Ilustração: Laerte
Violência que rouba a saúde
Pesquisa com 1.500 moradores em seis comunidades cariocas constata risco maior de doenças como hipertensão, depressão e insônia entre pessoas mais expostas a operações policiais
Era 17 de dezembro de 2019, uma terça-feira no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio. Marvin Natan Pereira Viana da Silva, de 26 anos, estava voltando pra casa de skate, depois da aula de jiu-jítsu, quando morreu baleado durante um confronto armado na favela. Deixou dois filhos. Para a mãe do rapaz, Vânia Silva, ficou uma depressão infinita. “É uma ferida que não fecha”, diz Vânia, que apesar de sofrer com a depressão não segue um tratamento. “Até porque não existe aqui na Maré.”
Como Vânia, outros moradores de comunidades cariocas sofrem o impacto da violência cotidiana na saúde, segundo uma pesquisa inédita realizada em seis comunidades do Rio. O trabalho Saúde na Linha de Tiro: impacto da guerra às drogas sobre a saúde no Rio de Janeiro, desenvolvido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), mostra que doenças como depressão, ansiedade, hipertensão arterial e insônia prolongada são mais frequentes em locais onde há operações policiais. Sintomas como insônia, sudorese, coração acelerado, falta de ar e tremores, além de picos de pressão, foram queixas rotineiras.
O estudo também constata que, em meio à rotina de violência, doenças pioram, e o atendimento é frequentemente interrompido nas unidades de saúde, que também sofrem com a falta de profissionais. A pesquisa é a terceira etapa do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir, desenvolvido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).
O trabalho de campo aconteceu em 2022 por meio de 250 questionários aplicados em seis comunidades do Rio, totalizando 1.500 moradores maiores de 18 anos. Das comunidades selecionadas por semelhança do ponto de vista socioeconômico, três foram frequentemente afetadas por tiroteios com a presença de agentes de segurança em 2019 – Nova Holanda (Complexo da Maré), CHP2 (Complexo de Manguinhos), Vidigal (Zona Sul) – e três foram menos expostas a esse tipo de violência, constituindo um grupo controle – Parque Proletário dos Bancários (Ilha do Governador), Parque Conquista (Caju), na Zona Norte, e Jardim Moriçaba (Senador Vasconcelos), na Zona Oeste. Os dados de tiroteios em 2019 são do Instituto Fogo Cruzado e consideram ocorrências registradas a um raio de até 400 metros das unidades de saúde desses lugares.
Nas comunidades mais impactadas pela violência, entre 2017 e 2022 houve 120 episódios de tiroteios com a presença de agentes de segurança, contra apenas três episódios nas comunidades do grupo controle. E é justamente comparando os dois grupos de comunidades que a pesquisa mede o impacto da violência na oferta de saúde pública para constatar, por exemplo, que os moradores das comunidades mais expostas à violência têm risco 42% maior de desenvolver hipertensão – doença causada também por hábitos alimentares e estilo de vida, mas agravada pelo estresse. Para depressão, esse risco sobe para 62%, sendo maior em mulheres e pessoas de 45 anos ou mais, na comparação entre as comunidades mais afetadas pela a violência e o grupo controle. Para insônia prolongada, o risco aumenta para 73%, segundo a pesquisa.
“Os moradores que vivenciam essa realidade têm sudorese, tremores, falta de ar. Quarenta e três por cento relatam sentir o coração acelerado. Tudo isso durante um episódio de tiroteio, mas é uma rotina, acontece várias vezes por escolha política do Estado, que não traz uma solução clara e ainda prejudica a saúde das pessoas”, diz a socióloga Rachel Machado, coordenadora do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir.
A associação da violência com outras doenças, como colesterol alto, infarto ou ataque do coração e tuberculose não teve relação significativa com episódios de conflitos armados, sendo a idade um fator mais relevante para entender o aumento do risco para essas condições de saúde. Outra pesquisa, esta divulgada em 2021, mostrou o impacto da violência na saúde mental dos moradores da Maré.
“Todas essas consequências são muito graves porque a saúde é um direito que deveria ser garantido pelo Estado. E o Estado vem e interrompe esse direito”, analisa Machado, referindo-se a outro dado da pesquisa: o fechamento das unidades de saúde como resultado da violência. A maioria (59,5%) dos moradores das comunidades mais afetadas pela violência relata esse problema, que incomoda apenas 12,9% dos moradores das comunidades do grupo controle, onde as operações são menos frequentes.
O que mais chamou a atenção, segundo as sociólogas, foi o impacto ao acesso. “Seis em cada dez moradores relataram que as unidades já fecharam em função da violência, um terço relataram falta de médico ou não terem conseguido chegar ao posto. A guerra às drogas tem efeito direto na oferta dos serviços de saúde”, afirma a socióloga Mariana Siracusa, doutoranda e mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Uerj (PPCIS/Uerj) e coordenadora da pesquisa. “Quando o posto de saúde fecha, a consulta que está agendada há três meses não acontece. Uma hipertensão mal curada hoje gera uma internação no futuro, e isso traz custos para o Estado.”
Pelos dados da pesquisa, o custo anual do tratamento de um paciente com hipertensão arterial e depressão pode variar de 69 mil a 96 mil reais, em valores de 2022. O fechamento de unidades de saúde nas comunidades mais impactadas pela violência custa mais de 300 mil reais aos cofres públicos. Em 2022 foram contabilizados 445 fechamentos de unidades de saúde em função da violência, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. Os moradores dessas comunidades perdem por ano 1,4 milhão de reais por não conseguirem realizar atividades do dia a dia devido a problemas de saúde.
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