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    A deputada Lohanna França (PV), durante sessão na Assembleia Legislativa de Minas Gerais Foto: Henrique Chendes

anais da violência política

“Vou matar você e sua equipe a sangue frio”

Ameaçadas de estupro e morte, deputadas mineiras andam com escolta 24h por dia

Felippe Aníbal | 12 set 2023_08h48
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Quando chegou a seu gabinete na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, por volta das nove da manhã de 24 de agosto, uma quinta-feira, a deputada estadual Lohanna França (PV) percebeu uma tensão no ar. A equipe parecia preocupada. Um dos funcionários lhe informou que havia chegado, fazia pouco, um e-mail com ameaças. “A senhora não precisa ler. É pesado”, avisou logo. A parlamentar quis mesmo assim. Minutos depois, assustada, suspendeu a agenda parlamentar daquele dia e acionou a Polícia Legislativa de Minas.

Não era a primeira ameaça que Lohanna recebia. Mas era a mais grave. O remetente afirmava ter o endereço dela e de seus parentes. Dizia que iria invadir a casa da deputada, em Belo Horizonte, imobilizá-la, torturá-la, estuprá-la e, por fim, matá-la. Ameaçava “metralhar” toda sua “equipe de putas e viados”. E afirmava, por fim, destilando misoginia: “Eu juro que vou vingar todo homem que já teve o desprazer de ser governado por uma vagabunda ordinária feito você, eu vou te matar e matar toda sua equipe de funcionários a sangue frio.”

A Assembleia pediu ao governo de Minas Gerais que oferecesse escolta a Lohanna. A deputada em seguida procurou a Polícia Civil, a Polícia Militar e o Ministério Público Estadual. Registrou boletim de ocorrência e cercou-se de todas as precauções possíveis. Nas redes sociais, publicou um vídeo em que lê o conteúdo do e-mail e diz que não vai se intimidar com ameaças. Apesar do discurso firme, a deputada passou a temer por sua vida.

“Eu fiquei em ondas. Ora achando que não aconteceria nada, ora chorando e entrando em pânico”, relatou Lohanna à piauí. “Minha agenda ficou confusa. Fiquei dois dias sem trabalhar, só fazendo reuniões com as forças de segurança, para tratar disso.” A deputada descobriu mais tarde que seus dados pessoais e financeiros haviam sido compartilhados em um fórum de internet onde proliferam postagens sobre pedofilia, necrofilia e zoofilia.

 

O ataque à deputada do PV foi um entre vários que marcaram o mês de agosto na política mineira. Num intervalo de poucas semanas, quatro deputadas estaduais (uma delas ainda não tornou o caso público), uma deputada federal e duas vereadoras de Belo Horizonte receberam pelo e-mail funcional ameaças de morte e/ou de estupro em tom semelhante. Todas têm em comum o fato de serem de partidos de esquerda ou centro-esquerda e defenderem pautas ligadas aos movimentos negro, feminista e LGBTQIA+.

A virulência dos ataques e o fato de terem acontecido simultaneamente sugerem uma ação coordenada. A primeira ameaça chegou para a deputada estadual Bella Gonçalves (Psol). Em 8 de agosto, ela recebeu um e-mail em que o autor a ameaçava de morte caso não renunciasse ao cargo. Usando expressões como “Deus, pátria e família”, o autor justificava o ataque pelo fato de a parlamentar ser lésbica. Seis dias depois, em 14 de agosto, Gonçalves recebeu um novo e-mail, em que o autor ameaçava cometer um “estupro corretivo”. As ameaças vinham acompanhadas de exaltações ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou centros de tortura durante a ditatura militar. Ela também registrou boletim de ocorrência. Três dias depois, em 17 de agosto, tornou públicas ambas as ameaças.

Bella pediu à Assembleia que lhe fosse garantida escolta policial. A solicitação foi atendida cinco dias depois, quando outras parlamentares já tinham relatado ameaças parecidas. Eram elas Lohanna França, Beatriz Cerqueira (PT) e outra deputada que pediu às autoridades para que seu nome fosse mantido em sigilo. Na mesma época, duas vereadoras de Belo Horizonte, Iza Lourença e Cida Falabella, ambas do Psol, receberam e-mails com ameaça de “estupro corretivo”. Em seguida, também tiveram informações pessoais vazadas em fóruns na internet. 

As quatro deputadas estaduais e as duas vereadoras estão, desde então, sob proteção armada 24 horas por dia. As deputadas são escoltadas pela Polícia Militar; as vereadoras, pela Guarda Municipal. A proteção policial alterou a rotina de todas. As parlamentares precisam informar a agenda com um dia de antecedência para que os policiais possam traçar as estratégias de segurança. Também se viram forçadas a adotar restrições na vida pessoal. Salvo em situações excepcionais, só saem de casa para o trabalho, e do trabalho para casa. “Eu adoro tomar cerveja na rua, ir pro samba, em cachoeiras no fim de semana. Tudo isso fica em suspenso”, lamentou Gonçalves. 

O e-mail recebido por Lohanna França com ameaça de morte mencionava um projeto de lei proposto por ela: a Semana Estadual da Maternidade Atípica. O termo “maternidade atípica” se refere a mães de crianças com necessidades especiais. O autor da ameaça talvez tenha entendido outra coisa. “Saiba que você tem em mãos sangue de crianças inocentes porque promove a degeneração e a irresponsabilidade feminina na sociedade”, disse, no e-mail.

 

Há dois anos, o Congresso Nacional aprovou, e Jair Bolsonaro sancionou, uma lei de combate à violência política contra mulheres. Com isso, incluiu-se no Código Eleitoral o crime de assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, aquelas que ocupam cargos políticos ou são candidatas. A lei facilitou que se tenha um registro dessas ameaças. Até novembro do ano passado, o Ministério Público Federal havia aberto 112 procedimentos para apurar violência política contra mulheres no Brasil. A contagem passou a ser feita depois da promulgação da lei. Foi, portanto, uma média de sete casos por mês.

As deputadas não têm pistas claras sobre os autores dos ataques, mas dizem que existe um contexto fértil para esse tipo de ação, em meio aos acenos, cada vez mais contundentes, do governador Romeu Zema (Novo) ao bolsonarismo. Em 28 de agosto, ao lado do deputado Coronel Sandro (PL), Zema entregou a Bolsonaro o título de cidadão honorário do estado. “Conte sempre com Minas Gerais”, disse ao ex-mandatário. No meio-tempo, evitou receber ministros do governo Lula, como Flávio Dino, que esteve em Belo Horizonte em 21 de agosto. Além disso, uma declaração de Zema, em que comparou os estados do Nordeste a “vaquinhas que produzem pouco”, atiçou discussões separatistas. 

“Isso passa um recado”, diz Lohanna França. “E a consequência é a mobilização de um grupo de ódio, que se sente legitimado a nos atacar”, concorda Bella Gonçalves. Zema se solidarizou com as deputadas em um tuíte: “Divergências políticas são resolvidas com diálogo, nunca na violência. Minha solidariedade às parlamentares mineiras diante das gravíssimas ameaças”, escreveu o governador, que autorizou a escolta das parlamentares pela Polícia Militar.

As ameaças estão sob investigação da Polícia Civil, mas algumas das deputadas reclamam do que veem como falta de coordenação dos policiais. Afirmam que o fato de as apurações estarem ocorrendo em diferentes delegacias ao mesmo tempo prejudica a investigação (o caso está sendo tratado, ao mesmo tempo, na delegacia de crimes cibernéticos, numa delegacia especializada em crimes contra minorias e numa delegacia de atendimento à mulher). 

“Nós não tivemos retorno nenhum da Polícia Civil. Tudo o que sabemos até agora sobre as ameaças fomos nós mesmas que apuramos, nos fóruns [de internet]”, diz Bella Gonçalves. Sua colega Lohanna afirma que o atendimento da polícia “não tem sido satisfatório”.

Por meio da assessoria de imprensa, a Polícia Civil afirmou que foram abertos inquéritos para investigar as ameaças contra as deputadas, e que os casos correm sob sigilo. As apurações, no entanto, devem ser federalizadas. O ministro Flávio Dino foi procurado por Bella Gonçalves, pela deputada federal Dandara Tonantzin (PT-MG) e pelas vereadoras belorizontinas Cida Falabella (Psol) e Iza Lourença (Psol), que lhe relataram as ameaças de morte. “As parlamentares apresentaram documentação com denúncias de ameaças e intimidação. O material foi repassado à Polícia Federal para abertura de inquérito”, afirmou o Ministério da Justiça e Segurança Pública, em nota enviada à piauí. A Polícia Federal não confirmou se foi aberto inquérito. Disse apenas que “tal situação está em curso (…), mas sem a concessão de mais detalhes para não comprometer os trabalhos investigativos”.

 

Em 30 de agosto, sob o clamor gerado pelas ameaças, o presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, deputado Tadeu Martins Leis (MDB), levou a plenário um projeto de lei que prevê a criação do Programa de Enfrentamento ao Assédio e Violência Política contra a Mulher. Trata-se de uma versão estadual da lei promulgada em agosto de 2021, com complementos. O texto não define sanções, mas estabelece o que é violência política cometida contra mulheres (“qualquer ação ou omissão, individual ou coletiva, com a finalidade de impedir ou restringir o exercício de direito político pelas mulheres”) e elenca exemplos na prática. Ainda segundo a proposta, a lei visa, entre outras coisas, garantir a participação feminina e instituir mecanismos de monitoramento e avaliação das ações de prevenção e de enfrentamento à violência contra mulheres no âmbito político. 

Durante as discussões em plenário, a deputada Beatriz Cerqueira (PT), que vinha mantendo seu caso em sigilo, resolveu dar publicidade a um e-mail que tinha recebido poucas semanas antes, também repleto de ameaças. “O conteúdo é muito violento. Não basta dizer que vou morrer, mas descreve com riqueza de detalhes como vou sofrer, como vou ser estuprada e, enfim, como vou ser morta”, contou à piauí. Para Cerqueira, os episódios estão mais relacionados à ascensão de grupos neonazistas e de extrema direita do que, propriamente, a declarações de Zema. Ela, no entanto, criticou a falta de ação concreta do governo. 

“Eu vejo como uma onda nacional de extrema direita, que extrapola o governador. Mas está havendo uma escalada e uma hora, infelizmente, pode acontecer [a concretização das ameaças]. Se não se faz nada, é um recado importante que se passa”, argumentou Beatriz. “Nisso eu vejo uma inação do Zema. A atuação dele se restringiu a um tuíte. Não fez até agora uma reunião estratégica conosco.” Por meio de nota, a assessoria de Zema afirmou que o governador, além de autorizar a escolta das deputadas, “tem tomado todas as providências necessárias para garantir a segurança das parlamentares ameaçadas e identificar e punir os autores do crime”.

O projeto de lei foi aprovado em primeiro turno por 45 a 5 (votaram contra os deputados Coronel Henrique, Coronel Sandro, Delegada Sheila, Bruno Engler, todos do PL, e Eduardo Azevedo, do PSC). No segundo turno, a proposta foi aprovada por unanimidade. Agora, aguarda sanção do governador.

Na tarde de 30 de agosto, logo após a votação em primeiro turno, Lohanna França partiu para um compromisso em Conselheiro Lafaiete, município a cerca de 100 km de Belo Horizonte. Seu carro foi escoltado pela PM, que seguia logo atrás, com o giroflex ligado. Ela conversou com a piauí enquanto percorria o trajeto. “A PM ali atrás é uma lembrança permanente de que nossa segurança está em risco. Eu ainda estou aqui, dentro do meu carro, com escolta. Mas e a minha equipe? Eles também foram ameaçados”, disse a deputada. “[Os autores das ameaças] são pessoas que não engolem o fato de terem perdido nas urnas… nas urnas que tanto atacaram. Mas não vão me intimidar. Não vou mudar meu trabalho.”

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