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    MONTAGEM DE THALLYS BRAGA COM IMAGENS DE REPRODUÇÃO DE INTERNET E ARQUIVO PESSOAL DE WALTER DIAS

depoimento

“Viajei dez horas para narrar o milésimo gol de Pelé”

Radialista conta suas agruras para narrar momento histórico – mas diz que seu gol favorito era outro

Walter Dias | 17 jan 2023_17h02
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Aos 87 anos, quase 70 de profissão, o radialista santista Walter Dias ainda lembra bem a saga que foi para narrar aquele que é oficialmente reconhecido como o milésimo gol de Pelé. Semanas antes de ser atingida, a marca de mil gols trouxe nervosismo e apreensão tanto para o Rei do Futebol como para o time do Santos. Pelé morreu aos 82 anos no último dia 29, vítima das complicações de um câncer de cólon. Não falta quem questione o título do gol mil e tente incluir na contagem outros tentos em jogos não oficiais. Mas, para os registros históricos, o gol mil foi mesmo contra o Vasco. Nesse depoimento, Dias relembra as agruras para chegar ao Maracanã e transmitir o momento – e diz que seu candidato a gol mais bonito é um que pouca gente viu.

Em depoimento a Flávio Leal

Meu nome é Walter Dias, tenho 87 anos e quase 70 deles dedicados ao rádio esportivo. Tive uma infância difícil. Perdi minha mãe aos 9 anos. Ela tinha 32 anos e o meu pai, sem condições de criar os cinco filhos, teve que nos distribuir entre diversos parentes. De navio, aos cuidados de um imediato, fui enviado para Florianópolis, capital catarinense, para morar com um tio, estudar e aprender o ofício de alfaiate, que não me interessou. Um amigo da família chegou para mim e disse que, se eu passasse de ano no colégio, ganharia uma passagem para visitar meus parentes em Santos. Eu me esforcei e passei. 

Retornei à minha cidade e nunca mais voltei para Santa Catarina. Fui criado pela minha avó e minha tia, uma época que guardo no coração. Nesse tempo, eu já frequentava a Vila Belmiro, vizinha ao bairro onde nasci, o Campo Grande. Eu era levado ao estádio pelos meus tios e já sonhava com o rádio. Ensaiava uma carreira, imitando as narrações para todo mundo de casa. Era muito fã de um radialista chamado Ernani Franco e, com a Copa de 1950, meu interesse só aumentou. Em 1953, quando tinha 18 anos, amigos me incentivaram a participar de um concurso da Rádio Cultura. Fui e ganhei, entre oitenta candidatos. Em 1955, já na Rádio Clube, fiz a cobertura do título paulista de 1955.

Eu vi Pelé desde que ele chegou ao Santos, trazido pelo Waldemar de Brito, amigo da família dele. As virtudes eram inegáveis, e ele, embora da base, já treinava entre os profissionais. Pelé respeitava muito o Zito (José Ely de Miranda, capitão do time). Zito berrava com Pelé em campo. Era um time de craques, e eles eram muito unidos. Foi uma época de ouro do time e do futebol (anos 1960). Naquele tempo, tínhamos liberdade para trabalhar como jornalistas, e entrevistei Pelé em restaurantes, banheiros. Hoje você tem que marcar com antecedência uma entrevista com qualquer jogador e não se consegue no mesmo dia. Pelé nunca negou uma entrevista. Era sempre atencioso. Posso dizer que a carreira dele foi pautada pela humildade e pela genialidade. Tratava todo mundo igual, com muita gentileza, fosse quem fosse, rei ou popular. 

Viajei com o Santos o Brasil todo para narrar e, em algumas oportunidades, pelo exterior. Na ocasião do milésimo gol havia toda aquela expectativa. Era para ter saído em Salvador, dias antes, quando por falta de dinheiro não pudemos ir cobrir o jogo contra o Bahia na Fonte Nova. E não saiu! Pelos mesmos motivos financeiros, não era para eu estar narrando no Maracanã naquele 19 de novembro de 1969, uma quarta-feira, contra o Vasco. Mas eu tinha quase a certeza de que o milésimo sairia e insisti com a direção da Rádio Cacique, que deu a opção de levantarmos os valores necessários com patrocinadores, porque, como disse, não havia dinheiro. 

Dessa forma, nos dias anteriores ao jogo com o Vasco eu corri para vender no comércio de Santos cinco cotas publicitárias. O dinheiro iria em sua maior parte para custear a transmissão, por meio telefônico, via Embratel, que tínhamos que comprar e reservar com antecedência, via ofício, três dias antes. Seríamos a única rádio de Santos a estar presente naquele evento. Eu e o repórter Leonardo Augusto saímos no dia do jogo, às 7 horas, de Santos, num Fusca, levando todos os equipamentos de transmissão. Só tínhamos o dinheiro para a gasolina e um lanche. Foram 10 horas de viagem e chegamos às 17 horas no Maracanã. Iríamos voltar (outras dez horas) depois do jogo, porque não havia verba para hotel. 

No Maracanã, como éramos uma emissora pequena, ficávamos atrás das cabines onde as maiores, de São Paulo e do Rio, tinham o seu lugar. Equipamentos ao ar livre, uma vez que sequer tínhamos cobertura para eles, e tive de improvisar uma cobertura por causa de um chuvisco insistente naquela noite carioca. Nós tínhamos duas linhas telefônicas, uma para a transmissão e a outra de retorno, e havia ocasiões em que uma delas caía. Mas não naquela noite. Sabíamos, semanas antes, que ele não queria converter o milésimo gol de pênalti, mas o Maracanã era o palco ideal para a marca, um estádio que ele adorava e o Santos também, assim como a torcida carioca, que se encantava com o time e, claro, com Pelé.

O jogo estava empatado em um a um, aquele nervosismo do milésimo gol cada vez maior, e veio o pênalti. Como disse, Pelé não queria marcar o  milésimo gol dessa forma, mas o Carlos Alberto Torres, capitão do Santos, chamou todos os jogadores ao centro do campo para discutir, e a torcida de 65 mil pessoas no estádio gritava o nome de Pelé. E saiu a decisão do time: ele iria bater. Bateu, gol feito, o goleiro vascaíno Andrada quase pegou e foi aquela confusão, uma enorme festa. O milésimo gol tinha saído, graças a Deus! Colocou um fim naquele vai não vai… Não foi como a gente queria, nem como Pelé gostaria, mas pelo menos acabou com aquele nervosismo e foi marcado no Maracanã que ele tanto amava. Ele fez tantos gols maravilhosos na carreira, alguns eu vi. Para mim o maior foi aquele da Rua Javari, em São Paulo, em agosto de 1959, na vitória por 4 a 0 contra o Juventus. Vi do campo e foi magnífico, à altura do Rei. Foi o gol mais bonito dele. Pelé recebeu a bola na entrada da área, deu três chapéus contra os defensores, um quarto no goleiro Durval, o Mão de Onça, e mandou para o fundo das redes de cabeça. Sequer há registro em imagens desse gol e posso dizer que as reproduções feitas em computação gráfica não conseguem mostrar a magnitude daquele gol. Para mim, aquele foi o grande gol de Pelé. E eu vi.


 

Para este depoimento, Walter Dias cedeu à piauí sua narração do milésimo gol de Pelé. Ouça a seguir.

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