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    Grande Otelo no papel de Macunaíma, no filme homônimo, de 1969 Imagem: Reprodução

questões cinematográficas

Werner Herzog reincide

A propósito do título da autobiografia

Eduardo Escorel | 05 jun 2024_09h35
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No filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, pouco depois de Grande Otelo, no papel do personagem-título, ter sido transformado em Paulo José pela água milagrosa que jorra da terra, a freada do caminhão quase derruba o herói sem nenhum caráter, seus irmãos Maanape e Jiguê, a linda Iriqui e demais retirantes que viajavam em pé na traseira coberta de lona do pau de arara. Enquanto todos saltam nos arredores da cidade grande, o motorista ordena em voz off: “Desce! Vamos descer minha gente! Desce rápido! Desce todo mundo e vai a pé pelo mato! Se o governo vê vocês chegando vai todo mundo preso de volta para a roça. Já tem mendigo demais na cidade. Agora é cada um por si e Deus contra!” (grifo meu).

Ao adaptar Macunaíma, de Mário de Andrade, publicado em 1928, para o cinema, além de várias modificações, Joaquim Pedro incluiu novas falas no filme homônimo que estreou no Festival de Veneza em 1969. Um dos adendos feitos à obra literária é a versão citada acima do conhecido provérbio popular “Cada um por si e Deus por todos!” alterado de modo a exacerbar por meio da atuação contrária de Deus o desamparo resultante de ser “cada um por si”.

A versão impiedosa do provérbio criada por Joaquim Pedro foi adotada por Werner Herzog, em 1974, como título original do seu filme Jeder für sich und Gott gegen alle (Cada um por si e Deus contra todos). Ele ouvira a frase quando assistiu a Macunaíma, mas omitiu a procedência do bordão nos créditos. No exterior, porém, Jeder für sich und Gott gegen alle ganhou outro nome – O Enigma de Kaspar Hauser – e a tradução do título original, quando é incluída, nem sempre vem precedida da sigla AKA, iniciais em inglês de also known as (também conhecido como). No Brasil, quando a frase Cada um por si e Deus contra todos chega a ser citada a propósito de O Enigma de Kaspar Hauser, costuma ser atribuída a Mário de Andrade, embora, como é lógico, não conste do seu Macunaíma, no qual tampouco há alguma referência à versão original do provérbio popular.

Segundo Lúcia Nagib escreveu em A Companion to Werner Herzog (editado por Brad Prager e publicado em 2012), Herzog “seria o primeiro a reconhecer” sua relação com o Cinema Novo, “até atribuindo o título original do seu O Enigma de Kaspar Hauser, Cada um por si e Deus contra todos, a uma frase que ele ouviu em Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade”. Ela não especifica, porém, onde e quando Herzog admitiu a origem do nome alemão de O Enigma de Kaspar Hauser. Embora Nagib cite Herzog on Herzog, editado por Paul Cronin e publicado, em 2002, pela Faber and Faber, nesse livro tampouco há menção ao filme Macunaíma ou a seu diretor.

Sendo assim, creio ser razoável considerar que o uso de Cada um por si e Deus contra todos é um caso de apropriação indevida, na qual Herzog reincidiu ao publicar sua autobiografia na Alemanha, em 2022, com o mesmo título: Jeder für sich und Gott gegen alle (Cada um por si e Deus contra todos). “Um ótimo título”, por sinal, comentou David Remnick, editor da revista The New Yorker, quando entrevistou Herzog em 2023. Tão bom, de fato, que foi mantido nas edições americana e brasileira de suas memórias. Uma, Every Man For Himself And God Against All: a memoir, em 2022; a outra, lançada agora pela Todavia em tradução de Sonali Bertuol, Cada um por si e Deus contra todos: Memórias. Em ambas, mais uma vez sem referência à origem do nome.

 

O vínculo do título da autobiografia de Herzog com o filme Macunaíma e a dívida decorrente com Joaquim Pedro são insinuadas nas primeiras linhas do Prefácio das memórias (p. 9, ed. Todavia): “Originalmente, o meu Aguirre, a Cólera dos Deuses [1972] deveria terminar da seguinte maneira: a jangada dos conquistadores espanhóis leva somente mortos a bordo, e quando chega à foz do Amazonas, apenas um papagaio falante ainda está vivo. Tão logo a cheia do Atlântico lança a jangada de volta ao imponente rio, o papagaio grita sem parar: ‘Eldorado, Eldorado’…”

A procedência desse final provisório é clara – abandonado doente na tapera em ruínas, Macunaíma (Paulo José) relata seus feitos ao papagaio, antes de ser devorado pela Uiara na última sequência do filme. No Epílogo da rapsódia, Mário de Andrade relata quem é o depositário da memória do personagem: “… E só o papagaio no silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói” (p. 168, Coleção Arquivos, 1988).

Macunaíma, interpretado por Paulo José — Imagem: Reprodução

 

Na fotografia da capa de Cada Um Por Si e Deus Contra Todos – Memórias, Herzog está em primeiro plano, olhando para a lente da câmera, com um papagaio no pescoço. Há algo de macunaímico na postura dele. Ao fundo, se vê a famosa cena de Fitzcarraldo (1982) em que o navio a vapor de 320 toneladas é puxado colina acima, uma proeza e tanto.

 

Quem acompanha desde a década de 1970 a carreira de Herzog, na qual dirigiu cerca de setenta filmes a partir de 1962 e encenou mais de vinte óperas de 1986 em diante; tantos cinéfilos, críticos e espectadores em geral que reconhecem o grande mérito de alguns de seus filmes; e os que antes das memórias já haviam lido a longa entrevista autobiográfica Herzog on Herzog, citada acima – quem, em suma, está informado sobre o cineasta e o conjunto da sua obra, não pode se espantar com o fato de Herzog ter surrupiado a versão do provérbio feita por Joaquim Pedro. 

As façanhas do diretor de O Homem Urso (2005) vão muito além disso. Incluem, entre outros procedimentos questionáveis, em se tratando de documentários, pedir para uma personagem dizer frases e sonhos inventados como se fossem dela. No caso, Fini Straubinger, deficiente auditiva e visual, acamada durante trinta anos (O País do Silêncio e da Escuridão, 1971); atribuir a autoria de uma epígrafe a quem não a escreveu (Lições da Escuridão, 1992); contratar dois bêbados para fingir serem peregrinos e deitarem na superfície gelada para tentar ver a cidade submersa no fundo do lago (Sinos do Abismo: Fé e Superstição na Rússia, 1993). Segundo Herzog, “um deles estava com o rosto encostado no gelo e parece estar em meditação muito profunda… ele estava é completamente embriagado, adormeceu e tivemos que acordá-lo no final da filmagem do plano”.

“O colapso do universo estelar ocorrerá – como a criação – em esplendor grandioso” é a epígrafe de Lições da Escuridão atribuída a Blaise Pascal (1623-1662). “Bem,” diz Herzog: “pode parecer Pascal, mas na verdade tudo foi inventado. Gosto de fazer coisas assim porque sou um contador de histórias, puro e simples, e não um tradicional cineasta realizador de ‘documentários’… é algo que faço com verdadeiro orgulho e com a confiança de que não estou manipulando o público de forma alguma. O próprio Pascal não poderia ter escrito melhor!” Outra vez, uma conduta que pode ser considerada macunaímica se lembrarmos do capítulo A velha Ceiuci, do livro de Mário de Andrade, e da passagem incluída no filme de Joaquim Pedro.

Os vizinhos perguntam a Macunaíma:

O que foi mesmo que você caçou, herói?

Dois viados-mateiros.

(…) A patroa [da pensão] cruzando os braços ralhou assim:

Mas, meus cuidados, pra que você fala que foram dois viados e em vez foram dois ratos chamuscados!

Macunaíma parou assim os olhos nela e secundou:

Eu menti.

() Maanape e Jiguê se olharam, com inveja da inteligência do mano. Maanape inda falou pra ele:

Mas pra que você mentiu, herói!

Não foi por querer não… quis contar o que tinha sucedido pra gente e quando reparei estava mentindo…

 

Há mais de vinte anos, Herzog disse: “Eu vejo o papel do diretor de cinema como sendo parecido ao do contador de histórias no mercado de Marraquexe… Esse é quem eu sou…, portanto, para mim, a fronteira entre ficção e ‘documentário’ simplesmente não existe; todos são apenas filmes. Ambos tomam ‘fatos’, personagens, histórias e jogam com eles da mesma maneira. Na verdade, considero Fitzcarraldo [como é notório, um filme de ficção] o meu melhor ‘documentário’ (pgs. 238-240 de Herzog on Herzog).”

Nas suas memórias, passados quarenta anos, Herzog retoma suas preocupações de sempre:

A questão da verdade tem me ocupado em todos os meus filmes… Desde o começo, fui confrontado com fatos em meu trabalho. É preciso levá-los a sério porque eles têm força normativa, mas fazer filmes puramente orientado por fatos nunca me interessou… Só a poesia, só a invenção da arte, pode revelar uma camada mais profunda, um tipo de verdade. Para isso, cunhei o termo verdade extática… O escritor André Gide escreveu certa vez: “Eu altero os fatos de tal modo que eles se parecem mais com a verdade do que com a realidade” … O que é a verdade de qualquer forma, nenhum de nós sabe, nem os filósofos, nem o papa em Roma e nem mesmo os matemáticos. Nunca vejo a verdade como uma estrela fixa no horizonte, mas sempre como uma atividade, uma busca, uma tentativa de aproximação” (pp. 296-298, ed. Todavia).

Herzog comenta a citação de Gide em entrevista recente: “Bem, é tão bonita que não tenho muito a acrescentar. É claro que não só longas-metragens são inventados, mas eu faço coisas nos documentários que só são feitas em filmes de ficção. Eu seleciono o elenco, repito, ensaio, estilizo, altero fatos, mas não para enganar o público. Faço isso para elevá-lo, para iluminá-lo” (conversa com o escritor Paul Holdengräber, em novembro de 2023, disponível na íntegra no YouTube).

Ao ouvir Herzog citar a frase atribuída a Gide, Remnick comenta na entrevista da The New Yorker: “Se eu descobrisse que um autor tem a sua noção da verdade, não rejeitaria sua colaboração, teria todo o prazer em publicá-la, mas talvez a pusesse na rubrica de ficção,… Você teria alguma objeção a isso?” Herzog responde: “Absolutamente não… Veja, quando publico minhas memórias, digo apenas entre aspas: ‘É uma narrativa furiosa e um estilo furioso. Não procure evento, evento, evento, como em uma biografia.’”

A citação de Gide será autêntica? Convém verificar. Eu tentei, mas não consegui localizar a frase, nem sua autoria. Permanece a dúvida, portanto, uma vez que para Herzog “a verdade não precisa sempre concordar com os fatos”. Isso apesar de ele assegurar a Remnick que “a beleza disso é ter sido verificado por todos os lados, não há uma única pedra sem ter sido revirada nestas memórias. Quando se trata de coisas factuais, todas estão corretas.” Será?

No final da conversa com Holdengräber, o entrevistador lê as linhas finais do próximo livro de Herzog: “E, no entanto, não queremos, não iremos, não devemos, não podemos desistir da busca pela verdade.” Herzog intervém, esclarece que não foi lida a linha final do último capítulo, que tem apenas cinco linhas e cujo título é O Futuro da Verdade. O próprio Herzog lê, então: “A verdade não tem nenhum futuro, mas a verdade tampouco tem um passado.” O lançamento em inglês desse novo livro – The Future of Truth – está previsto para este ano.

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