Os ratos chegaram a Fernando de Noronha com os colonizadores portugueses e, capazes de nadar, se espalharam pelo arquipélago, predando aves marinhas e outras espécies nativas. Agora, cientistas estão tentando erradicar os milhares de roedores que infestam uma de suas ilhas FOTO: JAMES RUSSELL_2017
Estranhos no paraíso
A luta para eliminar os invasores que ameaçam a biodiversidade de Fernando de Noronha
Bernardo Esteves | Edição 136, Janeiro 2018
Às cinco e quarenta da manhã de uma terça-feira em outubro, um grupo de pesquisadores e ambientalistas se encontrou no porto de Fernando de Noronha. O sol despontava no horizonte quando eles embarcaram num grande bote verde para uma viagem de vinte minutos até a ilha do Meio, uma das 21 que compõem o arquipélago situado a 345 quilômetros do litoral do Rio Grande do Norte.
A ilha do Meio tem dezesseis hectares, o equivalente a dezesseis campos de futebol, e está entre as menores de Noronha. Embora próxima da ilha principal, ela é de difícil acesso, devido às escarpas das suas bordas rochosas. Como a maré estava baixa, o barqueiro não teve dificuldade em achar um ponto em que os tripulantes pudessem desembarcar com segurança. Todos calçavam luvas para escalar as rochas pontiagudas que davam à ilha um aspecto algo lunar. Logo chegaram a uma grande planície com vegetação rasteira, onde se puseram a caminhar.
Alguns metros adiante, depararam com um filhote solitário de ave de penugem rala e aparência frágil, que permanecia quieto, sem se mover, sobre a vegetação. Era um pequeno atobá-marrom, ave de peito branco e bico comprido. Uma centena de metros à frente, numa ponta da ilha, havia outros: uma aglomeração de dezenas de atobás adultos. A ave marinha é conhecida pelos mergulhos certeiros para pescar os peixes de que se alimenta. Faz suas refeições a quilômetros dali, mas se reproduz na ilha do Meio – constrói seus ninhos no chão. O filhote não pareceu se assustar com a presença dos pesquisadores. “Esse aí estava no ovo em agosto, quando viemos pela última vez”, disse o biólogo e veterinário Carlos Eduardo Verona ao passar pela ave.
A primeira tarefa da manhã consistiu em monitorar as vinte armadilhas montadas pela equipe na véspera, em que pequenas rodelas de abacaxi funcionavam como iscas para atrair os ratos que infestam a ilha do Meio. A primeira gaiola inspecionada permanecia intocada, mas logo na armadilha seguinte um roedor tinha sido aprisionado. O animal guinchou quando Verona o prensou no fundo da gaiola e o segurou pelo rabo para observar sua orelha. Ele já tinha sido capturado antes pelos cientistas e portava o brinco de número 90. Quando foi solto pelo pesquisador, saiu correndo e desapareceu na vegetação seca.
Os cientistas não estavam interessados em capturar aquele rato específico, nem em matá-lo: queriam só registrar a sua presença e alimentar com os dados um modelo matemático usado para calcular quantos roedores havia ali. Os ratos são forasteiros na ilha do Meio e em todo o arquipélago. Provavelmente chegaram a Fernando de Noronha a bordo dos navios portugueses e de outras bandeiras que passaram a cruzar o Atlântico nas Grandes Navegações. Uma vez na ilha principal, se espalharam pelo arquipélago. Os pesquisadores não conseguem dizer quando, exatamente, os roedores alcançaram a ilha do Meio. O que se sabe, com segurança, é que vieram nadando. “Talvez a partir da ilha Rata, logo ao lado, que já foi habitada por humanos, ou mesmo da principal”, disse Verona.
Em seu novo lar, os roedores encontraram comida farta e de fácil acesso, com os ovos de atobás ao alcance do bigode. “O cara mora dentro do restaurante”, observou Verona enquanto inspecionava outra armadilha. “Sai do buraco e já encontra um ninho, é gemada todo dia de manhã.” Como naquele ambiente os ratos não têm quem os ameace, o primeiro casal que se instalou ali teve descendência prodigiosa. O biólogo e seus colegas estimam que, antes do início da erradicação, havia de 10 mil a 12 mil roedores na ilha do Meio, o equivalente a 750 indivíduos para cada área igual à de um campo de futebol.
Verona é integrante de um centro de pesquisas chamado Tríade – Instituto Brasileiro para Medicina da Conservação, que promove estudos para entender como questões de saúde humana, animal ou vegetal afetam a diversidade biológica. Desde 2007, o instituto realiza pesquisas para estudar e – na fase atual do projeto – intervir sobre as espécies invasoras em Fernando de Noronha, com participação de cientistas de várias universidades.
Em expedições anteriores à ilha do Meio, os pesquisadores notaram que os roedores circulavam por ali sem a menor cerimônia. “Não é normal você encontrar ratos pulando por aí”, notou a bióloga Tatiane Micheletti. Carlos Verona ia começar a discorrer sobre a população de roedores da ilha quando um deles passou ligeiro a 1 metro de sua colega. “Não está nem aí”, observou Micheletti, com cara de perplexidade. “Como ele não tem predador, não precisa ficar esperto”, continuou. “Quer dizer, não precisava.”
Os pesquisadores da Tríade não estão apenas estudando a dinâmica da população de ratos da ilha do Meio. Eles pretendem exterminar um a um os roedores daquele ambiente, e impedir que eles continuem a representar uma ameaça para a reprodução de aves – e para a manutenção da biodiversidade – na ilhota.
Naquela manhã, após a checagem das armadilhas, Verona se embrenhou por um pedaço da ilha para espalhar dezenas de pequenos dispositivos pretos, cada um deles contendo 300 gramas de um alimento com a aparência de ração para coelhos. A iguaria estava misturada com veneno de rato – no caso, o brodifacoum, composto anticoagulante que leva os animais a morrer de hemorragia interna alguns dias após o consumo, e que já se mostrou eficiente na erradicação de ratos em ilhas.
Aquela era a segunda campanha de aplicação de veneno na ilha do Meio – a primeira havia sido feita em julho e agosto. Em outubro, o grupo deixou na ilha um total de 80 quilos de veneno, espalhados por 349 “estações de alimentação” em diferentes locais. “Faremos duas, talvez três aplicações por ponto, com um intervalo de cinco dias”, disse Paulo Rogerio Mangini, médico-veterinário da Tríade que coordena o projeto.
Na ilha do Meio, as principais vítimas dos ratos são os atobás-marrons, que constroem ninhos no chão. Os roedores alimentam-se dos seus ovos, mas também atacam filhotes e mabuias, pequenos lagartos escuros que só existem naquelas ilhas. Fernando de Noronha já foi um santuário para a reprodução de aves marinhas, como atestam relatos dos primeiros navegadores a aportar por lá. Hoje, contudo, elas praticamente só fazem ninhos nas ilhas secundárias. Ratos e outros animais carnívoros introduzidos por humanos ameaçam a biodiversidade local – um dos principais chamarizes do arquipélago, que vive do turismo.
Mangini afirmou que a desratização deve beneficiar outras espécies que vivem na ilha. Os pesquisadores esperam ver um aumento na quantidade de atobás-marrons e outras aves que se reproduzem ali – como a cocoruta, um passarinho pardo de asas rajadas. “O ambiente está hostil para as aves”, disse o veterinário. “A presença dos ratos faz com que muitas nem tenham o estímulo de fazer ninhos ali.” Se o grupo liderado por ele lograr êxito, será a primeira vez que roedores serão eliminados de uma ilha brasileira. “Ninguém tinha esse know-how no país”, disse Mangini.
Os ratos contam entre as espécies mais bem-sucedidas do reino animal. Estão aí há bem mais tempo que nós, pelo menos 145 milhões de anos – o Homo sapiens tem 200 mil anos de idade – e provavelmente continuarão a povoar o planeta depois que estivermos extintos. Seu cardápio eclético inclui plantas e praticamente tudo que mexe e é menor que eles. Junto às aglomerações de humanos, os roedores encontraram abrigo e comida farta. Acompanhando os Homo sapiens aonde quer que fôssemos, eles se tornaram os mamíferos não humanos de mais ampla distribuição no planeta. Capazes de transmitir doenças, devastar plantações e danificar construções, ganharam péssima fama e figuram entre os maiores inimigos dos humanos no reino animal.
No livro Rats, sem tradução para o português, o autor Robert Sullivan compara o modus operandi dos roedores ao dos próprios humanos. “Quando chegam como imigrantes a um novo território”, escreveu, “eles expulsam as criaturas que os precederam ali, multiplicam-se e exploram os recursos até a escassez – ponto em que declinam até que sejam forçados mais uma vez a lutar, peregrinar ou morrer.”
A disposição dos ratos para o sexo ajudou-os a conquistar o globo. Os roedores podem copular até vinte vezes por dia, e as fêmeas são férteis durante toda a vida, que pode passar de um ano. Começam a se reproduzir após nove semanas ou menos, e suas ninhadas chegam a dez filhotes, com três semanas de gestação. A descendência de um único casal que se reproduza à vontade ao longo da vida pode chegar a 15 mil indivíduos.
Assim como em outras ilhas tropicais, os animais que predominam em Fernando de Noronha são os Rattus rattus, chamados popularmente de ratos-pretos ou ratos-de-telhado, ou ainda guabirus, no Nordeste brasileiro. Pertencem a uma espécie natural do subcontinente indiano que chegou à Europa sucessivas vezes nos últimos dois milênios, trazidos a tiracolo com viajantes – foram eles que transmitiram o bacilo responsável pela peste negra durante a Idade Média. São ligeiramente menores que os animais de outra espécie que posteriormente se tornou mais comum nas aglomerações urbanas – a ratazana, ou Rattus norvegicus (apesar do nome que se traduz por “rato norueguês”, se originou no norte da China ou na Mongólia, e se globalizou mais recentemente).
Juntamente com uma terceira espécie – o Rattus exulans, comum no Pacífico –, os roedores já foram identificados por cientistas em cerca de 80% dos grupos de ilhas do planeta. Nesses ambientes eles costumam fazer um estrago ainda maior do que nos continentes, deixando um rastro de ecossistemas perturbados e espécies extintas. Estudos já mostraram que eles ameaçam quase duas centenas de espécies insulares, incluindo 75 variedades de aves marinhas.
Para as grandes travessias, os roedores costumam contar com a ajuda de navios, mas em distâncias mais curtas dependem apenas de seus próprios meios e do talento para a natação. “O Rattus norvegicus é capaz de nadar mais de 2 quilômetros, e o R. rattus, cerca de 500 metros”, disse-me o neozelandês James Russell, um biólogo especialista no combate a ratos em ilhas, convidado pelos pesquisadores brasileiros para trabalhar com eles em Fernando de Noronha.
Russell estudou recentemente o DNA das duas espécies de roedores introduzidas no arquipélago e concluiu que eles são da mesma linhagem predominante em Portugal e na costa do Brasil. “Só não sabemos dizer se vieram diretamente da Europa ou se fizeram escala no continente”, disse o neozelandês. De onde quer que tenham vindo, é impossível afirmar com exatidão desde quando estão ali. “Como os primeiros cientistas só chegaram a Noronha no século XIX, desconhecemos a ecologia das ilhas nos 300 anos que vieram antes.”
O biólogo acredita que boa parte do impacto ambiental causado pelos invasores às espécies locais deve ter acontecido logo nas primeiras décadas após sua introdução. Muitas espécies nativas podem ter desaparecido sem que ninguém tivesse registrado sua existência, mas alguns exemplos foram documentados. É o caso da ave conhecida como pardela-de-asa-larga, da espécie Puffinus lherminieri, comum nos trópicos. “Os primeiros naturalistas que visitaram Noronha registraram essa ave, mas não viram onde ela se reproduzia”, contou. “Agora já não existe mais aqui.”
O arquipélago de Fernando de Noronha foi descoberto em 1503 durante uma viagem do navegador italiano Américo Vespúcio. O diário de bordo da expedição registrou a riqueza biológica que os europeus encontraram ali – e o despreparo das espécies locais para o encontro fatídico com o Homo sapiens. “A ilha era totalmente desabitada e desocupada, farta de água fresca e doce, com infinitas árvores e inúmeros pássaros marinhos e terrestres que eram tão dóceis que se deixavam sem medo apanhar com a mão”, diz o documento; “pegamos tantos que com eles abarrotamos uma barca.”
Quando visitou Fernando de Noronha quase quatro séculos depois, em 1876, o geólogo americano John Branner notou que os roedores já haviam tomado conta do ambiente. Talvez estivessem lá muito antes disso – no artigo que descreve suas observações, ele cita um relato de 1630 que documenta a abundância de ratos na época em que o arquipélago foi ocupado pelos holandeses. Branner narrou a noite dramática que passou na ilha Rata, que provavelmente deve seu nome à profusão de roedores que abrigava. O geólogo mal conseguiu dormir, pois os animais invadiam sua rede, caíam do teto e mordiscavam seu rosto. “É simplesmente impossível acreditar […] como camundongos podem existir em tais números”, escreveu.
Juntas, as ilhas, ilhotas e rochedos de Fernando de Noronha têm cerca de 26 quilômetros quadrados (se fossem um município, estaria entre os quinze menores do país). Desde 1988, o arquipélago é parte do estado de Pernambuco. Segundo o IBGE, sua população é de pouco mais de 3 mil residentes fixos, mas não falta quem alegue se tratar de um número subestimado. A economia das ilhas, patrimônio natural da humanidade desde 2001, gira em torno do turismo, impulsionado pelas praias paradisíacas e pela grande diversidade biológica. No ano passado devem ter recebido mais de 90 mil visitantes, conforme projetou uma estimativa feita em outubro.
Nos ambientes insulares, plantas e animais estão submetidos a forças da seleção natural diferentes daquelas que agem sobre seus primos continentais. Por isso, a evolução tende a favorecer ali a ocorrência de organismos que não existem em nenhum outro lugar. Testemunhas da história da vida no planeta, as espécies endêmicas, como são chamadas, costumam ser focos prioritários de ações de conservação. Fernando de Noronha não foge à regra: dentre suas espécies exclusivas, além do lagarto de nome mabuia, estão o sebito, passarinho que se alimenta de insetos prejudiciais à agricultura, e uma anfisbena, réptil chamado popularmente de cobra-de-duas-cabeças.
Por outro lado, o ambiente das ilhas é também mais vulnerável que o dos continentes. Como há um número limitado de bichos e plantas, eles frequentemente dependem uns dos outros, e a extinção de uma única espécie pode ter efeitos devastadores sobre o ecossistema, pois não haverá quem substitua o papel ecológico que ela desempenhava naquele ambiente. Tire uma ave da ilha onde ela se reproduz e provavelmente as plantas polinizadas por ela estarão a perigo também. Em seguida a fertilidade do solo diminuirá, prejudicando plantas e organismos que vivem no solo, num efeito cascata muitas vezes funesto.
O número de espécies de aves extintas devido à colonização de ilhas se conta na casa das centenas, talvez dos milhares. O exemplo mais emblemático é o dodô, uma ave não voadora de 1 metro de altura que habitava as ilhas Maurício, no oceano Índico. Dizimado no século XVII após a chegada dos europeus, hoje existe na forma de fósseis e réplicas espalhadas pelos museus de história natural. Nesse caso e na grande maioria dos demais, os culpados foram os ratos e mamíferos domésticos introduzidos pelos humanos. As espécies invasoras, como são chamadas, estão envolvidas em quase nove de cada dez extinções de espécies de ilhas documentadas desde as Grandes Navegações.
A conservação da biodiversidade, por sua vez, não é apenas um fetiche dos ambientalistas. A variedade de organismos vivos e a diversidade genética de cada espécie são fundamentais para a saúde dos ecossistemas. Delas dependem a regularidade dos recursos hídricos, a proteção do solo e a resiliência dos ambientes, para não falar da nossa comida – a agricultura só existe graças a incontáveis espécies polinizadoras e microrganismos do solo – e dos medicamentos produzidos a partir de substâncias encontradas nos mais variados organismos vivos.
James Russell, o cientista recrutado pelos brasileiros para ajudá-los a acabar com os roedores da ilha do Meio, é um biólogo loiro de 38 anos de barba curta e olhos claros. Erradicar ratos é sua especialidade. O neozelandês já participou de campanhas de extermínio em mais de 300 ilhas. Trabalhou em seu país natal, na Polinésia Francesa, na Europa, no ambiente subantártico e no atol de Marlon Brando, no Pacífico Sul. Na tarde em que o conheci, um colega de projeto o apresentou como “a referência mundial para ratos em ilhas”. No dia seguinte, enquanto tomava uma cerveja após o pôr do sol num mirante, ele se definiu em termos mais modestos: “Sou só um exterminador de ratos bem pago.”
Russell conversou comigo na casa de madeira onde funciona um laboratório utilizado por pesquisadores de passagem por Fernando de Noronha (a instalação pertence ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, ou ICMBio, órgão ambiental do governo federal). O neozelandês vestia uma regata amarela em que estava escrito “Rat Boy”, nome de uma grife paulistana que ele descobriu em sua primeira visita ao Brasil. “Esse sou eu!”, reagiu o pesquisador ao ver a camiseta num outdoor; comprou duas pela internet.
A primeira tarefa de Russell em seu ofício, durante o doutorado, consistiu em soltar um rato solitário numa pequena ilha sem roedores na Nova Zelândia e em seguida tentar matá-lo. O biólogo explicou que era um experimento controlado – o animal carregava uma coleira com GPS. “Queríamos entender como eles pensam e se movimentam para saber como eliminá-los.”
O Rattus norvegicus solto por ele deu trabalho. Não se deixou pegar pelas armadilhas colocadas pelos pesquisadores. Acabou sendo encontrado numa outra ilha, a 400 metros daquela em que havia sido introduzido. Morreu só dezoito semanas depois de solto, atraído por uma isca de carne fresca de pinguim colocada num local em que cães farejadores haviam encontrado indícios do fugitivo. Foi uma “captura de enorme dificuldade”, conforme escreveram Russell e três colegas num artigo de 2005 na revista Nature.
O biólogo é pesquisador da Universidade de Auckland, onde nasceu, mas frequentemente atende ao apelo de colegas do exterior que lhe pedem ajuda com os ratos. Certa vez, foi contatado por autoridades das ilhas Faroë, situadas a meio caminho entre a Escócia e a Islândia. Um rato solitário havia desembarcado numa das ilhas do arquipélago. Pesquisando na internet, descobriram que Russell era o perito a ser chamado e lhe telefonaram. “Foi como um ‘bat-sinal’ no céu”, comparou o neozelandês. Quando o especialista chegou, contudo, o rato já não estava mais lá. “Provavelmente morreu sozinho.”
No final de 2014, o bat-sinal veio de Fernando de Noronha, onde já estava em curso o projeto do Instituto Tríade para entender os impactos das espécies invasoras no arquipélago. Prestes a se casar, por pouco Russell não aceitou o convite que recebeu por e-mail de Tatiane Micheletti, oferecendo-lhe uma bolsa do programa Ciência sem Fronteiras. Acabou mudando os planos e foi ao arquipélago brasileiro em fevereiro de 2015. Levou a esposa – uma geógrafa especializada na gestão de projetos – para uma lua de mel improvisada, pontuada por excursões para a captura de ratos e trabalho de laboratório. Voltaria às ilhas em outras duas temporadas de um mês.
A Nova Zelândia é um arquipélago de 4,5 milhões de habitantes com expertise reconhecida no combate a espécies invasoras. Todos os mamíferos que existem ali são forasteiros, com exceção de alguns morcegos. O ambiente que reinava antes da chegada dos humanos foi comparado pelo naturalista australiano Tim Flannery a um experimento evolutivo em grande escala. Segundo ele, o arquipélago originalmente deveria ter a aparência de como seria o planeta caso os mamíferos tivessem sido extintos junto com os dinossauros há 65 milhões de anos.
Os primeiros grupos humanos a povoarem a Nova Zelândia foram os maoris, que chegaram de barco, vindos da Polinésia, por volta do ano 1300. Traziam consigo ratos e outros mamíferos. Outras espécies exóticas desembarcaram no século XIX, quando os britânicos colonizaram o arquipélago. O contato dos quadrúpedes peludos com a fauna local foi devastador. Todo ano, os invasores predam dezenas de milhões de aves nativas. Cerca de um quarto das aves marinhas da Nova Zelândia foram extintas após a chegada dos humanos; se consideradas apenas as terrestres, o número chega a 40%.
Os principais responsáveis pela chacina foram ratos e camundongos, gatos, gambás e três espécies de mustelídeos – família de carnívoros de pequeno porte, corpo espichado e focinho delgado, como os arminhos e os furões. A ironia é que os mustelídeos foram deliberadamente introduzidos na Nova Zelândia no final do século XIX com o objetivo de controlar a proliferação de coelhos – invasores que, por sua vez, haviam sido levados para proporcionar caça e comida aos colonizadores humanos, e cuja população saíra do controle.
Russell disse que o desejo de lutar pela biodiversidade nativa de seu país foi o que o levou a escolher a carreira. Na Nova Zelândia, continuou o biólogo, a preocupação com a conservação ambiental é parte da identidade nacional. “Nossas aves nativas são o que nos distingue no mundo, somos kiwis!”, disse, sorrindo – seus conterrâneos se tratam pelo nome da ave nacional, um bichinho plumoso de aparência esquisita com olhos redondos e bico fino. Incapazes de voar, os kiwis não oferecem resistência aos arminhos.
No começo do século XX, a Nova Zelândia começou a erradicar grandes mamíferos como porcos e cabras de algumas ilhas. Décadas depois, em 1963, mudou a escala das espécies perseguidas e passou a erradicar roedores. “Começamos com pequenas ilhas e, desde então, aumentamos a cada dez anos a ordem de magnitude daquelas de onde eliminamos os ratos”, disse Russell. Ratos e outros mamíferos já foram erradicados de 117 das 345 ilhas do arquipélago, somando cerca de 10% do território neozelandês. Os efeitos são palpáveis. Aves que eram dadas por perdidas, como uma pardela que existia na ilha Little Barrier, e o kakapo, um papagaio que não voa, foram salvas da extinção.
No caso dos ratos, o método de preferência dos exterminadores é o veneno, às vezes combinado com armadilhas – os modelos mais recentes incluem dispositivos que se rearmam automaticamente e podem matar dezenas de indivíduos sem precisar da intervenção humana. Mas os anais da luta do Homo sapiens contra os roedores incluem armas heterodoxas, como o uso de coiotes rastreados por sinais de rádio, soltos em 2010 nas ruas de Chicago para ir atrás dos ratos.
O veneno pode ser espalhado em dispositivos manualmente abastecidos por pesquisadores e técnicos, como foi feito em Fernando de Noronha. Para desratizar ilhas maiores, porém, ele precisa ser lançado por helicóptero, o que só é uma opção para áreas inabitadas. Compostos anticoagulantes como o brodifacoum, usado na ilha do Meio, são os mais indicados, pois não têm ação imediata. Venenos como o chumbinho, que matam logo após ingeridos, são pouco eficazes para a desratização, pois o animal morto libera odores que afastarão seus pares da isca.
Em regiões mais frias, a estratégia mais indicada é administrar o veneno durante o inverno, quando os alimentos são escassos e os animais têm mais fome. Em ilhas como as de Fernando de Noronha, situadas pouco abaixo da linha do Equador, a taxa de fracasso das tentativas de erradicação pode ser até duas vezes mais alta que nas regiões temperadas. “Nos trópicos o tempo está sempre agradável e há muita comida e água disponível”, disse Russell. “Os ratos amam.”
O biólogo é adepto incondicional da erradicação de espécies invasoras. “É uma medida que funciona”, argumentou. “Você vai a um lugar, resolve o problema e vai embora.” O lado triste, ponderou, é que é preciso matar um animal. “Mas alguém vai ter que morrer: sejam os ratos e outros predadores, sejam as aves que eles vão comer. Nós temos o poder de escolher quem morre.”
O Brasil promoveu no início da década passada a erradicação bem-sucedida de cabras em Trindade, ilha oceânica de pouco mais de 9 quilômetros quadrados a 1 200 quilômetros do litoral capixaba.
Os mamíferos haviam sido introduzidos ali séculos antes, em 1700, por Edmund Halley – o mesmo que batizou o cometa –, numa viagem pelo Atlântico Sul (pareceu-lhe boa ideia deixar os animais para alimentar eventuais náufragos que aportassem em Trindade). Três séculos depois, as invasoras haviam dizimado localmente a Colubrina glandulosa, a árvore que dominava a paisagem. Militares da Marinha, que administra a ilha, precisaram de várias missões para exterminar as cerca de 800 cabras que havia ali, num esforço que se estendeu de 2002 a 2005. Continuam na ilha, porém, os camundongos introduzidos acidentalmente – sua população é estimada na casa das dezenas de milhares.
A erradicação das cabras em Trindade foi um exercício de nível fácil se comparada à luta contra esses e outros invasores nas ilhas Galápagos, que ficam a 906 quilômetros da costa do Equador. Trata-se de um arquipélago especial para os biólogos, pois Charles Darwin fez ali observações que o ajudaram a montar o quebra-cabeça da evolução das espécies por seleção natural. O jovem naturalista britânico visitou as ilhas ao longo de sua viagem ao redor do globo a bordo do Beagle (Darwin também esteve em Fernando de Noronha, mas numa passagem rápida, permanecendo no arquipélago por algumas horas apenas).
Entre outras espécies endêmicas, Galápagos abriga a maior população do planeta de tartarugas terrestres em seu hábitat natural. Para elas, a chegada dos mamíferos foi a ruína. Os invasores predam os ovos dos quelônios e competem com eles por comida, com a vantagem de serem muito mais ágeis. As cabras são seus maiores algozes, em especial aquelas que se desgarraram de rebanhos e vivem em condições selvagens, deixando por onde passam um rastro de paisagem degradada. Sua vítima mais conhecida é a espécie Chelonoidis abingdonii, cujo último representante, batizado de George Solitário, morreu em 2012 com mais de 100 anos.
As cabras foram o alvo prioritário da mais ambiciosa tentativa de eliminação de espécies invasoras já feita, conduzida por um exército arregimentado pela administração do Parque Nacional Galápagos. O primeiro exercício das tropas consistiu em exterminar as cabras de Pinta, uma ilha pequena com quase 60 quilômetros quadrados – o único local onde era possível encontrar a espécie de George Solitário. Três cabras foram introduzidas ali em 1959; menos de duas décadas depois, já eram 40 mil.
Depois de alguns ensaios em maior escala, veio a campanha mais ousada: eliminar a tiros as 100 mil cabras que havia na porção norte da ilha Isabela, numa área de 2 500 quilômetros quadrados. A empreitada contou com reforço aéreo – snipers munidos de fuzis AR-15 a bordo de helicópteros conduzidos por pilotos neozelandeses com experiência na matéria. Filmadas da aeronave – os vídeos estão na internet –, as cenas das cabras fugindo assustadas e tombando uma a uma remetem perturbadoramente aos videogames de tiro em primeira pessoa. Para assegurar que todos os indivíduos morressem, fêmeas estéreis em cio induzido foram introduzidas na ilha – as chamadas cabras de Judas. O objetivo era usá-las como isca sexual para atrair os animais selvagens remanescentes, reunindo-os e facilitando o abate. Algumas das cabras estéreis talvez ainda estejam por lá. Os cadáveres de seus pares foram deixados apodrecendo nas próprias ilhas.
Com o aumento da circulação de bens e pessoas, os seres vivos ganharam uma mobilidade de escala sem precedente. O livre-trânsito das espécies na sociedade global já foi comparado, por seus efeitos, a uma reaproximação dos continentes, como se vivêssemos numa Nova Pangeia, como explica a jornalista americana Elizabeth Kolbert em seu livro A Sexta Extinção. À medida que a mudança climática ora em curso forçar espécies a se deslocar de seus hábitats originais, veremos cada vez mais invasões biológicas que não estavam no script.
A atitude coletiva em relação à introdução de novas espécies nem sempre foi de hostilidade, porém. No fim do século XIX, a American Acclimatization Society quis introduzir nos Estados Unidos cada espécie de ave mencionada nos escritos de William Shakespeare (especialistas identificaram mais de 600). Por isso o estorninho – um passarinho escuro com pintas brancas que aparece na primeira parte de Henrique IV – se tornou figurinha fácil no país. Azar dos agricultores, para quem a pequena ave importada passou a representar uma peste. Algumas dezenas de indivíduos foram soltas no Central Park, em Nova York, em 1890 e 1891; hoje são mais de 200 milhões de costa a costa.
Os impactos crescentes das espécies introduzidas sobre a economia, o meio ambiente e a saúde humana ajudaram que fossem vistas sob um prisma negativo. A metáfora bélica para tratar das espécies exóticas foi usada pela primeira vez num livro de 1958 de Charles Elton, The Ecology of Invasions by Animals and Plants, e colou. O interesse acadêmico por elas aumentou a partir do fim do século passado, e hoje esses estudos configuraram um ramo das ciências da vida, a biologia da invasão.
Não que todos seus praticantes vejam a questão com os mesmos olhos. Alguns consideram a demonização das espécies invasoras uma nova caça às bruxas e não hesitam em falar em “xenofobia biológica”. Em 2011, o ecólogo americano Mark Davis e outros dezoito autores publicaram na Nature um artigo que instava os colegas a superar a dicotomia entre espécies nativas e exóticas. Alegaram que o fato de uma espécie ser nativa não é garantia de que não vá ter efeito negativo sobre o ambiente, e aconselharam os pesquisadores a focarem na função – e não na origem – das espécies que estudam.
A revista publicou depois uma objeção assinada por 141 cientistas encabeçados por Daniel Simberloff, figura de proa da disciplina. Os autores reconheceram que há espécies introduzidas benéficas, mas lembraram que os impactos de um organismo exótico às vezes se manifestam apenas décadas depois da sua introdução.
Não é incomum que espécies de plantas e animais colonizem novos territórios, mesmo sem a ajuda humana. Em muitos casos a introdução se dá sem grande impacto sobre o novo lar, e não é preciso tomar qualquer atitude. Mas as espécies introduzidas podem se tornar problemáticas, e é só nesse caso que os gestores ambientais as consideram invasoras. A IUCN, organização ambientalista internacional, estima que os prejuízos anuais causados por elas em todo o mundo se conte na casa das centenas de bilhões de dólares. O combate a essas espécies foi eleito uma das prioridades pelos 168 países signatários da Convenção sobre a Diversidade Biológica.
Só os mamíferos predadores têm culpa no cartório por 58% das extinções contemporâneas de aves, mamíferos e répteis, mas o problema da invasão biológica está longe de se restringir aos quadrúpedes. A lista de 100 piores espécies invasoras compilada pela IUCN inclui a carpa, o sapo-cururu, o estorninho, o mosquito da dengue e a bactéria da malária aviária, além de 36 espécies de plantas, incluindo a leucena, abundante em Fernando de Noronha.
Parte dos invasores malquistos chega de barco, junto com a água de lastro de navios (esse é o nome dado ao volume que essas embarcações transportam quando estão navegando sem carga). Foi o caso do mexilhão-dourado, um molusco de 5 centímetros que apareceu em 1991 na foz do rio da Prata, na Argentina, trazido por cargueiros vindos da China. Sem predadores nas águas da América do Sul, os mexilhões se espalharam pelo continente. No Brasil, invadiram primeiro as bacias hidrográficas do Sul e Centro-Oeste, e em 2015 chegaram também ao rio São Francisco. Capaz de aderir a qualquer superfície, o bicho entope tubulações de estações de tratamento de água e usinas hidrelétricas. Não são conhecidos meios de erradicá-los.
Se na Nova Pangeia as espécies introduzidas tendem a ser cada vez mais presentes, a luta contra elas pode assumir ares quixotescos. A autoridade ambiental da Flórida já organizou um concurso com prêmios em dinheiro para aqueles que caçassem mais pítons birmanesas, serpentes primas da sucuri que podem passar de 5 metros e hoje se contam às dezenas de milhares nos pântanos do sul do estado, predando inúmeras espécies. Em 2017, a Austrália liberou em todo seu território um vírus de uma cepa especialmente letal para coelhos selvagens – a arma biológica exterminou 42% dos animais em pouco tempo.
Mas vem da Nova Zelândia, mais uma vez, a iniciativa de maior vulto anunciada na seara da erradicação animal. Em 2016, o país anunciou o plano de eliminar oito espécies de predadores – incluindo roedores, mustelídeos e um gambá – do arquipélago até 2050, seguindo o apelo de um famoso cientista local na televisão. James Russell, um dos líderes científicos do projeto, calculou que o esforço custaria 6,2 bilhões de dólares ao longo de cinquenta anos.
Em Fernando de Noronha, a ilha do Meio foi escolhida para o projeto pioneiro de desratização por seu tamanho reduzido. Os pesquisadores querem usá-la como balão de ensaio para testar a metodologia adotada e avaliar a viabilidade de empregar o mesmo procedimento, no futuro, em ilhas maiores. O plano de ação foi traçado com base em modelos matemáticos desenvolvidos por James Russell e alimentados com dados colhidos pelos pesquisadores no arquipélago.
Quando ratos são erradicados de uma ilha, as populações de animais nativos podem levar anos ou décadas até se recuperarem. Na ilha do Meio, porém, efeitos da primeira administração de veneno, em agosto, já podiam ser notados dois meses depois. “Não vemos mais ratos caminhando às onze da manhã, como víramos na campanha passada”, observou Paulo Rogerio Mangini, o pesquisador da Tríade à frente do projeto.
Os impactos são mais visíveis na comparação com o monitoramento de várias espécies de animais na ilha Rata, que não está sendo submetida a aplicações de veneno e, por isso, serve aos cientistas como ambiente de controle. “A comparação das duas ilhas nos ajuda a entender outros fatores que podem estar interferindo nas populações desses animais, para além do veneno”, explicou Mangini. O veterinário disse ter notado diferenças na capacidade de reprodução do atobá-marrom e da cocoruta, que fazem ninhos na ilha do Meio. “Não esperávamos esses indicativos tão evidentes já com a primeira campanha, mas ainda não temos números para quantificar esse efeito.”
A Tríade foi fundada em 2004. É uma associação civil sem fins lucrativos que atualmente conta com quase trinta membros, dos quais quinze estão envolvidos em projetos de medicina da conservação. “O princípio dessa disciplina é promover a saúde ecológica por meio da união entre as três saúdes – animal, humana e dos ecossistemas –, daí o nome”, explicou-me o médico-veterinário Jean Carlos Ramos Silva, um dos fundadores do instituto. Muitos dos integrantes da entidade conciliam sua participação ali com outras atividades acadêmicas e profissionais. A sede fica no Recife, mas há membros da Tríade espalhados por vários estados do país.
Em Fernando de Noronha, o grupo desenvolve pesquisas sobre a saúde do ecossistema local desde 2007. O projeto atual da Tríade – uma continuação daquele esforço inicial – está em curso desde 2013 e conta com o apoio financeiro da WWF-Brasil, ONG ambientalista ligada a uma rede internacional sediada na Suíça. A ONG bancou também a compra do bote usado pelos pesquisadores em campo, doado ao ICMBio (até então, a autoridade ambiental brasileira em Fernando de Noronha dependia de embarcações dos bombeiros ou da administração do arquipélago).
O projeto inclui várias pesquisas para entender as espécies nativas e invasoras em Fernando de Noronha. Uma delas foi conduzida por Tatiane Micheletti, uma paulistana de 34 anos que tem pele clara e usa pingente de arraia. Depois de fazer graduação em biologia e mestrado em ciências veterinárias, fez seu doutorado com pesquisas de campo no arquipélago, sob a orientação de Paulo Rogerio Mangini e James Russell. Defendeu em outubro sua tese na Universidade Técnica de Dresden, na Alemanha, uma semana antes de voltar a Noronha.
Micheletti estudou os mocós, pequenos roedores que chegaram ao arquipélago nos anos 60 trazidos pelos militares, provavelmente para que servissem de carne de caça. Toda a população desses animais na ilha – cerca de 6 600 indivíduos, segundo estimou a bióloga – descende provavelmente dos dois casais introduzidos naquele momento. Eles se concentram nas encostas rochosas abundantes na ilha principal – tanto as formações naturais quanto as pedreiras artificiais criadas no passado para a construção de fortalezas.
Os roedores são considerados invasores em Fernando de Noronha. Têm a reputação – alimentada pelo próprio plano de manejo do arquipélago – de revolver as pedras e alterar a paisagem, além de matar as árvores após cavar o solo até a raiz. Não havia, porém, estudos que confirmassem essas alegações, e por isso Micheletti decidiu investigar a espécie. Concluiu, porém, que os mocós não merecem a má fama que têm.
Seu principal ponto de observação era uma colina rochosa abaixo do mirante que dá para a praia do Boldró, no norte da ilha. Tão logo capturou os primeiros indivíduos para estudar, Micheletti se deu conta de que o bicho é incapaz de cavar. “Eles têm uma almofadinha na palma da mão e suas unhas não crescem para fora da carne”, afirmou, diante da pedreira em que costumava monitorar os roedores. “O mocó sobe em árvores para comer folhas e precisa ser ágil, portanto não pode ter mão bruta pra cavar.”
A bióloga concluiu que a espécie não está alterando significativamente a vegetação em volta da colônia e não representa risco de deslizamento de pedras, diferentemente do que alertavam as autoridades. “O mocó não é prioritário para ações de conservação”, disse a bióloga. “Se houver dinheiro, é melhor resolver outros problemas primeiro.”
Entre os problemas prioritários de espécies invasoras em Fernando de Noronha, garantem Micheletti e outros pesquisadores que trabalham no arquipélago, está o teiú. Também chamado de teju, o animal em questão é um lagarto graúdo que pode passar de 1 metro de comprimento, incluindo a cauda. Os relatos sobre sua chegada ao arquipélago são desencontrados, mas é certo que estão ali há pelo menos 100 anos.
Quem estuda essa espécie invasora em Noronha é Carlos Roberto Abrahão, um médico-veterinário paranaense que trabalha em Goiânia como analista ambiental do ICMBio e faz doutorado na USP. Especialista em répteis, Abrahão tem um dragão-de-komodo – um grande lagarto parente do teiú – tatuado na perna. Recentemente, passou nove meses na Nova Zelândia trabalhando com James Russell, seu coorientador de doutorado.
Num fim de tarde em outubro, Abrahão estava escalado para fazer uma palestra sobre os teiús para moradores e turistas em Fernando de Noronha. O evento aconteceria num pequeno auditório situado junto à sede do ICMBio, na ilha principal. Algumas dezenas de pessoas apareceram para vê-lo falar. O pesquisador projetou no telão a foto dramática de um teiú se alimentando de um filhote vivo de tartaruga. “Ele come o que achar na frente – planta, fruta, bicho”, explicou.
O palestrante usava uma camiseta com estampa da mabuia, o lagarto endêmico do arquipélago que é vítima preferencial dos teiús. Seu temperamento não ajuda: a mabuia é descrita num antigo plano de manejo de Fernando de Noronha como uma “lagartixa muito meiga, deixando as pessoas aproximarem-se muito”, capaz até mesmo “de subir naqueles que lhe estendem mãos e pés”.
Abrahão calculou que deve haver na ilha principal entre 7 mil e 12 mil teiús. “É muito bicho”, comentou com a plateia. Ainda em curso, sua pesquisa deve apontar alternativas para o controle do réptil. “O que podemos dizer no momento é que não temos ferramentas que possibilitem a erradicação do teiú em Noronha, assim como o veneno no caso dos ratos”, ele me disse depois por e-mail. “As opções de manejo que temos hoje envolvem armadilhas e cercas de exclusão.”
Numa noite em Fernando de Noronha, James Russell saía para jantar quando chamou a atenção para um bichano que rondava o buggy no qual iríamos até o restaurante. “Está vendo esse gato?”, perguntou. “Pegou três mabuias hoje. Matou duas e arrancou o rabo da outra.” Os felinos representam uma ameaça às espécies nativas do arquipélago – e acaba sendo bem mais difícil combatê-los do que os ratos, que ninguém quer por perto. Fazendo um trocadilho em inglês, Russell disse que o problema com os gatos é que eles são ao mesmo tempo animais domésticos (pets) e uma peste (pest).
Uma estimativa publicada em 2013 na revista Nature Communications calculou que os gatos que circulam livremente pelos Estados Unidos matam todo ano aproximadamente 2 bilhões de aves e 12 bilhões de pequenos mamíferos, além de centenas de milhões de répteis e anfíbios. Isso no continente; nas ilhas, a devastação é proporcionalmente muito maior. Os felinos se alimentam de quase 250 espécies insulares, e foram responsáveis por 14% das extinções recentes de aves, mamíferos e répteis em ilhas pelo planeta afora.
Em Fernando de Noronha, o primeiro registro da ocorrência de gatos é do século xix, mas provavelmente eles estão lá bem antes disso. Nas áreas habitadas, os humanos lhes dão comida; nas áreas intocadas, dispõem de presas abundantes para se alimentarem. O senso comum enxerga-os como devoradores de ratos, mas nas ilhas sua presença provoca principalmente uma mudança de comportamento dos roedores. “Gatos não controlam ratos, eles fazem-nos se esconder”, disse Russell. Elimine os felinos de uma ilha e os ratos aumentarão de tamanho e se tornarão mais visíveis, mas sua população não crescerá de forma significativa. “O que controla a população de ratos é a oferta de alimento”, disse-me noutra ocasião Paulo Rogerio Mangini.
Estudiosos das linhagens genéticas dos felinos acreditam que os ancestrais dos atuais gatos domésticos começaram a circular nas imediações de grupos humanos por volta de 8 mil anos atrás no Egito e no Oriente Próximo. Eles nos acompanham desde então e estão em todos os continentes, com exceção da Antártida. Mas nunca foram plenamente domesticados como foram os cães, por exemplo.
Por isso, gatos sem dono ou desgarrados que se afastam do convívio humano não demoram a manifestar comportamento arisco. Geram filhotes arredios que não dependem de humanos e têm pouco ou nenhum contato com eles. São os ditos gatos ferais. Em Fernando de Noronha, eles estão na área do parque nacional que abarca parte da ilha principal, ou em suas imediações. A análise de suas fezes mostrou que metade de sua dieta é composta por mabuias; as aves respondem por um terço. Mais do que os gatos domésticos, são os animais ferais que preocupam os ambientalistas no arquipélago.
No ano passado, um grupo de pesquisadores brasileiros e James Russell publicaram um artigo sobre os gatos de Fernando de Noronha na revista Biological Invasions. O primeiro autor foi o veterinário Ricardo Augusto Dias, pesquisador da USP. Para estimar a população de felinos da ilha, os autores distinguiram os animais de circulação restrita – aqueles com dono, proibidos por lei de andar pelas ruas da ilha – daqueles que transitam livremente, tanto os gatos sem dono que vivem no entorno das casas quanto os ferais. Calcularam que há na ilha quase 1 300 indivíduos, dos quais mais de 300 não estão sob qualquer tipo de supervisão humana.
O artigo discutiu também o impacto de possíveis soluções para controlar o animal. Concluiu que “uma estratégia de controle usando métodos letais deveria ser considerada pelos tomadores de decisões, ao menos para os indivíduos ferais”. Notou que o envenenamento – usado com sucesso em outras erradicações de felinos – seria um método adequado para promover uma primeira redução na população de gatos sem dono em Fernando de Noronha, seguido por outros métodos de controle. Considerou ainda que a eutanásia seria um método efetivo e ético em alguns casos, mas ressaltou que é proibida por lei no estado de Pernambuco.
A supervisão dos bichos domésticos é atribuição do Núcleo de Vigilância Animal, o NVA, criado em 2011 pela administração do arquipélago. A divisão oferece gratuitamente aos moradores a esterilização de seus cães e gatos. “Se um animal for capturado solto na rua, ele vai para o NVA e só é resgatado – castrado – mediante pagamento de uma multa pelo dono”, explicou-me o veterinário Fernando Jorge Magalhães. A cirurgia dos animais mantidos em casa não é obrigatória.
Magalhães – um pernambucano de 37 anos que fez seu doutorado estudando a toxoplasmose dos gatos do arquipélago – é gerente do departamento responsável pelas operações de esterilização. O núcleo tem baias de apreensão dos animais, sala cirúrgica e três veterinários aptos a operar. Quando o entrevistei por telefone no começo de dezembro, o veterinário disse que, até aquele momento, 385 gatos haviam sido esterilizados pela equipe em 2017. Destes, 200 haviam sido levados pelos donos, e os demais eram animais sem domicílio fixo que rondavam as vilas de Fernando de Noronha, capturados e devolvidos ao ambiente. “Esses bichos circulam na área da mata, mas vêm atrás de restos de comida das residências”, afirmou Magalhães. “Não estão se alimentando exclusivamente das espécies nativas.”
A castração, no entanto, só é um método efetivo de controle da população se for feita de forma sistemática e sem interrupção. Uma campanha de esterilização foi promovida pela Tríade em 2007, no primeiro projeto que o instituto desenvolveu na ilha – cerca de 700 gatos foram castrados. Mas os esforços não tiveram continuidade, e os felinos não deixaram de se reproduzir.
Magalhães explicou que o núcleo de vigilância não faz a busca ativa dos gatos ferais. No passado alguns deles foram capturados e chegaram a ser colocados em cativeiro junto com outros felinos. “A experiência não foi boa, eles acabam matando os outros animais”, disse. “São bichos que arranham e mordem, não podemos colocá-los para adoção.” O veterinário acredita que a opção do cativeiro deveria ser considerada entre as soluções, mas teria que ser numa área ampla, adaptada ao comportamento dos gatos ferais. “Se for confinar, tem que levar em consideração o bem-estar do animal.”
Outra opção levantada no passado para diminuir a população de felinos foi estimular sua adoção pelos turistas. Uma campanha chegou a ser realizada com o apoio da Gol, que se dispôs a transportar os animais sem custos, mas o número de indivíduos levados para o continente não passou de vinte. O projeto deixou de ser uma boa ideia depois que pesquisadores brasileiros estudaram os microrganismos causadores da toxoplasmose que circulam em Fernando de Noronha. Os protozoários em questão, de nome Toxoplasma gondii, são transmitidos aos humanos pelos gatos, mas também têm os ratos como hospedeiros intermediários.
Publicado em 2017 na revista Parasites & Vectors, o estudo mostrou que a cepa do Toxoplasma predominante no arquipélago é comum na Europa e na América do Norte, mas quase não ocorre no resto do Brasil. “A cepa talvez seja extremamente patogênica em humanos”, alertou Ricardo Dias, um dos dezesseis autores do artigo. “Mandar gatos de Noronha para o continente, além de imprudente, poderia introduzir um novo agente causador de doenças no Brasil.”
Num fim de tarde, Paulo Rogerio Mangini e Tatiane Micheletti foram conversar sobre o problema das espécies invasoras com Felipe Mendonça, a mais alta autoridade ambiental do arquipélago. Funcionário do ICMBio, desde 2016 Mendonça é o gestor do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha. Recebeu os pesquisadores do Instituto Tríade e dois ambientalistas da WWF-Brasil em seu gabinete, no 2º andar da sede do Instituto Chico Mendes.
Mangini falou ao gestor sobre sua preocupação com os gatos ferais. Disse que, no arquipélago, são todos pretos, talvez por fruto da seleção natural. “São animais agressivos, que defecam nas áreas em que circulam para marcar território e fogem com agilidade quando ameaçados”, disse. O pesquisador expôs a Mendonça algumas opções para seu controle e disse que a construção de um gatil para abrigar esses animais deveria ser considerada. “Nossa visão é de que o gato feral não pode estar no parque nacional de Fernando de Noronha”, arrematou.
Mendonça, um geógrafo bronzeado de 38 anos nascido em Volta Redonda, acolheu com empatia as colocações dos pesquisadores. Disse que está buscando fazer do combate às espécies invasoras uma prioridade da sua gestão e lamentou que não tivesse a autorização para eliminar os gatos ferais. Incapazes de se readequar ao convívio com humanos e animais domésticos, mas ao mesmo tempo protegidos pela lei, esses felinos representam um impasse para a administração da ilha.
Numa entrevista, dois dias depois, o diretor do parque nacional disse que está avaliando argumentos legais que justifiquem uma exceção à lei e liberem a eutanásia dos animais ferais. Não acenou, porém, com a perspectiva de medidas concretas de manejo dos gatos no horizonte próximo. “É importante ter uma comunicação franca e aberta com a comunidade local”, ponderou. “Mas nos preocupa a repercussão negativa que uma medida dessa possa gerar.”
Na avaliação de Ricardo Dias, a resistência da população é o que justifica a apatia dos gestores no trato da questão. “Nem o poder público nem apoiadores do terceiro setor querem efetivamente se envolver com a questão dos gatos, dadas as evidentes consequências negativas junto à opinião pública”, afirmou. Por discordar das soluções apoiadas pela Tríade para a questão dos gatos, que lhe parecem insuficientes para dar conta do problema, Dias se desligou do instituto há alguns meses. Para o veterinário, o impasse só será resolvido se a população local e os turistas tiverem consciência do risco que os gatos – mesmo os que têm alguma supervisão – representam para a fauna nativa e, em última instância, para a própria economia da ilha.
É certo que o tema mobiliza os ilhéus. Na palestra que Carlos Abrahão deu sobre os teiús em Fernando de Noronha, o público se animou quando ele mencionou os gatos. Um morador, dono de três felinos, pediu a palavra e contou que, embora gastasse um bom dinheiro com ração todo mês, os bichos vira e mexe capturavam mabuias. “Eles dão um bote certeiro”, disse. Mas o pesquisador gerou burburinho na plateia quando disse que os moradores também tinham sua parcela de responsabilidade na proliferação das espécies invasoras.
Durante a palestra, um gato passou algumas vezes diante do auditório, indiferente ao tema que estava sendo discutido ali. Ao final, quando o público já dispersava, James Russell disse achar importante que a comunidade discuta a questão dos felinos invasores. “Se as pessoas decidirem que essa é uma ilha para os teiús e os gatos, e não para as mabuias e aves marinhas, não há muito que possamos fazer.”
Na primeira quinzena de dezembro, Carlos Eduardo Verona voltou a Fernando de Noronha para coordenar mais uma etapa – a terceira – de distribuição de veneno pela ilha do Meio. Foi uma campanha mais enxuta, sem contagem dos ratos ou monitoramento de outras espécies. O pesquisador trabalhou ali com dois técnicos de uma empresa de controle de pragas sediada no Recife e contratada pelos pesquisadores para trazer o veneno e dar apoio na sua administração.
Dias depois de voltar, Verona disse-me por telefone que tinha ficado animado com o que viu. Muitas das estações de alimentação ainda tinham veneno colocado ali na campanha anterior, dois meses antes, e por isso não foi preciso espalhar todo o brodifacoum que eles haviam levado – gastaram só 40% do volume usado em outubro. “Na área central da ilha, onde concentramos os esforços, praticamente não houve consumo de veneno”, contou o pesquisador. “Isso é um sinal de que, naquela área, os ratos foram praticamente eliminados.”
Verona temia que, com a diminuição do número de roedores, os indivíduos sobreviventes, com menos competidores, se fartassem com os recursos disponíveis e desencadeassem uma explosão demográfica, mas isso não parece ter acontecido. “Não vimos nenhum rato nessa campanha.”
No começo de fevereiro, o grupo volta para a quarta e última campanha de administração de veneno. Os modelos à sua disposição projetam que, com mais essa dose, toda a população de ratos da ilha do Meio deve ser exterminada. A prova dos nove virá na última expedição prevista no projeto, em abril. Os pesquisadores espalharão mais uma vez as armadilhas que costumam usar para contar a população de roedores. Se tiverem tido êxito na empreitada – como apostam que terão –, todas elas ficarão intocadas.
No futuro, o grupo gostaria de fazer o monitoramento continuado da ilha do Meio e quem sabe repetir a experiência em alguma outra, talvez a ilha Rata, mas o financiamento para essa nova etapa ainda é incerto – o contrato com a WWF-Brasil acaba em maio. Verona explicou que, caso de fato consigam desratizar aquela ilha, terão que ficar sempre de olho para evitar a recolonização. “É um trabalho permanente.”
James Russell voltou para a Nova Zelândia no fim de outubro e não tem outra vinda a Fernando de Noronha em perspectiva. Em três temporadas no arquipélago, o biólogo colheu dados sobre ratos e outras espécies invasoras. Alunos que ele ajudou a treinar agora dominam ferramentas matemáticas para fazer modelos de populações e estão investigando as espécies locais, nativas e exóticas. O neozelandês considera que sua missão ali foi cumprida, mas resta ver como os dados levantados se traduzirão em ações de conservação promovidas pelo poder público.
“O trabalho que resta fazer não é mais científico”, disse Russell. Agora, trata-se de uma tarefa de gestão e ciências sociais. “Não quer dizer que vai ser fácil. É preciso dinheiro e apoio da comunidade”, continuou. “Mas fico otimista quando vejo as pessoas comprando camisetas de mabuias, que não havia à venda três anos atrás.” De volta a seu país, o biólogo disse que agora deve concentrar esforços no projeto para eliminar os mamíferos invasores na Nova Zelândia até 2050. Duas ilhas locais devem ser o alvo de sua próxima campanha de erradicação de ratos.
Quando entrevistei o neozelandês em outubro, quis saber dele se, apesar de todos os estragos causados por outros bichos, não poderíamos considerar o Homo sapiens a pior das espécies invasoras. Afinal, os humanos modernos surgiram no sul da África e conquistaram o globo nos últimos 125 mil anos, motivando com frequência a devastação ambiental dos territórios conquistados. Estamos em meio a um grande surto de extinção em massa de espécies – o sexto registrado na história da vida na Terra –, e o Homo sapiens é o grande responsável.
Ao ouvir a pergunta, Russell parou para pensar e suspirou. “Não podemos nos definir como invasores”, respondeu, categórico. “É verdade que temos o mesmo tipo de impacto: extinguimos espécies, transformamos ecossistemas, criamos muita mudança.” Mas não seria útil enquadrar os seres humanos nessa categoria, continuou, talvez porque tenhamos a cultura. “Não podemos treinar gatos e ratos para mudar seu comportamento, mas quem sabe possamos condicionar as pessoas a serem mais sustentáveis”, disse Russell, otimista.
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