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questões cinematográficas

Vestígio trágico de Naomi Kawase

A relação é inevitável.

Vestígio (2012), documentário de média-metragem fotografado e dirigido por Naomi Kawase, traz à lembrança de imediato a Série trágica, desenhos a carvão sobre papel, feitos por Flávio de Carvalho, em 1947.

Exibido na mostra Panorama do Festival do Rio e no Indie.12, em Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre, Vestígio trata da morte, tema recorrente nos filmes de Kawase desde Caracol (Katatsumori), de 1994, e central a Carta de uma cerejeira amarela em flor (tradução do título em inglês), de 2003, gravado a pedido do crítico de fotografia Nishii Kazuo.

| 04 out 2012_14h31
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A relação é inevitável.

(2012), documentário de média-metragem fotografado e dirigido por Naomi Kawase, traz à lembrança de imediato a Série trágica, desenhos a carvão sobre papel, feitos por Flávio de Carvalho, em 1947.

Exibido na mostra Panorama do Festival do Rio e no Indie.12, em Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre, trata da morte, tema recorrente nos filmes de Kawase desde Caracol (Katatsumori), de 1994, e central a Carta de uma cerejeira amarela em flor (tradução do título em inglês), de 2003, gravado a pedido do crítico de fotografia Nishii Kazuo. Ela o observa no hospital, com o rosto quase sempre virado, sem olhar para a lente da câmera, apesar da iniciativa ter sido dele – com apenas dois meses de vida, telefonou para ela e pediu que o filmasse até seu último suspiro.

Flávio de Carvalho, por sua vez, ao encontrar a mãe dele agonizante, fez croquis a caneta dos momentos finais da vida dela, transformados depois na série de nove desenhos, em quatro dos quais escreveu “minha mãe morrendo”. Exposta no Museu de Arte de São Paulo, em 1948, a Série trágica provocou “protestos ululantes” na vernissage, segundo Pietro Maria Bardi. As imagens chocaram. Nas palavras algo grandiloquentes do fabuloso Francisco Luiz de Almeida Salles, “a ousadia de Flávio de Carvalho, postando-se lúcido diante do coma maternal, abalou o burgo piratiningano, rico e burguês, mas submisso aos padrões estereotipados da moral e do sentimentalismo herdados do reinado patriarcal de Don Pedro II.”

Não faltam a Kawase ousadia e lucidez equivalentes, ou até maiores, para romper tabus. E o próprio Almeida Salles, presumimos, submetido ou não aos mesmos padrões morais e sentimentais da burguesia paulistana dos anos de 1940, ficaria abalado em alguns momentos de Carta de uma cerejeira amarela em flor e Vestígios.

A justificativa de Flávio Carvalho para o impulso de desenhar a agonia da sua própria mãe foi que não queria “esquecer seu grande sofrimento”, motivo semelhante ao do projeto de Kazuo e Kawase em Carta de uma cerejeira amarela em flor.

Na primeira frase da narração, ela diz que “faz filmes para deixar alguma coisa para trás. Algo para provar” que viveu. Kazuo, por sua vez, diz mais adiante no filme querer que ele seja “um registro do que eu digo, enquanto ainda estou vivo”. Ao que Kawase acrescenta: “É isso que dá sentido à filmagem.” E ele completa: “Sim, com certeza. Como nos livros.”

Cautelosa e hesitante, Kawase trata Kazuo de início com formalidade, e pergunta o que ele gostaria que ela filmasse. Aparentando indiferença responde querer “apenas viver pelo maior tempo que puder”.

Lúcido até próximo ao fim, à medida que a conversa prossegue, em novos encontros, Kazuo se torna mais loquaz, passando a falar de si mesmo e do que o espera:

“Deverei ir/com as folhas cadentes/da cerejeira.”

“Quero morrer sem dificuldade. Eu não quero sofrer.”

“Encaro o fato de que morrerei muito breve.”

A gravação não é interrompida quando Kazuo tem acessos de tosse. E a montagem preserva momentos em que expectora. Ele definha ao longo das semanas e quando as folhas da cerejeira estão prestes a cair, reconhece que está na hora dele “ir para um mundo desconhecido”. Ao ver sua própria imagem no visor da câmera, o que tem a dizer é: “Vá rápido e morra, idiota.” No último plano em que o vemos, respira com dificuldade. Seu ríctus é o de quem sabe que está se aproximando do fim.

Kawase vai de encontro, dessa maneira, à afirmação de Krzystof Kieslowski, segundo a qual “se estou fazendo um filme [documentário] sobre a morte, não posso filmar uma pessoa morrendo por que é uma experiência tão íntima que a pessoa não deve ser perturbada.” O que Kazuo e Kawase fazem, e Flávio de Carvalho já fizera, além de inconcebível, seria inaceitável para os padrões morais de Kieslowski – nem rico, nem burguês, nem sentimental, e de um burgo distante de Piratininga.

Isso, escrito com a cautela que Francesca Azzi tem razão em recomendar na primeira das suas “23 pequenas reflexões sobre a obra de Naomi Kawase”: “Não temos como saber exatamente a lógica do pensamento de uma criança; tampouco de uma mulher japonesa, nascida em Nara, no dia 30 de maio de 1969.” (O cinema de Naomi Kawase, catálogo da mostra promovida, em maio/junho de 2011, no CCBB).

Diante da Série trágica “é difícil ficar indiferente”, conforme Veronica Stigger escreveu no ensaio “Retratos dentro da morte: a Série Trágica de Flávio de Carvalho” (Crítica cultural, volume 4, número 2, jun/dez 2009). Segundo ela, os desenhos até hoje produzem “um certo desconforto em quem os observa”.

Algo parecido acontece, sendo mais perturbador, porém, em Carta de uma cerejeira amarela em flor e Vertigem. O espectador se sente cúmplice da invasão de privacidade propiciada por Kawase. Sentimento acentuado pela impressão de intimidade dada pelo cinema. Aparência de movimento da imagem, som direto, granulação própria de video amador, não destinado a exibição pública – tudo conspira a favor da ilusão do espectador de presenciar algo interditado.

Depois de ter dedicado, entre 1994 e 1996, uma trilogia a Inori, sua tia avó e mãe de criação, a quem chama de avó, em Vertigem Kawase a observa no hospital, com 95 anos, em estágio final de demência senil. A câmera se aproxima dela, amorosa. Kawase estende o braço, enquanto grava, para acariciar seu rosto. Mas faz closes tão de perto que partes do corpo parecem ganhar existência autônoma. A orelha, ocupando toda a tela, não parece humana. A boca lembra o estertor de um peixe largado no fundo do barco.

O tom da conversa das duas é afetuoso. Frágil e habituada à filha adotiva, Inori não estranha estar sendo filmada, nem mesmo quando acorda e se depara com a câmera – fica feliz enquanto consegue reconhecer Naomi. Mas ela não poupa sua avó. Filma seu corpo no banho, também em planos muito próximos, revelando sua nudez em ruínas.

Fogos de artifício iluminam o céu, parecendo gravados da janela do quarto onde Inori, com a perda progressiva das funções cerebrais, deixa de reconhecer Naomi. Está em curso a tradição centenária de queimar, no inverno, a grama da encosta do monte Wakakusa, em Nara, antiga capital do Japão. Usando tochas, os monges põe fogo na grama morta para que ela renasça, no ritual da vida nova Yamayaki Wakakusa.

Para Naomi Kawase, só resta projetar Caracol, primeiro filme da trilogia dedicada à sua mãe de criação, mostrando o cotidiano dela, no qual já estendera o braço para acariciar sua imagem através do vidro da janela. Agora, Kawase acaricia sua imagem projetada e diz, dirigindo-se a ela: “Sou feliz. Obrigado.”

Filmado mais de dez anos antes de , em Caracol, Inori, com mais de 80 anos, começa falando da morte e ainda tem energia para protestar carinhosamente contra a filmagem, enquanto cuida das flores e legumes do jardim. “Estou ficando velha, vou acabar morrendo”, ela diz, e continua:

“Você está filmando de novo? Pare um pouco. Pare de filmar o tempo todo. Boas lembranças, suponho. Não será fácil, viverei até ter 100 anos. Você está perto demais. Pare ela, por favor. Pare de me filmar o tempo todo. Falo sério. Por favor, pare Naomi. Filme a si mesma! Chega, de verdade. Estou caindo. Pare ela. Alguns minutos bastam. Mas ela nunca pára. Eu estou sempre disponível. Chega. O que você conseguiu? Deixe-me ver, agora.”

“Grande close-up”, diz Naomi.

“Não gosto de grandes close-ups”, diz Inori.

Tomo para encerrar, sem autorização, mas com meu agradecimento, um pequeno trecho do ensaio de João Dumans, “Luz e sombra sobre os olhos”, centrado em Carta de uma cerejeira amarela em flor, publicado no mesmo catálogo da mostra referida acima:

“A câmera de Kawase, voltando-se com uma delicadeza incomum à enorme cerejeira que se ergue do lado de fora do quarto, apreende os traços furtivos de uma beleza que não havia sido sequer convidada a entrar, mas que penetra sorrateiramente pela janela, transformando a atmosfera dessa cena que deveria ser protagonizada apenas pela morte.”

Obrigado, João Dumans.

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