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    Deus e o diabo na terra do sol

questões cinematográficas

Vidas secas

A explosão de Deus e o diabo na terra do sol, em março de 1964, atenuou o impacto de Vidas secas, ocorrido em novembro do ano anterior. Levados pela euforia que precedeu o golpe militar, os mais ingênuos consideraram que o filme de Glauber Rocha superava o de Nelson Pereira dos Santos.

| 03 jul 2013_17h15
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A explosão de , em março de 1964, atenuou o impacto de Vidas secas, ocorrido em novembro do ano anterior. Levados pela euforia que precedeu o golpe militar, os mais ingênuos consideraram que o filme de Glauber Rocha superava o de Nelson Pereira dos Santos.

Em retrospecto, a tolice dessa disputa parece clara, mas na época eram comuns dicotomias esquemáticas como a que contrapôs Vidas secas e Deus e o diabo. Não é difícil encontrar metáforas esportivas na crítica de cinema de então que acentuavam o caráter competitivo da atividade, vista como se fosse uma luta de boxe, com rounds nos quais diretores superavam uns aos outros.

Vidas secas é um filme incomparável, em mais de um sentido. Nelson não havia feito nada parecido antes, nem faria depois. No cinema brasileiro, por sua vez, também não se encontram realizações equiparáveis. E mesmo na produção internacional, apesar de ser arriscada avaliação tão abrangente, a única referência que ocorre é a da trilogia de Apu, de Satyajit Ray, iniciada em 1955 e parcialmente exibida, no Brasil, entre o final de 1961 e início de 1962.

Locações reais, elenco formado em maioria por não profissionais, encenação de ações banais pouco decupadas, fotografia sem artifícios de luz, ausência de trilha musical, diálogos esparsos – tudo contribui para a impressão de autenticidade do registro visual, em Vidas secas. Até mesmo a precariedade da sonorização, excetuado o uso do rangido do carro de boi, contribui para a recriação ficcional de um mundo de dimensões míticas, fora do tempo, em que a cidade grande é evocada como um pólo de atração distante – terra prometida cultivada pela imaginação.

Falou-se de despojamento, minimalismo, crueza, brutalidade da luz, a propósito de Vidas secas. Todos traços identitários do filme, sem dúvida. Mas o decisivo para sua permanência talvez seja o que Jean-Claude Bernardet chamou de “alto nível de abstração”, apesar da inferência redutora que ele mesmo fez dessa noção em Brasil em tempo de cinema, publicado em 1967. Lida hoje, parece tão descabida quanto na época a extrapolação que levou Jean-Claude a escrever que Fabiano “é tanto o sertanejo quanto o pequeno-burguês citadino, e talvez mais o segundo que o primeiro”; e que sua família “pode ser tanto sertaneja como da classe média de qualquer centro urbano”, “pode até ser mais classe média que sertaneja”. Para Jean-Claude Vidas secas seria “um filme urbano a respeito do campo”.

O paralelo, feito pelo próprio Jean-Claude, entre Vidas secas e o documentário Maioria absoluta, enfatiza que o filme de Nelson não é atado por fatores contingentes, como os que enraizam o curta-metragem de Leon Hirszman no início de 1964, época em que foi realizado. A dimensão abstrata de Vidas secas se sobrepõe, contrariando inclusive a aparente intenção de Nelson ao situar o filme em 1942, através de uma legenda nos segundos finais do último plano.

Revisto pela primeira vez, depois de cinquenta anos, Vidas secas transcende circunstâncias sociais específicas e vinculações temporais precisas. Molda-se ao que o próprio Graciliano Ramos chamou do seu “bárbaro pensamento”: “um homem, uma mulher, dois meninos e um cachorro, dentro de uma cozinha, podem representar muito a humanidade.” (Graciliano Ramos em carta citada por Dênis de Moraes, O velho Graça, p.161)

Sinhá Vitória, mulher de Fabiano, é sonhadora e nostálgica. Para ela, o passado “era bom”. Ela se interroga sobre “haverem de ser gente um dia, gente que dorme em cama de couro.” O presente é uma “desgraça”. “Um dia temo que virar gente. Podemos continuar vivendo que nem bicho, escondido no mato? Podemo?” A resposta de Fabiano – “Não podemo, não.” –, por ser a última fala do filme, adquire mais peso do que no romance. E introduz uma nota demagógica contraditória com a narrativa que aprisiona os personagens numa estrutura cíclica. Iniciado no plano em que Fabiano e sua família surgem no horizonte e caminham até passar pela câmera, no final de Vidas secas, ao som do mesmo ranger do carro de boi, eles se distanciam, refazendo o mesmo caminho até sumirem na linha do horizonte.

Apesar de Jean-Claude ter forçado a mão ao considerar Fabiano “o pequeno-burguês citadino” e sua família “mais classe média que sertaneja”, acertou ao escrever que Vidas secas “representa o mais alto grau de abstração atingido entre nós pelo cinema”.  E é justamente graças a isso que o filme de Nelson Pereira dos Santos não só preserva como amplia sua grandeza. Ao ser revisto, Vidas secas demonstra ter vencido a prova do tempo – feito raro que poucos conseguem realizar.

Vidas secas está sendo lançado em DVD, pelo Instituto Moreira Salles, junto com São Bernardo e Memórias do Cárcere.

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