Casas do novo Bento Rodrigues, vilarejo erguido após a lama da barragem da Samarco soterrar o antigo povoado Foto: Isis Medeiros
Vilarejo inventado
Depois de esperar sete anos e meio, moradores de Bento Rodrigues – primeiro povoado no caminho da lama que jorrou da barragem em Mariana – começam a receber as chaves de suas novas casas. Mas nem todos estão satisfeitos
À primeira vista, tudo parece perfeito. Mirando o horizonte, enxerga-se a majestosa Serra do Caraça, pedaço da Cordilheira do Espinhaço, entre as cidades mineiras de Catas Altas e Santa Bárbara. Bem defronte, o olhar encontra o Pico do Frazão, com quase 1,5 mil metros de altitude. Percorrendo as ruas que sobem e descem, as casas chamam a atenção: grandes, avarandadas, coloridas. Se os telhados de várias águas lembram a arquitetura colonial predominante na região, o resto se afasta do passado. Para quem acabou de cruzar a vizinha Ouro Preto, antiga capital de Minas Gerais, é como sair de um filme de época e adentrar um moderno condomínio de alto padrão. Há sete anos e meio, os futuros moradores dessa pequena vila que brotou do nada aguardam as chaves para, enfim, voltar a ter um pouso certo. Em 5 de novembro de 2015, mais de 40 milhões de metros cúbicos de lama jorraram da barragem da Samarco, mineradora controlada pela Vale e pela BHP Billiton, soterrando o velho Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana e primeiro povoado no caminho da destruição. Erguido a apenas 11 km de onde ocorreu o desastre, o novo Bento Rodrigues já está dando o que falar. Segundo se ouve nas históricas esquinas de Mariana, o lugarejo bem podia ganhar outro nome: Alphabento, referência maliciosa à franquia Alphaville.
“Construíram um novo Bento Rodrigues. Esse novo Bento é um condomínio de luxo, que vai ser gentrificado, a população [de lá] vai vender [os imóveis] às pessoas ricas, para morar no bairro [operário de] Cabanas”, afirmou, em evento público, o prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo (PV), numa desastrada declaração que mereceu moção de repúdio da Câmara de Mariana. Verdade seja dita, o povoado ainda continua sendo um canteiro de obras. A previsão é que esteja concluído até outubro. Por enquanto, somente onze moradores receberam as chaves, de um total de 110 casas prontas. Para onde quer que se olhe, veem-se homens e mulheres de macacão e capacete (são cerca de 2,5 mil trabalhadores). Quando a última chave for entregue, a Fundação Renova, criada pelas controladoras da Samarco para reparar os danos do irreparável crime ambiental, terá finalizado uma empreitada que colocará 143 residências de pé, além de serviços como escola e posto de saúde. As moradias abrigarão aproximadamente seiscentas pessoas. Toda a comunidade participou das decisões sobre o projeto. O atraso no prazo original de entrega, prorrogado por doze meses devido à pandemia, já ultrapassa três anos.
“Era para fazer o que então? Minha Casa, Minha Vida?”, resmungou o representante da Renova e arquiteto responsável pela obra, Alfredo Zanon, enquanto guiava a piauí numa visita aos imóveis ainda desocupados. Ele contou que um futuro morador pediu (e conseguiu) uma casa com mosaico de ladrilhos da Santa Ceia. Outro quis a varanda revestida de cerâmica preta e branca, em homenagem ao Atlético Mineiro. Também fez questão de encaixar na entrada a porteira da casa antiga, resgatada na lama da barragem. A maioria optou por pisos de porcelanato polido. Outros hits são os parapeitos de Blindex e os cobogós. Segundo Zanon, no auge dos trabalhos, 49 arquitetos se debruçaram, dia e noite, sobre pranchetas. Foram produzidos 26 mil desenhos de 50 por 80 cm. Para comparar, no reassentamento dos desabrigados pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, somaram-se 120 mil.
“O rompimento da barragem rompeu várias coisas. Primeiro, rompeu a confiança na Samarco. Todo mundo tinha uma relação muito forte de confiança na mineradora, e isso foi rompido”, comentou Zanon. “Não bastasse, as pessoas perderam a confiança em soluções de engenharia. A barragem era uma solução de engenharia. Tivemos de fazer um trabalho cotidiano de resgate de confiança.”
Integrante da Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão (CABF), o comerciante Mauro Marcos da Silva acha até graça do discurso da Fundação Renova. “Pirotecnia midiática”, diz, sobre a anunciada inauguração do novo Bento Rodrigues. “Na minha visão, só se poderá afirmar que o reassentamento foi encerrado quando o último morador receber a chave. Isso não vai acontecer tão cedo. Temos muitas casas com pendências.” Entre as pendências, ele cita desde pequenos reparos até problemas de projeto. No velho Bento Rodrigues, de acordo com Silva, as pessoas complementavam a renda fazendo hortas e criando animais. O escambo movia a economia local. E agora? Os quintais gramados das novas residências – que, devido à topografia declivada dos terrenos, serão acessados por escadarias – não se mostram propícios à criação de vacas, porcos e galinhas. “Éramos um povoado rural e viramos um povoado urbano”, lamenta o comerciante. “Por um ano, teremos o IPTU e as contas de água e luz pagos pela Renova. Como vamos manter as casas depois? São imóveis enormes e pouco funcionais.”
Outra integrante da CABF, a advogada Mônica dos Santos, que concluiu o curso de direito enquanto se engajava na luta jurídica motivada pelo desastre, também pergunta: “Como a gente vai plantar? Como vai criar um animal ali? Aquilo parece um Alphaville. Não tem nada a ver com nossos modos de vida. O terreno do novo Bento foi escolhido pela comunidade. Só que, quando a gente escolheu, pensou em casas muito diferentes das que estão construindo. Eu não gosto nem de passar lá. Mas é o que temos…”
Numa das esquinas do vilarejo, uma mercearia já está funcionando. Sentado atrás do caixa, Weberson Arlindo dos Santos aproveita o vaivém de operários. Para o negociante, o momento é de “pura alegria”: “Saímos do velho Bento com a roupa do corpo. Não sobrou nem um álbum de fotografia, nem um documento. Aqui voltaremos à nossa relação de vizinhança.” O pai dele, José Barbosa dos Santos, de 80 anos, tocava um comércio no subdistrito havia mais de três décadas. No reassentamento, sua família ficou com sete imóveis, sendo seis residências e um terreno de 4,8 mil m2, que será alugado para eventos. “O que eu mais gosto é de ver o pessoal chegando”, diz Weberson. “Outra coisa boa é que todas as moradias têm o mesmo padrão de construção.” Vivendo em frente ao mercado, a dona de casa Ivonete Dias suspira: “A gente nunca acreditou que seria assim, que receberíamos um imóvel bonito. Não precisamos chorar mais.”
“Em processos participativos, por definição, quem participa tem responsabilidade. Mas, no processo do novo Bento, a responsabilidade acabou caindo apenas em cima da Renova. Para certas pessoas, tudo é culpa da Renova”, desabafou Zanon durante a visita guiada, quando indagado sobre as reclamações de futuros moradores. Enquanto falava, ele mostrava a escola recém-construída. O prédio com três pavimentos, ventilação cruzada e belas soluções arquitetônicas dispõe de biblioteca, refeitório, laboratório de informática e quadra de esportes profissional. Um dos projetistas da reconstrução do Palácio das Artes, em Belo Horizonte, após o incêndio de 26 anos atrás, Zanon entrou na Fundação Renova em 2017. À época, o terreno para o reassentamento já havia sido escolhido pela comunidade. “A primeira versão do projeto urbanístico era bem modernista. O escritório contratado imaginou uma cidade inteligente, com todas as características de sustentabilidade”, contou o arquiteto. “Acontece que, obviamente, a comunidade possuía uma hierarquia interna. Por exemplo, quem morava perto da igreja queria continuar perto da igreja. Isso representava um status. Diversos moradores também não aceitavam o novo tamanho dos imóveis. No velho Bento, havia famílias com terrenos grandes, outras com terrenos de 80 m2 ou menos. Agora os menores lotes têm 250 m2. Muita gente não gostou.”
O primeiro passo para a concepção do projeto urbanístico foi redesenhar o mapa do velho Bento, a partir da lembrança de moradores, apoiados por imagens de satélite. Como o novo terreno difere bastante do original – o velho Bento era praticamente plano – seria preciso uma gigantesca terraplanagem para deixar a topografia semelhante à anterior, o que moveria três milhões de metros cúbicos de terra. A Secretaria de Estado de Meio Ambiente embargou a obra. “Isso causou um impacto muito grande no prazo de entrega. Por quê? Em vez de fazer a terraplanagem do povoado como um todo, tivemos de fazê-la lote a lote. Resultado: pelo menos um ano de atraso”, explicou Zanon. Em paralelo, a Renova promovia oficinas semanais com a CABF. “Surgiam questões inimagináveis. O pessoal falava: nossa procissão sai da Igreja de São Bento e vai até a Igreja das Mercês. Não pode a Igreja das Mercês ficar embaixo e a Igreja de São Bento em cima.”
No fim de janeiro de 2018, o projeto urbanístico foi aprovado em assembleia pela comunidade. “O processo de construção das casas seguiu outro caminho. Enquanto discutíamos o espaço coletivo, os moradores expressavam o desejo de reproduzir o que tinha no povoado antigo. Quando chegamos ao individual, cada família sentou com um arquiteto e expôs o que queria. Se no projeto urbanístico as pessoas olhavam para trás, no projeto das casas olhavam para o futuro”, disse Zanon.
Na opinião de Júlia Costa e Geruza Silva, respectivamente supervisora e coordenadora operacional da Cáritas Internacional, entidade escolhida pelos moradores para lhes prestar assessoria técnica, o processo participativo a que Zanon se refere deixou muito a desejar. “O que aconteceu é que várias famílias não entenderam o projeto. Só quando a casa saiu do chão é que perceberam todas as declividades do terreno. Faltou explicação”, afirma Costa. Sem a terraplanagem prevista originalmente, os desníveis entre as casas e os quintais passaram a exigir longas escadarias. Para Silva, o novo Bento Rodrigues não atende o que foi pactuado com o Ministério Público na cartilha de diretrizes. “É normal que diversas famílias, vencidas pelo cansaço, tenham aceitado as coisas”, diz a coordenadora operacional. “Você passa lá e vê casas bonitas, com padrão construtivo alto. São bonitas, mas pouco práticas. Os moradores não conseguirão bancar aquilo. Sem contar o preconceito que isso gera. Para a comunidade de Mariana, os atingidos enriqueceram, vão receber mansões.”
Engenheira de formação, Costa enxerga problemas de estrutura nas moradias. Inúmeras apresentaram trincas e infiltrações antes mesmo da entrega das chaves. “As famílias estão tendo uma porção de surpresas. Há casas em que a escadaria de acesso ao quintal é de três níveis, com mais de vinte degraus.” Numa das residências, o morador encontrou um quarto de apenas seis m2. “A beleza exterior não reflete o interior. Parece um projeto apressado”, prossegue Costa. O fogão à lenha pré-moldado também virou uma pendência. Acostumados a fogões robustos, feitos de alvenaria, muitos querem a troca. “A Renova vai negando, negando, negando, até a família judicializar a questão”, diz a engenheira.
A visita guiada de Zanon terminou no posto de saúde, logo na entrada do novo Bento, onde também ficarão outros serviços, como a base policial e os correios. As duas igrejas ainda estão em construção. Naqueles arredores da antiga Ouro Preto, nem a zona central de Mariana possui uma estação de tratamento de esgotos. Mas o novo Bento terá, com um moderno sistema anaeróbio projetado para se tornar um modelo na região.
Ao cair da tarde, o pôr do sol não poderia ser mais mineiro. As montanhas a perder de vista se tingem de laranja. Na época do desastre, José do Nascimento de Jesus, o Seu Zezinho, ficou famoso por ter identificado o ruído da lama que avançava em direção ao povoado. Ele foi um dos que saíram correndo, avisando os vizinhos, já que não havia nenhum alarme instalado pela Samarco. “A lama veio lambendo tudo”, relembra. Agora, aos 78 anos, acha-se entre os insatisfeitos com a casa inacabada. “Onde vou plantar as hortaliças que vendia e até dava para os outros? Onde vou colocar as minhas vacas, tirar meu leite, fazer meus queijos?”, pergunta, sem encontrar respostas.
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