Woody Allen e Meia-noite em Paris
A documentarista Paola Prestes, que vem se tornando colaboradora regular deste blog, comenta abaixo Meia-noite em Paris, filme escrito e dirigido por Woody Allen, assunto também das questões cinematográficas da piauí_58, de julho, nas quais é cotejado a Mamute, escrito e dirigido por Benoit Delépine e Gustave de Kervern, filme cuja estreia estava prevista para 29 de julho, e foi adiada para 5 de agosto.
A documentarista Paola Prestes, que vem se tornando colaboradora regular deste blog, comenta abaixo , filme escrito e dirigido por Woody Allen, assunto também das questões cinematográficas da piauí_58, de julho, nas quais é cotejado a Mamute, escrito e dirigido por Benoit Delépine e Gustave de Kervern, filme cuja estreia estava prevista para 29 de julho, e foi adiada para 5 de agosto.
Enquanto isso, continua sendo comentado na imprensa e fazendo sucesso de público. Segundo dados do portal “Filme B”, nas três primeiras semanas de exibição, sendo exibido em 95 salas, foi visto por cerca de 560 mil espectadores, rendeu mais de R$ 6.500 milhões e teve a maior média de público por sala no final de semana dos dias 1, 2 e 3 de julho, acima de “Transformers” e “Os pinguins do papai” nos seus fins de semana de estreia, e “Carros 2”, no seu segundo fim de semana.
A seguir, o texto de Paola Prestes sobre Meia-noite em Paris:
Se os franceses tendem a problematizar as questões da vida e separar a alta cultura da baixa, os americanos não veem nenhum problema em misturar tudo, colocar uma cereja em cima, e servir com um grande sorriso de criança amada pelos pais segundo os mandamentos do Dr. Spock. Nascida e cultivada dentro de um pensar de origem anglo-saxã, essa simplificação, tão estrangeira ao espírito gaulês quanto o cheeseburger é ao estômago dos mesmos, pode resultar num raciocínio angular e simplista, por vezes silogístico. Mas também pode desaguar em coisas bastante interessantes como a arte pop, ou uma das indústrias cinematográficas mais vigorosas do mundo.
Comercialmente falando, Woody Allen não é páreo para Jim Cameron, nem Steven Spielberg. Seus personagens nunca são heróis medalhados, nem morreram em combate, defendendo a segurança da pátria americana. Se Woody Allen um dia criar um soldado, será porque resolveu contar a história de um cara que desertou o exército americano pois queria ser trapezista num circo itinerante. Muito provavelmente, em vez de acabar vestindo o pijama de madeira, ou o honrado body bag, o personagem fugirá no final para se casar com uma linda funâmbula órfã.
Woody Allen, que não tem nada de simplista, faz mais sucesso na França que nos EUA. Virou lugar comum explicar em parte esse fenômeno dizendo que ele é neurótico e seus filmes “cabeça”. O que isto quer dizer é um tanto vago, porém, não se pode confundir a noção de “intelectual” com “hermético” (quantos filmes herméticos não são totalmente desprovidos de real conteúdo intelectual, isto quando ousamos apontar a lacuna?). Se os personagens de Woody Allen são geralmente tipos complicados e seus enredos têm camadas e ramificações, ele possui, no entanto, o talento de ordenar os microcosmos que cria e narrar o que acontece dentro deles com extrema simplicidade. O que, convenhamos, é dificílimo de se fazer.
Talvez por isso, a cada novo filme de Woody Allen que é lançado, fico um pouco perplexa quando alguém diz que esse último filme não é tão bom. Me pergunto, não é tão bom quanto o quê? Quanto os outros filmes dele? Quanto os filmes de outros diretores que estão em cartaz? Se formos cotejar Woody Allen com ele mesmo, claro que encontraremos pontos mais altos que outros em seu percurso, nem todos em seu passado remoto, note-se. Quanto a outros diretores, comparar Woody Allen a eles tornou-se um exercício despropositado, como ele próprio já deixou claro por meio de sua mais absoluta indiferença com relação aos Oscars e demais manifestações da comunidade cinematográfica. E mais cristalino ainda, por meio de uma produção de rara constância na história do cinema.
Sem sucesso comercial, Woody Allen consegue a façanha de realizar praticamente um filme por ano, sempre com um alto padrão de qualidade técnica e artística. O que me faz pensar que, mesmo lançando mão de fundos europeus nas suas últimas produções, Woody Allen foi capaz de chegar aos setenta anos sem ser esmagado pela paquidérmica indústria cinematográfica norte-americana. No Brasil, tradicional e eficientíssimo país esmagador de talento, Woody Allen teria sido engolido e seu caroço cuspido pela janela de vidro fumê de algum diretor de marketing cultural ou burocrata de órgão governamental de cultura, antes de completar trinta anos. Hoje, consagrado e cortejado, Woody Allen até cogita filmar no Brasil, onde, tenho certeza, será tratado bem melhor que 99,9% dos diretores locais. Mas esta é outra questão.
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Um amigo que viveu em Paris por anos e acabou de ler A Moveable Feast pela terceira vez, viu Meia-Noite em Paris e não gostou muito do retrato por demais jocoso e superficial que Allen faz de personagens como Ernest Hemingway, Gertrud Stein, Pablo Picasso, Scott Fitzgerald e Luis Buñuel. Realmente, como eu constataria alguns dias depois, Woody Allen não faz cerimônia nem salamaleques com nenhum desses monstros sagrados. Não estava num dia particularmente feliz quando entrei no cinema, mas logo me peguei rindo alto: Woody Allen não exigia que meu pobre cérebro fizesse piruetas numa tarde de domingo tristonha, coisa pela qual lhe serei eternamente grata. As referências à literatura, à música, ao cinema e às artes plásticas estão lá: quem sabe do que se trata, ótimo. Quem não sabe, vai perder muitas piadas, mas não será condenado no tribunal da ignorância erguido por algum diretor de cinema sabichão.
Isto porque o filme não é um tratado sobre arte ou literatura e sua narrativa corre para além das referências cultas. Woody Allen possui a grande qualidade de não se meter a ensinar nada ao espectador. E, alívio ainda maior, não usa seus filmes como plataforma política ou púlpito para metralhar a plateia com os perdigotos da sua erudição. O que ele sabe, vem compartilhando com naturalidade ao longo dos anos (aprendi com ele, por exemplo, quem era Art Tatum), com quem aceitar o convite para acompanhá-lo na história – ou fábula, no caso de filmes como Alice, Zelig, Rosa Púrpura do Cairo e Meia-Noite em Paris –, que ele tem a contar. E é nisso que ele aposta para entreter o público.
Portanto, não é a falta de uma dimensão de entretenimento em seu conteúdo que mantém o cinema de Woody Allen ao largo das turbas que invadem os shoppings centers à procura de distração de suas já distraídas vidas: é a falta de efeitos especiais e horror gratuito, elementos que assumiram a função de entreter à revelia da história, a qual frequentemente não tem a menor importância. Há certos blockbusters com cento e vinte minutos de duração cujo roteiro, seria capaz de apostar o que resta no meu fundo DI, não tem mais de doze páginas. Espaçamento duplo. Isto se o roteiro não foi inteiramente substituído por um story-board de computador (nem pensar em Kurosawa, por favor) onde se esgueiram diálogos do tipo, “Corra, Tom!”, e “Siga-me, Jim!”.
Enquanto os franceses, elevam as histórias em quadrinho, ou BDs, ao status de literatura, chegando a lançar Proust nesse formato para depois discuti-lo em círculos eruditos, os americanos de certa maneira as rebaixam, não sem carinho, chamando-as de funnies, ou funny papers. Entre uma gag e outra do filme, percebi que é isso que Woody Allen faz: seus filmes, mesmo os mais melancólicos, têm uma alma cinematográfica dos funnies de sua infância, bem diferente dos quadrinhos elitizados de Marcel Proust. O que, repito, não significa que Woody Allen e seus filmes sejam simplistas. O cinema de Woody Allen não é nem simplista, nem hermético. Também não acho que “intelectual” seja um adjetivo adequado. Tampouco é amargo, talvez porque tenha conseguido preencher seu niilismo com uma pilha de histórias sobre o assunto. Neste caso, alguns tirarão da manga “repetitivo”, mas rebato com o poema e Boris Vian, aquele meio escatológico sobre tudo já ter sido dito cem vezes.
Talvez Woody Allen, seja neurótico, egocêntrico. Não sei, não vivo com ele nem sou sua psicanalista. Sei que seus filmes são a coisa mais próxima que conheço de entretenimento que não é estúpido ou barulhento. Há uma certa inocência um pouco anacrônica nas histórias que Allen conta por meio de personagens meio teatrais, meio parentes distantes (ou nem tanto) do espectador. Dou risada, me divirto, me emociono, às vezes até aprendo alguma coisa. Quando chego em casa depois de assistir a um filme de Woody Allen, mesmo se tive um dia de cão, ainda me sobra um sorriso nos lábios. [Paola Prestes]
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