"Cuba, como disse certa vez Cristóvão Colombo, é o lugar mais lindo da Terra. Mas sua história é pesada demais para uma ilha, e muitas vezes ela parece um lugar triste e soturno" FOTO: SERGIO ALFARO ROMERO
Cuba com passaporte
Os moradores da ilha diante da maior liberdade de viajar
Gary Indiana | Edição 81, Junho 2013
Os acontecimentos distantes têm uma qualidade abstrata, até mesmo oculta, em Cuba, como coisas apenas vislumbradas através de um denso nevoeiro. Em junho do ano passado, o Granma, jornal do Partido Comunista cubano, noticiou a morte de Whitney Houston com quatro meses de atraso, como se fosse um segredo de Estado subitamente liberado para divulgação, numa edição que, fora isso, não trazia mais nada que se possa chamar de notícia. (O Granma publica muitas estatísticas, documentos federais e municipais, decretos, reportagens “de interesse humano” e receitas de carne de porco. Notícias não são o seu forte.) O jornal vinha mantendo seus leitores a par dos últimos desdobramentos da atividade granjeira em Holguín, e publicando as memórias de Fidel Castro.
Só avistei Castro uma vez, doze anos atrás, num comício patriótico no Malecón: era a inauguração de uma nova estátua de José Martí. A nova réplica de Martí apontava um dedo acusador para a Flórida e trazia nos braços o menino repatriado Elián González. (“O que você está fazendo aqui?”, perguntei a um amigo cubano que encontrei por lá. “Vindo aqui, a gente tem a manhã de folga no trabalho”, respondeu ele. “E ainda ganha um sanduíche e uma camiseta de graça.”) Castro não falou para os presentes; o discurso de fundo foi feito por uma jovem cubana que me pareceu uma bandeirante de uniforme verde.
Em seguida, a estátua de Martí migrou para uma ilha no meio da rua em frente ao posto de gasolina Cupet-Cimex, na calle 15; originalmente, esteve plantada ao pé da colina onde se ergue o Hotel Nacional. Pelo menos é o que eu acho. Não tenho certeza. Passei boa parte de 2012 em Havana escrevendo as minhas memórias, e o fato de eu não ter certeza só reforça a impressão desalentadora que eu tive enquanto escrevia, de que a memória nunca ajuda ninguém.
Luis (meu compañero, digamos assim) tinha acabado de se mudar para uma casa nova em Cerro, invadida por homens que passavam o dia inteiro arrancando pedaços de gesso e fios enferrujados das paredes, trocando telhas e canos, enquanto a irmã, a mãe e o pai de Luis viviam nos aposentos devastados. Luis dormia na minha casa, mas precisava sair todo dia de manhã para ir tomar conta dos operários. Quando queríamos sair à noite, ligávamos para Miguel, chofer de um táxi pirata que atende a qualquer hora. Se quiséssemos seguir para algum outro lugar, tornávamos a chamar Miguel, para não sermos incomodados. Quando não há jeito e precisamos andar pela rua, Luis sempre caminha alguns metros à minha frente.
Não é bem visto que cubanos se enturmem com gente de fora como eu, e a polícia frequentemente pede para ver a carteira de identidade, acusando-os às vezes de “molestar” estrangeiros. Apesar do predomínio de cubanos de cor, a polícia mostra que também é racista, e Luis é bastante preto. Fomos parados várias vezes pela polícia no ano passado. Uma vez, detiveram Luis por sete horas. Em todas as ocasiões ele estava comigo, ou com seu amigo Leo, de Montreal. E de qualquer maneira, é da conta de quem? As coisas ficaram um pouco mais fáceis nos últimos anos, mas todo mundo sabe que as mudanças sociais para valer só vão acontecer depois da morte de Fidel. Luis nunca foi formalmente acusado, mas chegaram a fazer uma anotação em sua carteira de identidade. Foram necessários 300 dólares em suborno para conseguir apagá-la.
Quando decidimos ir encontrar Angel, “o pequenino”, que é surdo-mudo e tem um olho azul e o outro castanho, a mãe dele nos disse que ele tinha ido para Pinar del Río, passar os feriados com uma tia. Resolvemos ir para lá também, mas quando voltamos à casa dele para pegar o endereço da tia antes de sairmos de viagem, descobrimos que ele já tinha voltado. Quando lhe perguntei o porquê, ele fez o gesto de quem empurra alguma coisa impossível de comer.
Angel é uma criatura diferente de outros surdos-mudos que conheço em Havana, todos pertencentes à mesma gangue. Essa gangue se desloca por um submundo de batedores de carteira, assaltantes, ladrões de bolsas, receptadores, arrombadores e informantes. Os sordomudos coletam informações para pequenos criminosos mais ousados vigiando os apartamentos alugados para turistas, as chamadas casas particulares, ou correndo para a polícia, até mesmo para o Exército, com as informações obtidas. São famosos por chantagear as pessoas de quem não gostam e que por acaso estejam alugando um apartamento sem registro, dirigindo um táxi sem licença ou operando câmbio no paralelo; chantageiam também os diplomatas e funcionários do governo que contratam garotos de programa.
Em Havana, quase todo mundo faz alguma coisa ligeiramente ilegal praticamente o tempo todo, seja por dinheiro ou por conveniência, e muitas vezes as penas para transgressões ridículas são de um rigor inacreditável. As câmeras de telefone celular são uma ferramenta onipresente dos profissionais da extorsão.
Quando um sordomudo descobre alguma coisa, os outros ficam sabendo de tudo dali a um instante telepático, se ele ou ela quiser que a notícia corra: onde uma pessoa mora, aonde vai, com quem fala, com quem dorme, o que gosta de fazer na cama, que país emitiu seu passaporte, quem são seus amigos.
Se a gangue põe uma pessoa em sua mira, ela está perdida. Eles a assediam extorquindo bebidas, maços de cigarro, uma corrida de táxi até sua casa, persistindo ao mesmo tempo em sua vigilância silenciosa e constante – foi só com os sordomudos de Havana que já me senti como o Sebastian Venable, de De Repente no Último Verão. O que não é uma sensação nada agradável. Uma noite, fui seguido até em casa por um bando de sordomudos embriagados e precisei atirar-lhes restos de comida da varanda para conseguir que fossem embora.
No verão passado, tentei arregimentar alguns deles para a encenação de uma peça em linguagem de sinais. Eu descreveria essa minha experiência como uma tentativa de organizar um bando de gatos, se já não tivesse obtido algum sucesso em arrebanhar gatos na vida. Com os surdos-mudos, nada. Eles se perdiam tentando encontrar a porta de entrada do cemitério Colón, coisa realmente difícil. Apesar disso, em sua colmeia no centro de Havana eles sabem de tudo que acontece.
A área em torno do Capitólio, dos hotéis de turismo e do Parque Central vive repleta de rapazes à procura de outros homens com quem fazer sexo. Os contatos se travam de maneira furtiva, e são rapidamente transferidos para locais privados. A homossexualidade em si não é considerada oficialmente desonrosa, e deixou de ser passível de punição muitos anos atrás, fato tristemente omitido, faz pouco tempo, pelo filme Antes do Anoitecer, de Julian Schnabel, uma representação bastante fiel, mas anacrônica, da perseguição aos gays cubanos no início da década de 70.
De lá para cá, o próprio Fidel divulgou vários mea-culpa sobre o machismo e a homofobia dos primeiros anos da Revolução; e graças principalmente à filha de Raúl Castro, Mariela, diretora do Centro Nacional Cubano para a Educação Sexual, os direitos LGBT avançaram muitíssimo em Cuba, mais até, em nível nacional, que nos Estados Unidos. Um projeto legalizando as uniões entre pessoas do mesmo sexo faz parte da legislação a ser examinada no ano corrente, e a ser seguido por uma lei aprovando o casamento gay, com o endosso de Raúl Castro. Cirurgias gratuitas de mudança de sexo estão disponíveis na ilha desde 2008, como parte do sistema de assistência universal de saúde.
Voltei a Nova York um dia após o Ano-Novo. Depois de Havana, a cidade sempre me dá a impressão de um mausoléu de cupins. Nada nunca acontece em Havana, mas sempre que estou em Nova York acredito que alguma coisa vai acontecer e não vou estar lá para presenciar. Comecei imediatamente a sentir falta do Malecón às três da manhã e dos pelicanos mergulhando na baía. Alimento várias famílias de gatos à noite na calle G, e senti falta deles também, bem como dos morcegos que atravessam voando a luz branca de sódio do lampião da minha esquina. Senti falta da sensação epidérmica de estar numa cena de crime que sempre toma conta de mim na arena de boxe Kid Chocolate, onde os marginais mais pobres vagueiam até a meia-noite antes de tomar o ônibus para o Malecón.
Estava curioso para saber se a reforma da migração que entrou em vigor no dia 14 de janeiro tinha provocado algum impacto dramático na ilha. Não é o tipo de coisa que eu possa perguntar a Luis pelo telefone. O inglês dele e o meu espanhol são igualmente deficientes; e nossas conversas são quase sempre telegráficas devido ao custo altíssimo do lado dele; além disso, a ligação é sempre incerta e cheia de ruídos.
Antes da reforma da migração, os cidadãos cubanos precisavam de permissão oficial, na forma da chamada tarjeta blanca, o “cartão branco”, para viajar ao exterior. Que nem era tão restritiva quanto se diz. Entre 2000 e 2012, 99,4% dos pedidos de cartão branco foram aprovados, e 941 953 cubanos viajaram para o estrangeiro: 12% decidiram não voltar, o que tanto pode ser muito como nem tanto assim. Agora, qualquer cubano com uma passagem aérea e um visto de entrada em outro país deve poder viajar, inclusive os membros das elites profissionais que até então sofriam restrições.
Houve uma previsível chuva antecipada de posts de Yoani Sánchez, a dissidente-mor do Huffington Post, anunciando seus planos de alçar voo – a menos que fosse fisicamente detida na pista por Fidel Castro e surrada por seus esbirros! – para coletar os muitos troféus que lhe foram concedidos por sua denúncia dos malfeitos do regime e que ela nunca pôde receber. Yoani afirmou que filas homéricas se formaram diante de todas as repartições cubanas que concediam passaportes; uma amiga que mora a um quarteirão de uma delas, em Havana, contou-me que não viu nada nem de longe parecido com isso.
Os posts de Yoani Sánchez trazem uma bizarra visão espelhada, em modo exortativo, da prosa pesada do Granma, sugerindo um tipo de dissidente de gestos exemplares capaz de se atirar debaixo de um tanque parado, caso não encontre nenhum em movimento. Mas muitas vezes é possível acompanhar os apagões, os shows e outros acontecimentos comuns da vida de Havana frequentando a página dela na internet, dando sempre o devido desconto da tendência a atribuir cada buraco no asfalto ou ruptura de cano de esgoto a alguma conspiração estatal.
Luis é corretor de imóveis. (Mas devo assinalar que o conceito de “bem imóvel” é de uso recente em Cuba, e que qualquer imagem evocada pela palavra “corretor” não se parece com ele.) Em dezembro, contou-me que alguns dos seus clientes vinham trocando casas e apartamentos por pilhas de dinheiro, preparando-se para cair fora de Cuba depois do 14 de janeiro. Aonde estavam indo, ele não tinha ideia. Quando lhes perguntou, eles também não souberam responder.
Não conheço ninguém que queria deixar Cuba principalmente por motivos políticos, e sim econômicos. Hoje em dia, os opositores do governo cubano querem ficar: no geral, a sociedade está caminhando numa direção vantajosa para eles, por mais que, instintivamente, continuem tendendo a denunciar qualquer mudança como um ardil diabólico do governo. Um bom número de corações cubanos vive há tempos uma profunda nostalgia dos tempos do mafioso Meyer Lansky e de Batista – a que podiam ter dado ampla vazão cruzando o estreito da Flórida e indo morar na versão mafiosa da Williamsburg colonial, se a coragem não lhes faltasse.
Como alguns cubanos querem emigrar e poucos têm recursos suficientes para pagar uma viagem internacional – o que é comum em qualquer país do dito Terceiro Mundo –, os países para os quais podem cogitar se mudar tendem a examinar cada pedido de visto com a mesma seletividade que Cuba exercia na emissão de seus cartões brancos.
O México, logo ali ao lado, destino mais acessível a um legítimo turista cubano, não vê os viajantes cubanos com bons olhos, por um motivo mais que compreensível: os mexicanos sem visto que atravessam a fronteira dos Estados Unidos são deportados no momento da captura, enquanto qualquer cubano que ponha um “pé seco” em território norte-americano é tratado como refugiado político, candidato automático ao status de residente legal. A política do “pé molhado, pé seco” significa que os cubanos apreendidos no mar são levados de volta para Cuba, mas os que conseguem chegar a terra podem ficar. Passando pelo México, não precisariam sequer molhar os pés.
Trata-se de uma política idiota, a começar pelo nome infantil, mas toda a política norte-americana em relação a Cuba tem sido estúpida e rancorosa desde a Revolução Cubana. A maneira como são encarados os cidadãos americanos que viajam a Cuba é tão cretina que mesmo as pessoas encarregadas da execução dessas medidas têm dificuldade de se manter sérias quando precisam explicá-las. Cada uma das medidas que reforçam o embargo comercial (a Lei Torricelli, a Lei Helms-Burton etc.), impostas ao Congresso em Washington pelos lobbies cubanos, levou as nações que não têm uma vendeta em curso com Cuba – todos os outros países do mundo, de Israel à China – a aproveitarem a oportunidade expandindo seus acordos comerciais com a ilha, na contramão dos interesses americanos em cuja defesa o bloqueio foi inicialmente criado.
Diante da situação cada vez menos repressiva desde que Fidel entregou o poder a seu irmão Raúl em 2006, é improvável que essa reforma vá provocar um estouro dos cubanos na direção dos aeroportos. Mas se a história pode nos servir de indicação, a política americana de boas-vindas ao “pé seco” está fadada à extinção.
Sempre que grandes contingentes de cubanos partiram para os Estados Unidos no passado, sua chegada (ou não chegada) produziu efeitos calamitosos nos dois países. Centenas de cubanos se afogaram no Estreito da Flórida em 1965, depois de zarpar do porto de Camarioca, com as bênçãos do governo cubano, em embarcações improvisadas que naufragaram. Os chamados voos da liberdade, resultado de um acordo entre Lyndon Johnson e Fidel para atenuar o problema dos afogamentos, trouxeram um influxo imenso de mão de obra não especializada para o sul da Flórida e Nova Jersey, ao mesmo tempo que drenavam recursos profissionais e técnicos da ilha.
Os tumultuados desembarques do Êxodo de Mariel custaram a Bill Clinton sua reeleição ao governo do estado do Arkansas em 1980; as consequências funestas desse imenso movimento migratório para o sul da Flórida se encontram bem ilustradas no filme Scarface. A última migração em massa passivamente sancionada pelos Estados Unidos, em 1994, produziu muito poucos afogamentos, e portanto milhares de novos refugiados econômicos, não especialmente bem-vindos. E causou a suspensão temporária, por um Clinton contrariado, do “direito automático de asilo” previsto na Lei de Ajuste Cubano de 1966. Aposto que o escritório que cuida dos interesses norte-americanos em Havana já reduziu o número de horas reservadas às entrevistas com candidatos a visto.
O primeiro êxodo pós-Revolução, logo depois da fuga de Batista com o tesouro nacional cubano no dia de Ano-Novo de 1959, resultou na calamidade que Allen Dulles, diretor da CIA, chamou de “problema do despejo de lixo”, envolvendo um vasto quadro de ex-policiais e torturadores de Batista. Esse fogoso núcleo de fanáticos incluía Orlando Bosch e Luis Posada Carriles – dois terroristas, nos termos de qualquer definição confiável –, e controlou o sul da Flórida por décadas a fio, exercendo a corrupção generalizada, a intimidação e uma violência de audácia chocante, patrocinada em momentos diversos pela CIA, pela família fabricante do rum Bacardi e pela vasta fortuna, adquirida por meios escusos, do capo exilado Jorge Mas Canosa, desde a época da invasão da Baía dos Porcos em 1961 até a morte de Mas Canosa em 1997.
Graças a seus lobbies em Washington, principalmente a hoje rachada Fundação Nacional Cubano-Americana, os cubanos de Miami mantiveram de pé o bloqueio por mais de cinquenta anos, sabotando toda e qualquer iniciativa no sentido de uma détente cubano-americana e cultivando uma hostilidade institucionalizada e sistemática contra o governo legal de Cuba, por meio da compra e da intimidação da maioria do Congresso americano.
No inverno de 1999–2000, porém, a queda de braço de seis meses entre o Departamento de Justiça norte-americano e os primos de Elián González [1] em Miami, um pessoal muito loco agindo in loco parentis, permitiu aos americanos uma visão prolongada, tardia e assustadora da maneira como atuava o lobby dos exilados. E a maioria não gostou do que viu.
A saga de Elián também trouxe para os lares americanos imagens de tevê sobre a vida cotidiana de Cuba, junto com a surpreendente revelação de que os cubanos comuns não se viam como residentes do Arquipélago Gulag. Ainda assim, os entendidos em política externa acreditam que os laços próximos que unem os negócios da dinastia Bush a Mas Canosa, a começar pela importante perda sofrida pela família Bush em seus investimentos no açúcar cubano depois da reforma agrária da Revolução, bem poderiam ter provocado outra invasão americana de Cuba no governo de George W. Bush, não fosse ele desviado no caminho por outra vendeta familiar, dessa vez contra Saddam Hussein.
A primeira geração de chefões da Little Havana de Miami está morrendo de velhice; seus descendentes têm menos interesse em explodir aviões comerciais ou propugnar a devolução de casas e usinas de açúcar expropriadas cinquenta anos atrás. A vitória de Obama na Flórida, na disputa pela reeleição, mostrou que os lobbies cubanos já não são indispensáveis para garantir a vitória no estado, em eleições nacionais. Apesar disso tudo, a política americana em relação a Cuba permanece atolada no ressentimento produzido pelo fracasso da invasão da Baía dos Porcos, na paranoia que ainda resta da Crise dos Mísseis, e numa visão de Cuba como propriedade que vem de antes ainda da Revolução Americana.
Fazendo um reconhecimento do porto de Guantánamo em 1741, ao lado do almirante britânico Edward Vernon, durante a chamada Guerra do Asiento entre Inglaterra e Espanha – também conhecida como a Guerra da Orelha de Jenkins –, o meio-irmão de George Washington, Lawrence, concluiu que Cuba era o lugar ideal para a criação de uma 14ª colônia americana.
Todos os presidentes americanos, desde Jefferson, sonharam em anexar a ilha, fosse para monopolizar o tráfico de escravos e a navegação pelo Golfo do México ou para alterar a composição racial da ilha por meio da colonização branca. Na época dos Compromissos do Missouri, em 1820, proprietários de escravos do Sul se empenharam pela incorporação de Cuba sob a forma de dois estados escravistas separados, ambição frustrada pela Guerra Civil Americana e pela 1ª Guerra de Independência de Cuba, que durou dez anos (1868–78) e acabou abolindo a escravatura.
Cuba se transformou numa colônia americana de facto no governo de William McKinley, depois da Guerra Hispano-Americana. A Emenda Platt, de 1901, definia a “soberania” cubana em termos que cediam a Washington o controle sobre as forças militares, os acordos de comércio, a infraestrutura e a maior parte da agricultura da ilha. De algum modo, sempre foi impossível, para qualquer governo americano, lidar com Cuba – antes ou depois da Revolução – como uma nação independente em vez de um feudo de empresas americanas, e cujas propriedades foram nacionalizadas depois que a Shell, a Standard Oil e a Texaco se recusaram a processar em suas refinarias cubanas 300 mil toneladas desesperadamente necessárias de petróleo cru soviético, em 1960.
A grande imprensa americana – não só os órgãos revanchistas de Murdoch, o Wall Street Journal e a Fox News – descreve instintivamente Cuba como uma “ditadura stalinista” ou um campo de prisioneiros flutuante, pondo no “fracasso do socialismo” a culpa pela economia hesitante e incerta, a escassez esporádica de artigos de consumo e a infraestrutura decrépita do país.
As imensas transformações estruturais recentes na sociedade cubana – a posse privada de imóveis e negócios, as joint ventures entre empresas privadas e parceiros estrangeiros, o afrouxamento progressivo do controle sobre a expressão pública e o acesso à internet – não foram noticiadas nos Estados Unidos, ou foram retratadas como meras “mudanças cosméticas”. O foco sempre esteve em Fidel Castro como o tipo de ditador que a América geralmente patrocina no “mundo em desenvolvimento”, cuidando de enviar bilhões de dólares para contas em bancos suíços como seguro contra o inevitável golpe de Estado que os há de derrubar.
A evocação costumeira de uma facção brutal e cleptocrática de comunistas que se fartam de caviar enquanto se congratulam felizes ante o sofrimento de um povo escravizado não corresponde a absolutamente nada em Cuba, mas continua a ser a narrativa preferida pelos americanos. Nos tempos recentes, vem sendo ouvida com menos frequência em Washington – e vale lembrar o quanto é difícil equacionar a retórica inesgotável sobre os direitos humanos com a operação de um campo de tortura no único trecho de território cubano controlado pelos Estados Unidos.
Cuba, como disse Cristóvão Colombo, é o lugar mais lindo da Terra. Mas sua história é pesada demais para uma ilha, e muitas vezes ela parece um lugar triste e soturno. Sei de cubanos que podem ir para onde queiram, mas gostam da vida que levam em Cuba e preferem ficar lá até o fim. Sei de outros que querem mudar de país mas nunca irão, e de outros ainda que não querem ir embora, mas acham que precisam, pois caso contrário a única vida que têm nunca vai dar em nada. Costumo dizer a eles que, a meu ver, não iriam preferir muito o lugar onde eu vivo. Sempre me perguntam como eu sei. E sempre respondo que não sei.
[1] Aos 6 anos, Elián González foi encontrado pela Guarda Costeira dos Estados Unidos depois que sua mãe morreu no naufrágio de uma lancha com refugiados cubanos, em 1999. Em Miami, um tio-avô reivindicou a guarda do menino, mas a Justiça americana reconheceu o direito à custódia do pai de Elián, que ficara em Cuba. Apoiado pela comunidade exilada, o tio-avô se recusou a entregar o menino, que foi resgatado pela polícia e devolvido ao pai.
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