minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos
questões cinematográficas

Vinho e vinagre – a propósito de “Cópia fiel”

Lançado por aqui no final do verão, “Cópia fiel” comprova que, como acontece com vinho rosé, certos cineastas “viajam mal”. É o caso de Abbas Kiarostami, indo do Irã para a Itália, onde se perdeu na Toscana. Outro que avinagrou foi Andrei Tarkovsky, quando filmou “Nostalgia” (1983) na região de Arezzo, também na Toscana, a partir de roteiro escrito com Tonino Guerra, co-autor dos roteiros de alguns filmes de Michelangelo Antonioni a partir de “A aventura” (1959).

| 01 abr 2011_10h47
A+ A- A

Lançado por aqui no final do verão, “Cópia fiel” comprova que, como acontece com vinho rosé, certos cineastas “viajam mal”. É o caso de Abbas Kiarostami, indo do Irã para a Itália, onde se perdeu na Toscana.

Outro que avinagrou foi Andrei Tarkovsky, quando filmou “Nostalgia” (1983) na região de Arezzo, também na Toscana, a partir de roteiro escrito com Tonino Guerra, co-autor dos roteiros de alguns filmes de Michelangelo Antonioni a partir de “A aventura” (1959).

*

Ext – Jardim da mansão – Madrugada

Ele: Deixemos essa discussão, tentemos nos apoiar em algo sólido, eu te amo… Taí. Tenho certeza que eu ainda te amo. O que mais você quer que eu diga? Voltemos para casa.

Ela senta e abre a bolsa. Tira uma carta e começa a ler.

Ela: Hoje de manhã, você ainda estava dormindo quando acordei. Despertei docemente. Senti sua respiração suave e através dos cabelos que escondiam seu rosto, vi seus olhos…e a emoção me cerrou a garganta. Tive vontade de gritar, de acordar você, por que seu cansaço era profundo demais, mortal mesmo. Na penumbra, a pele dos seus braços e dos seus seios era tão viva…eu a sentia morna e seca, eu queria posar meus lábios nela, mas a ideia de perturbar seu sono, de ter você de novo nos meus braços me reteve, eu preferi ter você assim, como uma coisa que ninguém poderia tirar de mim…por que era o único a conhecê-la…uma imagem de você para sempre…

Durante a leitura, a emoção contrai o rosto dela. Ela continua a leitura.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí

Ela: Através do seu rosto, eu via alguma coisa de mais puro e de mais profundo onde eu me refletia. Era você que eu via, numa dimensão que incluia o tempo que me restava viver… todos estes anos estavam lá, mas também os que vivi sem conhecer você, para conhecer você. Era o pequeno milagre desse despertar, sentir pela primeira vez que você me pertencia e não apenas no instante, que a noite não tinha acabado, que ela se prolongava para sempre ao seu lado, no calor do seu sangue, dos seus pensamentos, da sua vontade que se confundia com a minha. Nesse momento, eu entendi quanto eu amava você, e a sensação era tão intensa que meus olhos se encheram de lágrimas. Por que eu achava que isso não devia nunca terminar, que toda nossa vida deveria ser para mim como esse despertar dessa manhã, sentir você não apenas ao meu lado mas fazendo parte de mim, de uma maneira que nada ou ninguém poderia destruir por causa do torpor do hábito que sinto pairar sobre nós como uma ameaça…E depois você acordou, docemente, e sorrindo ainda meio adormecida me abraçou e eu senti que não tinha nada a temer, que nós seríamos para sempre como nesse instante, unidos por alguma coisa mais forte que o tempo, mais forte que o hábito.

Transtornada, ela olha para ele com um ar de desafio.

Ele: De quem é essa carta?

Depois de um momento de silêncio, ela diz:

Ela: Sua.

Ele não diz nada e olha para ela, como se tivesse sido destruído pela verdade que ela desnudou impiedosamente: para eles, o amor tinha terminado.

Um conjunto de jazz toca uma melodia lenta, adequada ao triste nascer do dia.

*

Quem viu “Cópia fiel” e lembrar de “A noite”, dirigido por Antonioni em 1961, com roteiro dele e de Tonino Guerra, não terá deixado de reconhecer nessa sequência o tema retomado por Kiarostami em sua incursão italiana.

Não se trata de buscar influências, mas apenas de conhecer possíveis “catalisadores do imaginário”, como indicou Jean-Claude Bernardet.

*

Várias críticas publicadas no Brasil sobre “Cópia fiel” não deixaram de citar “Viagem à Itália” (1954), de Rossellini, e a sequência no carro como traços recorrentes nos filmes de Kiarostami. O que perderam a oportunidade de fazer foi a gentileza de mencionar “Caminhos de Kiarostami”, de Jean-Claude Bernardet, publicado em 2004, no qual ele analisa o lugar do filme de Rossellini e do “elogio do carro” na obra de Kiarostami.

“Seria ingênuo”, escreve Jean-Claude, “considerar que ‘Viagem à Itália’ tenha moldado – ou coisa parecida – a obra de Kiarostami. Mas é possível que ele tenha encontrado nas imagens e estrutura desse filme – o trânsito, o carro na estrada, o interior do carro, personagens conversando dentro do carro – como que uma formalização de um imaginário sobre o qual ele vinha trabalhando. Digamos que o filme de Rossellini teria agido como um catalisador sobre o imaginário de Kiarostami.”

*

Além da sequência final de “A noite”, anotações para um filme a que Antonioni deu o título de “História de um caso de amor que nunca existiu”, reforçam o elo entre seus filmes e “Cópia fiel”. A história se passa na cidade natal de Antonioni, no norte da Itália. Para ele “só um habitante de Ferrara pode entender uma relação que durou onze anos sem nunca ter existido”.

*

Na conferência de imprensa, depois da projeção de “A aventura” no Festival de Cannes de 1959, Antonioni citou Lucrécio, “certamente um dos maiores poetas que já viveu”:

“Nada aparece como deveria em um mundo no qual não se pode ter certeza de nada.”

Segundo Antonioni, “o que Lucrécio disse do seu tempo ainda é uma realidade perturbadora, pois parece que essa incerteza é própria do nosso tempo.”