“Viajo por que preciso, volto por que te amo” – duas viagens
São 30 dias cruzando o agreste nordestino para fazer uma pesquisa geológica. Narrada em forma de diário, a viagem tem o propósito de pesquisar o trajeto de um canal a ser construído – referência provável à transposição do rio São Francisco. “Por que insistem em fazer essa obra aqui?”, pergunta o geólogo na voz off que conduz a narrativa. “Na verdade, não é problema meu”, conclui.
São 30 dias cruzando o agreste nordestino para fazer uma pesquisa geológica. Narrada em forma de diário, a viagem tem o propósito de pesquisar o trajeto de um canal a ser construído – referência provável à transposição do rio São Francisco. “Por que insistem em fazer essa obra aqui?”, pergunta o geólogo na voz que conduz a narrativa. “Na verdade, não é problema meu”, conclui.
Há tensão entre o que se ouve e o que vê em “Viajo por que preciso, volto por que te amo”, dirigido por Karim Ainouz e Marcelo Gomes. São, na verdade, duas viagens habilmente cerzidas. Uma visual, outra sonora, feitas com 10 anos de intervalo. O que resulta é uma experiência fílmica rara em que nem os planos ilustram a narração, nem a narração descreve os planos. O registro visual seria considerado documental, o sonoro ficcional. Reunidos, tornam essa diferença entre os gêneros obsoleta.
Desde o dia da partida, o viajante pensa na volta. A mulher amada é uma referência constante e o narrador diz, como se estivesse falando com ela: “Faltam 23 dias para voltar, e volto por que te amo.” Promessa e declaração que parecem definir um compromisso. Ela é botânica, ele geólogo – “um casamento perfeito”.
Solitário, o narrador só vê solidão. Estradas sem movimento, caminhos quase desertos parecem de um mundo inabitado. Artifício e miséria convivem, lado a lado. Gotas de orvalho artificiais em pétalas de plástico, rosas feitas de espuma, buracos tapados precariamente com pedras em troca de alguns tostões. Nos poucos contatos humanos, as pessoas posam, mudas e imobilizadas, para serem fotografadas. A festa da padroeira, em Juazeiro do Norte, é oportunidade para ver gente, gente demais, talvez – “A cidade dos romeiros está sempre cheia de gente.”
As flores do caminho revelam a crise do que parecia uma relação idílica. Pensando na volta, o narrador especula: “Se eu chego com essa flor, quem sabe volte a reinar a alegria?” Afinal, comenta que houve uma separação. Tem dificuldade em trabalhar – “abandonei as rochas”, a viagem atrasa. Busca consolo nos moteis com Larissa, Michele, Claudia Rosa, Shirley, encontradas na beira da estrada, nos postos de gasolina. Já não pensa na volta – “Não quero que essa viagem acabe nunca.”
É então que muda a maneira de observar. Pela primeira vez quem filma interage com quem é filmado. Simone da Silva, com uma falha nos dentes, diz: “Queria ter uma vida lazer. Queria ter um amor reservado só para mim.” O narrador também quer “ter uma vida lazer”. Passa a dizer: “não volto por que ainda te amo.”
Depois de passar por um circo, em que um casal se estapeia, há o segundo grande momento de interação no encontro com seu Severino, sapateiro. Cantor romântico, digno de Nelson Gonçalves, interpreta “Nosso amor”, de Noel Rosa. O narrador repete a letra, em seguida, com o apelo: “Se alguma pessoa amiga/Pedir que você lhe diga/Se você me quer ou não/Diga que você me adora/Que você lamenta e chora/A nossa separação”.
Há 6 semanas longe de casa, separado da mulher amada há 52 dias, o viajante está na cidade de Piranhas, em Alagoas, “a primeira a ser coberta pelo canal. Ponto inicial da transposição das águas.” O narrador diz que agora se sente livre como… Por alguns segundos o espectador pode se perguntar se a liberdade de Karim Ainouz e Marcelo Gomes permitirá que cortem para… Se não for o único, é dos poucos momentos do filme em que há relação direta entre o dito e o visto. Por isso mesmo, é um corte poderoso, de efeito catártico, libertador.
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“Viajo por que preciso, volto por que te amo” é uma bela demonstração de sensibilidade e inteligência. Não se pode pedir mais do que isso.
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