força à nossa Igreja. Ao longo de muitos anos a serviço de nossa Igreja Mãe, devo dizer que há um pecado que passei a temer acima de todos os outros: a certeza. A certeza é a grande inimiga da união. A certeza é a inimiga mortal da tolerância. Nem mesmo Cristo tinha certeza no final. “Meu Deus, porque me abandonastes?”, ele gritou em sua agonia, na nona hora na cruz. Nossa fé é algo vivo justamente porque caminha de mãos dadas com a dúvida. Se houvesse apenas a certeza e nenhuma dúvida, não haveria mistério. E, portanto, nenhuma necessidade de fé. Oremos para que Deus nos conceda um papa que tenha dúvidas. Que Ele nos conceda um papa que possa pecar, pedir perdão e seguir em frente.
Sozinho, pensativo, Lawrence recolhe em silêncio a tartaruga desgarrada e a devolve à água do canteiro no jardim, enquanto os votos dos cardeais são queimados – sequência simbólica sujeita a diferentes interpretações; o cardeal ouve, em seguida, o som da multidão festejando a eleição do Papa Inocêncio XIV, sinalizada pela fumaça branca que o filme não considera necessário mostrar. Na cena final, Lawrence vê da janela do quarto três freiras saírem por uma porta, descerem cinco degraus e cruzarem o pátio dando risadas – um encerramento enigmático.
Carlos Diehz no papel do cardeal mexicano Vincent Benitez (Crédito: Divulgação)
Entre os artigos escritos a propósito do filme de Edward Berger que pude ler, um dos mais intrigantes é o de Michael Schulman, publicado em 6 de fevereiro na revista The New Yorker. Schulman propõe explicar como a “corrida do Oscar se tornou tão bagunçada quanto Conclave”:
… Um comitê de personagens ilustres se reúne, com muita pompa e circunstância, para escolher o melhor dentre eles. Rituais consagrados pelo tempo são observados. Roupas extravagantes são vestidas. Olhares indiscretos do público são mantidos à distância. Os competidores, alguns representando o progresso, outros a tradição, disputam apoios, embora fazer campanha aberta seja malvisto – e campanha negativa seja um tabu, embora aconteça em sussurros. Rumores nada lisonjeiros circulam e os concorrentes são obrigados a expiar seus pecados pregressos. Votos secretos são lançados e contados, em um sistema de contagem misterioso, e um vencedor é anunciado, com grande alarde… uma sucessão de miniescândalos ameaçou inviabilizar um candidato a Melhor Filme após o outro, culminando em uma das temporadas de campanhas mais confusas da memória recente. Em Conclave, a previsão muda cada vez que um cardeal caído em desgraça sai da disputa. Na corrida pelos prêmios [da Academia], surge a questão: algum dos indicados chegará ileso à cerimônia [de entrega do Oscar]?”
Se a descrição de Schulman corresponde, de fato, aos rituais de escolha do papa e dos premiados com o Oscar, uma conclusão a que se pode chegar talvez seja que não cabe fazer tanto alarde a respeito desses dois rituais.
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