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    Militares na Operação Verde Brasil 2 - Foto: Ministério da Defesa

questões de gastos públicos

Puxadinho militar com dinheiro da Amazônia

Com o dobro das verbas de órgãos ambientais e de pesquisa para combate ao desmatamento, Forças Armadas usam dinheiro para reformar quartéis

Marta Salomon | 05 out 2020_09h39
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Era uma  noite de fim de maio quando a chegada de militares chamou a atenção de moradores de Juara, no Mato Grosso – município onde a floresta deu lugar a um dos maiores rebanhos bovinos do país, e os habitantes estão mais acostumados a ver boi do que gente. Acompanhando o comboio, o comandante do 47o Batalhão de Infantaria explicou ao prefeito da cidade que 32 homens da base militar localizada em Coxim, no Mato Grosso do Sul  -a 1,2 mil km de distância -, haviam se deslocado para reforçar a então recém-lançada operação Verde Brasil 2, de combate ao desmatamento na Amazônia. O abate de floresta continuou crescendo nos meses seguintes, mas o dinheiro da operação já bancou a reforma dos telhados, a pintura das paredes e troca de revestimentos, pisos, portas e esquadrias do 47º Batalhão de Infantaria, distante de Juara e fora dos limites da Amazônia Legal.

Iniciada em meados de maio e prorrogada até 6 de novembro, a operação Verde Brasil 2, de Garantia da Lei e da Ordem, obteve autorização para gastar nesses seis meses 418,6 milhões de reais com a presença das Forças Armadas na Amazônia. O valor corresponde a mais que o dobro do orçamento anual para combate ao desmatamento de órgãos ambientais e da verba para o monitoramento por satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), responsável pelos alertas e pela taxa oficial de desmatamento. As autorizações de gastos para ações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) somam 176,8 milhões de reais, de janeiro a dezembro. Para a Verde Brasil 2, o Ministério da Defesa conta, para o período de menos de seis meses, com um valor 136% maior.

Desde que as Forças Armadas entraram em campo na Amazônia, as áreas de alerta de desmatamento do Inpe cresceram de 834 km² em maio para 1.043 km² em junho e 1.659 km² em julho. Em agosto, os alertas somaram 1.359 km². O total acumulado entre agosto do ano passado e julho deste ano, período de coleta da taxa anual do desmatamento, será mais um recorde na década, a ser anunciado nos próximos meses. Estimativas preliminares indicam uma taxa mais de três vezes maior do que a meta estabelecida pela Política Nacional sobre Mudança do Clima para 2020, de 3,9 mil km².  Os focos de queimadas e incêndios detectados pelos satélites do Inpe entre janeiro e setembro também ultrapassam os números de 2019 para esse mesmo período.

Uma análise dos gastos registrados pelo Tesouro Nacional mostra que o dinheiro da operação financiou reformas de instalações militares além do 47o Batalhão de Infantaria, embora essa tenha custado mais caro aos cofres públicos. Foram mais de 600 mil reais em gastos já reservados (os chamados empenhos) com a revisão geral dos telhados do batalhão de Coxim (MS), contratada numa empresa do interior de São Paulo. “O serviço não tem nada a ver com o combate ao desmatamento, e quem pode falar é o Batalhão”, disse ao telefone a responsável pelas licitações da empresa, a KJ Indústria e Comércio de Embalagens Ltda.

A troca de portas e esquadrias de madeira, vidro e alumínio consumiu mais 545 mil reais. As portas de madeira devem ser “padrão mogno”, árvore cuja comercialização alimentou a devastação da Amazônia e, por isso, foi proibida, ou curupixá. Documentos lançados no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) registram a exigência da cor vermelha e “tinta premium” para a pintura. A reforma prevê ainda a troca dos pisos – por porcelanato – e do revestimento de paredes. Até 24 de setembro, o 47º Batalhão havia registrado despesas de 2,1 milhões de reais na conta da Verde Brasil 2. 

Procurado pela piauí, o 47º Batalhão de Infantaria informou que participou da operação com o deslocamento para Juara de 141 militares durante a primeira fase do projeto, que durou um mês, até 26 de junho. Em outubro, mais 55 militares participarão da Verde Brasil 2. Localizadas no Mato Grosso do Sul, as instalações abrigaram, por período de um a três dias, um total de 460 militares durante a operação – o que, para os responsáveis, justificaria a reforma:  “Os recursos advindos dessa Operação estão proporcionando uma revitalização de todo o patrimônio público sob a responsabilidade desse batalhão, particularmente nos seus bens imóveis que possuem 45 anos de existência. Essas manutenções já foram iniciadas com perspectivas de término a partir de 31 de dezembro de 2020.”

 

Outra unidade do Exército que usou dinheiro da operação Verde Brasil 2 para reformar as instalações foi o 44o Batalhão de Infantaria Motorizado, em Cuiabá, dentro da área da Amazônia Legal. O quartel contratou a troca do telhado, além da reforma das instalações elétricas e pintura nova. As despesas lançadas em setembro ultrapassaram 1,2 milhão de reais, de acordo com registros no sistema do Tesouro Nacional.  Questionado pela piauí desde a semana passada, o Ministério da Defesa, embora tenha solicitado por duas vezes mais prazo para responder, não o fez e não explicou em que as reformas contribuem no combate ao desmatamento.

Dentro e fora da Amazônia Legal, unidades das Forças Armadas aproveitaram o dinheiro destinado à Verde Brasil 2 para pintar paredes. Em julho, o Centro de Intendência da Marinha em Ladário, cidade do Mato Grosso do Sul, comprou mais de seiscentos galões de tinta, nas cores branco gelo e neve, para as instalações. O Centro de Intendência da Marinha em Manaus contratou em agosto a recarga de mais de cem extintores de incêndio – imprestáveis no combate à queima da floresta.  Em agosto, o Inpe registrou 39.253 focos de incêndio na Amazônia Legal, o maior número na década para esse mês. Em setembro, foram 50,6 mil focos de incêndio, o maior número do ano.

Não só reformas de quartéis explicam os gastos da Verde Brasil 2. Só em agosto, o Centro de Inteligência do Exército contratou empresas por mais de 1,5 milhão de reais em gastos sigilosos. Nesse caso, os documentos lançados no sistema do Tesouro Nacional não registram os nomes das empresas nem os motivos dos gastos, informações “protegidas por sigilo”.

Também em agosto, o Centro de Aquisições Específicas do Comando da Aeronáutica lançou despesas de 5,7 milhões de reais com a manutenção de aeronaves. A compra de peças de aeronaves mobilizou a Comissão do Exército Brasileiro em Washington, ao custo de 1 milhão de reais, igualmente lançado na conta da Verde Brasil 2.

Mas foi em setembro que os gastos da operação dispararam, sobretudo por conta da compra de combustível por 22,5 milhões de reais pelo Centro de Obtenção da Marinha no Rio de Janeiro, isoladamente a maior despesa da Verde Brasil 2. Foram mais de 6,4 milhões de litros de diesel marinho e diesel especial, 100 mil litros de querosene de aviação e mais 55 mil litros de gasolina e óleo diesel rodoviário. Os documentos lançados no sistema do Tesouro contêm uma observação, de que se trata de um “destaque de crédito”, termo usado, no jargão orçamentário, para deslocamento de verbas de sua destinação original – no caso, a Verde Brasil 2. Questionado sobre essa possível mudança de destinação de verbas, o Ministério da Defesa também não respondeu. Tampouco apresentou um planejamento dos gastos com a operação.

Essa compra de combustíveis foi superada em valor dias depois pela contratação pela Comissão Aeronáutica Brasileira na Europa de suporte logístico para a frota de aeronaves, um negócio de 42,5 milhões de reais, registrado em 30 de setembro.

No início de julho, com menos de dois meses de existência, a Verde Brasil 2 já havia comprometido para gasto (de novo, os empenhos) mais do que o Inpe em nove meses. Ainda assim, o vice-presidente Hamilton Mourão, no comando do Conselho Nacional da Amazônia Legal, reclamava da falta de verbas. No dia 10, o general declarou a jornalistas encarregados da cobertura do Palácio do Planalto que as Forças Armadas não haviam recebido “um centavo” para combater o desmatamento. Uma rápida consulta ao sistema do Tesouro Nacional mostraria que não era verdade. Mas, dias depois, o presidente Jair Bolsonaro mandou ao Congresso projeto de lei pedindo autorização para mais 410 milhões de reais de gastos na operação, que se somariam aos 8,6 milhões de gastos autorizados anteriormente.

A proposta pegou carona no quadro de excepcionalidades aberto com o enfrentamento da pandemia da Covid-19, como notou o parecer do relator Jader Barbalho (MDB-PA). “A utilização de recursos do superávit financeiro de 2019 tem impacto negativo nos resultados fiscais da União. No entanto, em virtude do reconhecimento da ocorrência de estado de calamidade pública no país, a União está dispensada do atingimento dos resultados fiscais previstos.” Antes do final de agosto, com o apoio público de Mourão, o crédito extra estava aprovado pelo Congresso.

A presença das Forças Armadas na Amazônia vai continuar por mais tempo, anunciou o general, em reunião do Conselho da Amazônia realizada em julho. Ofício encaminhado ao ministro da Economia, Paulo Guedes, em agosto, informava planos de prorrogar o combate ao desmatamento por militares até dezembro de 2022, quando termina o mandato do presidente Jair Bolsonaro.

O cronograma de ações prevê, para outubro de 2021, a “efetividade” no combate ao desmatamento e às queimadas. O documento fala em reduzir o abate da floresta “aos níveis 2016-2019”. Nesse período, segundo a medição do Inpe, houve um desmatamento médio de 8,1 mil km², algo como a desaparição de florestas equivalente a cinco vezes o tamanho do município de São Paulo, a cada ano.

Essa meta equivale, ainda, a uma área 80% maior do que a desmatada em 2012. Nessa época, o país recebia aplausos na comunidade internacional pela contribuição para conter o aquecimento global. E não o contrário.

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