Na visão dos moradores da favela, o que aconteceu naquela noite não foi uma operação policial normal. Foi um revide, um ato de vingança do Bope contra a morte de um companheiro de farda; todos pagaram pela morte do sargento ILUSTRAÇÃO: PEDRO FRANZ_2013
Os invisíveis
A noite de terror, os mortos e os sobreviventes da Maré depois da operação do Bope
Consuelo Dieguez | Edição 83, Agosto 2013
Por volta das onze da noite do dia 24 de junho, Cláudio Duarte Rodrigues e sua mulher, Nilzete, voltavam para casa, no Parque União, uma das favelas do Complexo da Maré, que margeia a avenida Brasil, principal via de acesso ao Centro do Rio de Janeiro. Motorista de uma van que transporta passageiros do Norte Shopping para o Complexo, Cláudio tivera um dia atípico. Por causa de uma manifestação marcada para as cinco da tarde, em Bonsucesso, do outro lado da avenida, o movimento havia caído. Preocupado com que a passeata acabasse em confronto, ele ligou para a mulher e avisou que iria buscá-la à saída do trabalho – uma empresa de ônibus da região, na qual ela é faxineira – às dez da noite. Ao passarem em frente à favela Nova Holanda, ao lado do Parque União, avistaram um grande tumulto. Pela movimentação de carros, logo perceberam que se tratava de uma ação policial. “Vamos sair logo daqui que o bicho tá pegando”, Nilzete falou para o marido.
As ruas do Parque União estavam desertas por causa da confusão na Nova Holanda. Cláudio entrou na favela com todas as luzes da van acesas, de modo a evitar que fossem confundidos com a polícia ou com bandidos. Diminuiu a velocidade para passar entre duas barras de ferro colocadas na rua pelos traficantes, que servem para dificultar a circulação de viaturas na área. Foi então que um tiro estilhaçou o vidro de trás do veículo. Nilzete se atirou no chão da caminhonete e gritou para o marido acelerar. Em seguida outro tiro, e mais outro. Nilzete sentiu a van perder velocidade. Nesse momento, uma nova bala atravessou o vidro a seu lado, espalhando estilhaços sobre os dois. Ela voltou a gritar: “Acelera, eles vão nos matar.” Viu então Cláudio levantar a camisa ensanguentada, abrir a porta e avisar, enquanto caía no chão, com um fio de voz: “Eu já fui atingido.”
Nilzete é uma mulher diminuta. Mede 1,50 metro e tem o corpo franzino. Seus cabelos são negros, cacheados e compridos. De longe, pode ser confundida com uma criança. Desesperada ao ver o marido ferido, ela saiu do carro. Olhou para a rua escura e deserta e se deparou com o Caveirão – o blindado, semelhante a um tanque de guerra, do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope. Com os braços levantados, correu em direção ao veículo gritando: “Ajudem pelo amor de Deus, somos trabalhadores, vocês atingiram meu marido.” Parou na frente do Caveirão esperando que dali saísse algum policial. Não houve reação. Nilzete permaneceu alguns instantes em frente ao blindado, até ser tomada pelo medo. Então, lentamente, sempre com as mãos para cima, se encostou na parede das casas e voltou, andando de lado, para junto da van. Deu-se conta do risco que estava correndo. Agachou-se ao lado do marido e começou a gritar por socorro. Logo, moradores apareceram nas portas. Fizeram uma roda em volta dela e do marido, num gesto instintivo de proteção. Um vizinho colocou Cláudio em seu carro, um Gol branco, e partiu com o casal para o hospital.
A passeata que seguiria pela pista lateral da avenida Brasil tomou forma por volta das seis da tarde. Como nas demais manifestações que sacudiram o país, aquela havia começado em paz, embora tornasse ainda mais caótico o sempre tumultuado trânsito da via. Por volta das sete e meia da noite, trombadinhas se juntaram a um grupo de viciados em crack, que costumam transitar feito zumbis entre os canteiros da avenida Brasil, e iniciaram um arrastão. Bolsas, carteiras e sacolas foram arrancadas dos manifestantes. Houve pânico e a polícia, que até então apenas acompanhava de perto a manifestação, correu atrás dos ladrões. Em fuga, o grupo, estimado em cerca de vinte pessoas, atravessou a passarela e entrou na favela Nova Holanda, misturando-se aos moradores. Os policiais que faziam a perseguição pediram o auxílio do Batalhão de Choque. Ao chegar à entrada da favela, o Choque achou mais prudente chamar o Bope. Toda a movimentação era acompanhada por soldados da Força Nacional, já de prontidão na avenida em preparação para a visita do papa Francisco.
Eram oito da noite quando um pequeno efetivo do Bope entrou pela rua Teixeira Ribeiro, a principal artéria da favela. Àquela hora, as ruas da Nova Holanda estavam apinhadas de gente. Os bares estavam cheios, as barracas de feira atendiam moradores que compravam frutas e legumes na volta para casa. Lojas, salão de beleza, barbearias, padarias, casas lotéricas, lan houses, tudo estava aberto. Crianças brincavam, mães passeavam com bebês entre ruas estreitas. Nada disso impediu que os policiais fossem recebidos à bala por traficantes armados com fuzis. O sargento Ednelson Jerônimo dos Santos Silva, de 42 anos, que comandava a operação, foi baleado na cabeça e morreu na hora. Sua morte deixou os policiais em choque. Revoltados, os homens da tropa de elite da polícia voltaram à favela uma hora depois, dessa vez com um efetivo muito maior. Iriam, em tese, tentar prender o assassino do sargento. Mas o que inicialmente seria apenas uma perseguição a batedores de carteira se transformou numa operação de guerra. Até o começo da manhã do dia seguinte, um sem-número de casas da Nova Holanda e das favelas do entorno na Maré foram invadidas pelo Bope sem mandado de busca. Dezenas de moradores ficaram feridos. Dez pessoas morreram, incluindo o sargento Ednelson dos Santos.
“O que aconteceu naquela noite não pode ser considerado uma operação policial em busca de um assassino que eles não tinham noção de quem era. Não foi uma ação planejada. Aquilo foi um revide, um ato de vingança do Bope contra a morte do companheiro de farda”, disse Ubirajara Carvalho, o Bira, fotógrafo profissional de 42 anos, morador da favela. Ele ouviu tiros a madrugada inteira. “Foi uma noite de terror que vitimou muita gente e traumatizou os moradores. Todos pagaram pela morte do sargento.”
O Complexo da Maré é formado por dezesseis favelas, onde hoje habitam 140 mil pessoas. As primeiras casas começaram a surgir em 1936, junto com o início das obras de construção da avenida Brasil. A via foi inaugurada em 1946, e os trabalhadores que participaram das obras acabaram se instalando ali definitivamente. Nove das dezesseis comunidades foram estimuladas por políticas de remoção de outras áreas patrocinadas pelo Estado. Uma de suas favelas, a Vila do João, criada em 1982, foi batizada com esse nome em homenagem ao último presidente da ditadura militar, o general João Batista Figueiredo.
A chegada do Bope fez com que as pessoas corressem em pânico e se espalhassem pela favela em busca de abrigo. Com Robson Guimarães não foi diferente. Ele é pedreiro e constrói casas na Maré. Passou o dia trabalhando numa obra e voltou para casa no fim da tarde. Fez um lanche com a mulher, Célia, com quem é casado há 26 anos, e a filha Carolyne, de 14 anos, cujo nome ele traz tatuado no braço esquerdo. Evangélico da Igreja Nova Vida, no braço direito Guimarães tatuou uma imagem de Cristo. Por volta das nove, ele estava na rua Principal, próxima à sua casa, conversando com amigos. Ao ouvir os tiros, o grupo se dispersou. Robson correu para a casa da mãe, na mesma rua, onde vivem sua avó, de 78 anos, sua irmã, o cunhado e um sobrinho de 16 anos. Ao entrar, ele viu o garoto na varanda de cima, espiando o tiroteio. Subiu a escada e puxou o sobrinho para dentro de casa, repreendendo-o: “Você está louco? Quer levar um tiro?” Quando voltou para fechar a porta da sacada, foi atingido por uma bala de fuzil. O artefato bateu primeiro na parede, ricocheteou e perfurou-lhe o rim, o baço e o pulmão, indo se alojar na costela. Antes de perder os sentidos, ele ainda ouviu os gritos da mãe e da avó. O cunhado o arrastou pela escada, deixando um rastro de sangue, e o levou até a porta de casa, em busca de socorro.
Carmen Onofre, de 41 anos, é uma mulher morena, troncudinha e falante, que trabalha como agente comunitária. Ela chegou à Maré pouco depois do início do arrastão na avenida Brasil. Logo na entrada da favela, Carmen parou num bar e assistiu pela televisão à confusão do outro lado da avenida. Achou que era mais seguro ir logo para casa. Ela mora na parte térrea de um sobrado de três andares numa das principais ruas da Nova Holanda. Sua casa se resume a três cômodos minúsculos. A sala, que faz as vezes de quarto, a cozinha e o banheiro. Não tardou para que começasse o tiroteio entre o Bope e os traficantes. As balas zuniam sem cessar muito próximas de sua casa. Apavorada, ela se encolheu num canto da sala. Ao ouvir os gritos dos moradores que corriam pelas ruas tentando se proteger do tiroteio, saiu do estado de torpor e abriu a porta. Sua casa logo ficou lotada de gente que tentava se abrigar. “Eu não conhecia a maioria daquelas pessoas. Mas não podia deixá-las na rua no meio do tiroteio”, contou. Por um longo tempo, homens, mulheres e crianças se espremeram no pequeno espaço da casa de Carmen. Ninguém falava nada. Só se ouviam a respiração uns dos outros encolhidos no chão e os tiros do lado de fora.
Com o passar das horas, a violência recrudesceu. Na perseguição aos traficantes, o Caveirão seguiu das favelas Parque Maré e Nova Holanda para a Parque União. Depois de acertar a van na qual estavam Cláudio e Nilzete, o blindado entrou atirando na rua Ari Leão, que dá acesso à avenida Brasil. O garçom Eraldo Santos da Silva, um paraibano de 35 anos, que servia as mesas no bar Paradinha Um, uma construção acanhada com as paredes pintadas de verde e laranja, não teve tempo de se proteger e foi alvejado no rosto. Os clientes, entre eles uma grávida, além de um outro garçom, se jogaram no chão. O blindado prosseguiu atirando até o final da rua. Deu meia-volta e retornou pelo mesmo caminho. Passou duas vezes pelo corpo de Eraldo estendido na porta do bar. Na terceira vez, os policiais pararam o Caveirão. Entraram chutando mesas e xingando os clientes encolhidos num canto da parede. Aos berros, mandaram que todos entrassem no banheiro. Depois, apagaram as luzes. De dentro do banheiro, era possível ouvi-los dizer: “Olha a merda que a gente fez.” Ao ser alvejado, Eraldo usava um cordão e anéis e trazia no bolso uma carteira com documentos e dinheiro. Os policiais enrolaram um pano na sua cabeça e transportaram o corpo para dentro do Caveirão. Recolheram balas na rua (inclusive a que atingiu Eraldo, encontrada no bar) e foram embora. A carteira do garçom foi deixada no chão, sem o dinheiro.
O torneiro mecânico Cezar Antônio de Oliveira, de 45 anos, tem uma pequena serralheria, a Deus Proverá, na rua Tatajuba, na favela Parque Maré. O comércio à sua volta é variado. O bazar Simone, em frente, vende uma infinidade de quinquilharias para o lar; o Atelier Paty vende camisolas sensuais. Há também três salões de beleza, alguns bares e igrejas evangélicas de nomes variados. A Tatajuba estava toda enfeitada com bandeirolas por causa das festas juninas. O aspecto festivo, porém, convivia com muitas paredes perfuradas à bala, resultado de confrontos entre a polícia e os traficantes, e de guerras entre facções rivais do tráfico.
Na tarde do dia 24, quando começou o arrastão na avenida Brasil, Cezar foi atrás do filho, José Everton Silva de Oliveira, conhecido pelos moradores como Betinho. Com 21 anos, Betinho tinha uma posição de destaque no tráfico do Parque Maré. Cezar pediu ao filho para que desse um basta na confusão. Estava certo de que a turma do arrastão respeitaria as ordens dos traficantes. Betinho disse ao pai que não precisava ficar preocupado e podia voltar a trabalhar. Cezar obedeceu, mas voltou com o receio de que, se o tumulto do outro lado da avenida aumentasse, a polícia seria atraída para a Maré.
Quando o Bope entrou na favela atirando, Cezar foi novamente atrás do filho. Aflito, queria convencer o rapaz a se esconder e evitar qualquer confronto com os policiais. Não conseguiu encontrá-lo. Voltou para casa angustiado e se trancou com a mulher e as duas filhas adolescentes. Betinho era filho de seu primeiro casamento. Cezar e a ex-mulher vieram de Natal, no Rio Grande do Norte, com o filho ainda criança, e se instalaram na Maré.
À uma e meia da manhã, com o tiroteio atingindo dimensões de guerra civil, o torneiro mecânico não conseguiu mais ficar na cama. Pegou a moto e saiu em busca de Betinho. Dessa vez o encontrou. O filho coordenava a ação dos traficantes por meio de um rádio. O pai novamente insistiu para que ele se escondesse. O rapaz colocou o pai na garupa da moto e o levou para casa. No caminho, ouviu pelo rádio que um traficante de seu grupo havia se ferido. Deixou o pai e seguiu para socorrê-lo. Ao tentar arrastar o colega de tráfico, também foi baleado pela polícia. Morreu na hora. Seu corpo foi levado pelos policiais antes que fosse feita a perícia.
Na rua Teixeira Ribeiro, na Nova Holanda, outro grupo do Bope arrombava a porta de um morador e subia as escadas. Encontraram o filho e o genro da dona da casa, paralisados de terror. Um policial ameaçou: “Se eu achar qualquer coisa, eu vou matar vocês.” Os dois ficaram sob a mira das armas. Os policiais subiram para a laje da casa e montaram ali uma espécie de quartel-general, de onde atiravam. Ao notar a polícia, Roberto Rodrigues, um usuário de drogas, tentou se esconder debaixo de um carro. Levou um tiro e morreu. Durante a madrugada, mais três homens seriam atingidos e mortos, e levados para fora da favela pela polícia. Boa parte das ruas e das casas da Nova Holanda, do Parque Maré e do Parque União ficou no escuro porque policiais e traficantes destruíram à bala postes e transformadores de luz.
O Bope não deu trégua durante a madrugada. Na rua São Jorge, no Parque Maré, um grupo de policiais entrou atirando. Pararam na frente de um sobrado azul e, aos pontapés, arrombaram a porta. Das casas vizinhas, os moradores podiam ouvir os gritos que vinham dali, mas ninguém ousou chegar às janelas com medo de ser atingido. Aterrorizada, uma mulher vizinha ao sobrado teve uma crise de diarreia e engatinhou até o banheiro. Aos poucos, os gritos se transformaram em gemidos, até silenciarem por completo.
Por causa do confronto, muitos moradores não conseguiram voltar para casa e passaram a noite ao relento, na entrada das favelas. Os tiros só cessaram de vez por volta das onze da manhã, quando os policiais decidiram se retirar para ir ao enterro do sargento morto. O fotógrafo Bira diz ter ouvido um deles intimidando um grupo de moradores ao sair: “À noite nós voltamos. Se preparem porque o terror está só começando.”
Eliana Sousa Silva é uma assistente social articulada e bastante agitada. Filha de imigrantes nordestinos, ela foi criada na favela Nova Holanda. Formou-se em letras e fez seu doutorado em serviço social e políticas públicas na PUC. Nunca abandonou o vínculo com a favela e divide seu tempo entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro, na qual é professora, e a Redes de Desenvolvimento da Maré, uma ONG que oferece cursos aos moradores, que ela criou e comanda. Eliana é uma das figuras mais respeitadas da Nova Holanda. Há poucos anos, mudou-se de lá, mas vai ao local quase diariamente.
Eliana foi uma das primeiras a chegar na manhã do dia 25. Conseguiu entrar na favela às sete da manhã. Foi logo cercada por moradores que queriam lhe relatar os abusos da noite. Junto com outras ONGs que trabalham na Maré, Eliana começou a levantar os casos. A Polícia Civil, a Polícia Militar e a Defensoria Pública do estado foram chamadas para atestar os estragos. Pela primeira vez, mortes cometidas pela Polícia Militar na favela foram periciadas pela Polícia Civil. “As investigações desses abusos só são feitas quando elas ocorrem fora das áreas pobres”, disse Eliana, numa tarde de julho, durante uma conversa na sede da sua ONG. “O morador da favela é destituído de direitos. É como se a violência policial sobre eles fosse não só permitida, mas esperada.”
Quando os peritos chegaram, as cenas em que a maior parte das pessoas tinha sido morta já haviam sido desfeitas. As cápsulas das balas tinham sido recolhidas e os corpos levados da favela. Tal procedimento, corriqueiro quando a polícia age nas favelas, é ilegal. Isso acontecendo, é mais difícil para os peritos saberem se as pessoas morreram em confronto ou foram executadas.
Havia, porém, um local que continuava intacto: o sobrado azul, de onde se escutaram os gritos e gemidos na madrugada. Pela manhã, os moradores viram que a porta continuava aberta. Quando os peritos chegaram, encontraram uma cena sinistra. Havia sangue por toda a casa. Três homens estavam mortos, crivados de balas e com sinais de tortura. Eram Ademir da Silva Lima, de 29 anos; André Gomes de Souza Junior, de 16; e Fabricio Souza Gomes, de 26. Os três tinham passagem pela polícia por furto e tráfico. O inquérito corre em sigilo e o delegado que apura o caso ainda investiga se eles reagiram ou não à chegada do Bope.
Na manhã do dia 25, Henrique Guelber, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública, foi contatado pelo Observatório das Favelas, uma outra ONG com sede na Maré. Nervosos, os integrantes da ONG, cuja sede estava sem luz por causa do tiroteio, pediram que ele acompanhasse os parentes dos mortos à delegacia. Além do garçom Eraldo e dos três homens do sobrado, uma lista de mais cinco mortos foi apresentada: Jonatha Farias da Silva, de 16 anos; Carlos Eduardo Silva Pinto, de 23; José Everton, o Betinho; Renato da Silva, de 39 anos; e Roberto Rodrigues. Três deles eram desconhecidos dos moradores.
Numa conversa, no final de julho, Guelber deu sua opinião sobre o caso, depois de ressalvar que o inquérito está em andamento. “Em nenhum lugar do mundo se pode ver com naturalidade esse número de óbitos”, avaliou. Perguntei-lhe se os mortos tinham antecedentes criminais. O defensor respondeu que essa não é a questão principal. “Houve pessoas que morreram nas ruas, outras em casebres. Eram pessoas humildes, algumas com antecedentes criminais. A ficha criminal de alguém não é justificativa para sua morte”, disse. “Não há dúvida de que o tráfico é violento. Mas a polícia tem obrigação de ser melhor do que o tráfico.”
Uma semana após o episódio na Maré, quinze associações de moradores de favelas, junto com ONGs e outras entidades envolvidas em causas humanitárias, organizaram uma manifestação contra as violações e as mortes, inclusive a do sargento do Bope. “Não é mais aceitável a política militarizada da operação do estado nos territórios populares, como se esses locais fossem moradas de pessoas sem direitos”, dizia uma carta aberta à população. Mais de 5 mil pessoas compareceram ao ato na avenida Brasil. Incentivadas pelos professores da Redes da Maré, as crianças pintaram desenhos e dizeres em cartazes com os seus protestos. Num deles se lia: “Eu, Carlos, protesto: por matarem o meu avô, feito pelos traficantes; por ameaçarem meu tio, pelos policiais do Bope; por matarem a minha tia, feito pelos policiais do Bope.”
O comando da Polícia Militar decidiu investigar os abusos cometidos contra os moradores (as mortes estão sob a responsabilidade da Polícia Civil). Designou-se para a missão o coronel Ibis Silva Pereira, comandante da Academia de Formação de Oficiais da Polícia Militar. O coronel Ibis foge completamente ao estereótipo de um oficial de polícia. Formado em direito, com pós-graduação em filosofia contemporânea pela PUC do Rio, ele é um homem pequeno e magro, com cabelos completamente raspados em razão da calva pronunciada. Sua fala e seus gestos são mansos e contidos. Num começo de tarde, em meados de julho, ele estava na sala da Divisão de Integração Universidade–Comunidade, na UFRJ, onde Eliana Souza e Silva é diretora, para ouvir os depoimentos dos moradores da Maré sobre os episódios dos dias 24 e 25 de junho. O coronel preferiu ouvi-los ali, e não na favela, para que os depoentes se sentissem mais à vontade. Naquele dia, ele usava uma camiseta de malha rosa com gola azul-marinho e calça jeans. Trazia um cordão de prata no pescoço e anéis de osso nos dedos anulares.
A primeira a depor foi Nilzete Neves Rodrigues. Ela estava ansiosa para falar. “Já fiquei muito tempo calada. Agora quase mataram meu marido. O que mais pode acontecer? Temos que tomar coragem para denunciar”, disse, antes de entrar na sala onde o coronel Ibis a esperava. Usava um vestido de listras azul e branco, sandálias de salto alto e brincos. Narrou o episódio da van, de como chegou ao Hospital Federal de Bonsucesso, do esforço dos médicos para salvar o marido que ficou quase dez dias hospitalizado, depois de terem retirado a bala que lhe perfurou as costas. Desde que teve alta, Cláudio Rodrigues continuava em casa, sem condições de trabalhar, não apenas por causa do ferimento, mas também pelo trauma sofrido. Nilzete contou também ao coronel um outro episódio que a revoltou. Em maio, numa ação na favela, um policial a repreendeu “xingando todos os palavrões” porque ela estava na moto com o filho sem capacete. Ela reconheceu que estava errada, mas explicou ao policial que o tráfico obrigava os moradores a andar daquele jeito. Ele não se convenceu e ameaçou cortar o pneu da moto. “Eu disse que se ele fizesse aquilo eu o denunciaria ao Batalhão [o 22º Batalhão de Polícia Militar fica na entrada do Complexo da Maré]”, ela contou. O policial deu-se por satisfeito em esvaziá-los. “Eu acho que eles não precisam falar dessa forma com a gente, sempre gritando”, reclamou Nilzete para o coronel. “Eles nos tratam como se fôssemos lixo.”
O depoimento seguinte foi de Carmen Onofre. Ela também não se limitou aos episódios dos dias 24 e 25. Queixou-se de que os policiais usam uma chave mestra para invadir as casas dos moradores. “Eles abrem tudo quanto é porta. Acabam com as nossas fechaduras”, ela disse. Na sua pequena casa, já entraram quatro vezes. “Eles chegam nos chamando de piranha para baixo”, contou. “Aposto que tu é mulher de bandido. Onde é que ele está? Vou te fazer falar”, prosseguiu, imitando a fala de um policial.
Carmen é solteira e mora sozinha. Certa vez, fazia muito calor e ela estava dormindo só de calcinha quando os policiais entraram e arrancaram o lençol da cama. “Imagine o que é você estar dormindo e de repente se deparar com três policiais na sua frente levantando o seu lençol. Quero ver se eles têm coragem de fazer isso em algum apartamento na Zona Sul.”
Bira, o fotógrafo, também falou ao coronel. Disse que policiais do Bope forçaram dois garotos a fazer sexo oral um no outro após terem apreendido o celular de ambos com fotos da invasão. “Foi devastador para os garotos. Imagina uma situação traumática como essa num ambiente machista como o da favela”, disse. Além da noite do dia 24 de junho, ele relatou a violência de que foi vítima no dia 2 de maio. Bira é paraplégico e circula na favela em cadeira de rodas. Ajudava um colega italiano que fotografava a Nova Holanda quando foi avisado de que sua casa havia sido arrombada pela polícia. Foi para lá junto com o irmão. O cenário era de destruição. As comidas nas latas de mantimento foram espalhadas no chão. Seu computador foi quebrado e sua câmera jogada dentro do vaso sanitário.
O coronel Ibis ouviu as histórias durante horas. Disse ter ficado impressionado, mas não parecia animado com o resultado das investigações. “Poucos se dispõem a vir aqui denunciar. Todos têm muito medo. A comunidade tem mais de 50 anos e um histórico de violência difícil, duro”, ele explicou, sempre com a voz pausada. “Se esses abusos estão configurados da maneira com que foram relatados, é preciso repensar toda a lógica de atuação da polícia”, disse Ibis. Mantendo o tom de voz baixo, prosseguiu: “Não é razoável, racional, compreensível, no momento histórico que vivemos, com uma Constituição de 25 anos, e que tem o compromisso com a dignidade da pessoa humana, continuarmos convivendo com esse tipo de fato.” E completou: “Sou comandante de uma escola preparatória de oficiais e posso lhe garantir que em nenhum de nossos cursos há qualquer defesa de ações que desrespeitem os direitos, tanto os da população como os dos criminosos.”
Ibis Pereira acredita estar demonstrando que o modelo atual de combate ao tráfico está destinado ao fracasso. “É preciso discutir a questão das drogas de uma maneira menos preconceituosa. É preciso pensar essa questão privilegiando o prisma da prevenção, e não o viés penal.” Ele usa o cigarro como exemplo: “Nos últimos vinte anos, o número de fumantes tem caído sem que fumar seja crime”, disse.
O sociólogo Luiz Eduardo Soares é especialista em segurança pública. Foi secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro entre 1999 e 2000 na gestão de Anthony Garotinho e deixou o cargo rompido com o governador. Foi exonerado após ter denunciado a banda podre da polícia. Tempos depois, os alvos de suas denúncias foram presos, acusados de corrupção e envolvimento com o crime. Entre eles, o chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins. Como à época em que estava no governo, Soares segue pregando que o confronto não é a saída. “Os traficantes conhecem o território e usam a comunidade como escudo”, disse, durante uma conversa no final de julho, no escritório de sua casa, em São Conrado, Zona Sul do Rio.
O fundamental, sustentou Soares, é que a polícia tenha crédito. Que a população perceba que não vai haver jogo hipócrita de apreensão da droga que a seguir será revendida para outro traficante. “O morador quer que o traficante saia da favela. Mas não quer entregá-lo para ser morto”, disse o sociólogo. A seguir, acomodou-se na cadeira e inclinou o corpo para a frente. “É conversa fiada dizer que precisa haver incursão bélica. Como chegamos a essa situação absurda de territórios armados?”, questionou. E respondeu: “Só existe tráfico por causa da polícia. A polícia sempre foi sócia do tráfico, da boca de fumo. Se o consumidor sabe onde fica o ponto, o policial também sabe. Só funciona porque tem acordo com a polícia.”
O coronel Mario Sérgio Duarte mora em um apartamento no bairro do Grajaú, com a mulher, também oficial da PM, e um casal de filhos gêmeos de 2 anos. Numa noite, no final de julho, ele tentava conversar enquanto seu filho brincava de Homem-Aranha na sua frente, até ser retirado a contragosto da sala. Duarte foi comandante do Bope. O sargento Ednelson, morto na Maré, foi seu segurança particular.
Ele acredita que, se o sargento não tivesse morrido, a violência que veio a seguir não teria ocorrido. Ele diz, no entanto, que o Bope tinha que ter ido para a Nova Holanda depois do arrastão na avenida Brasil. “Era impossível que o Bope não fosse para lá. Naquele momento, o problema tinha que ser resolvido daquela forma. O que não podia ter acontecido era os traficantes atirarem. O Estado tem que poder entrar em qualquer território e eles têm que saber que a polícia está lá”, disse. E continuou: “Aquilo não é outro país, aquilo é um bairro da cidade.”
Antes de comandar o Bope, Mario Sérgio Duarte foi comandante do 22º Batalhão da Maré. Lembrou-se do período com amargura. “Em um ano e quatro meses eu enterrei quinze policiais”, contou. Perguntei-lhe se a morte do sargento justificava a forma com que o Bope atuou. “É muito fácil falar quando não se está lá dentro, com tiros vindos de todos os lados. Como saber o que traz ou não risco? Eles estavam entrando em um território completamente hostil”, justificou o coronel.
De qualquer forma, Duarte considera que o resultado da ação foi muito ruim para todos. “É claro que eu lamento as mortes. Além disso, o Complexo da Maré vai ser pacificado e um confronto como esse com a polícia é desastroso porque cria resistência à pacificação.” Para ele, o que diferencia as UPPs dessas outras ações da polícia é o apoio da população às primeiras.
A polícia do Rio está entre as mais violentas do mundo. Segundo dados coletados por Soares, de 2003 a 2012, houve 9 231 mortes provocadas por ações policiais no Rio de Janeiro. Para um estado com 15 milhões de habitantes e 55 mil policiais, somando-se os efetivos da Militar e da Civil, ocorrem cerca de mil mortes por ano. Nos últimos dois anos, as mortes anuais provocadas pela polícia no Rio de Janeiro caíram para 540, mas é ainda um percentual muito elevado. Nos Estados Unidos, com 300 milhões de habitantes e um histórico de violência policial, as mortes de civis em confronto com a polícia em todo o país não ultrapassam 350 por ano.
A criação das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, pelo governador Sérgio Cabral, de certa forma tenta mudar a lógica do enfrentamento. A prioridade passou a ser desarmar o tráfico, e não apreender drogas. Criou-se uma espécie de novo pacto com o crime. “Apesar de todas as críticas, já caminhamos muito no sentido de desarmar algumas áreas. A realidade nas favelas pacificadas é diferente da que existia cinco anos atrás, quando a incidência de crimes era muito maior”, disse o coronel Ibis.
O mês de junho de 2013 foi marcado por manifestações e revoltas em várias cidades do país. Os confrontos entre a polícia e a legião de insatisfeitos ganharam as manchetes dos jornais e extensa cobertura televisiva. Nas redes sociais, esse foi o grande assunto. A imprensa internacional também dedicou grande cobertura ao tema. Na maior parte dos casos, quem liderou e deu o tom da tomada das ruas foram grupos oriundos das camadas médias da sociedade. Protestavam contra o preço do transporte público, contra a corrupção em vários níveis, brandiam cartazes e palavras de ordem a favor de sistemas de saúde e educação mais dignos e eficientes.
O Rio acabou tendo um protagonismo um tanto diferente nesses episódios. Enquanto os protestos país afora iam minguando, as manifestações contra o governador Sérgio Cabral ganhavam corpo na orla carioca. Da final da Copa das Confederações à visita do papa à cidade, ao longo do mês de julho o noticiário político da capital fluminense orbitou em torno dos atos contra Cabral. A tragédia da Maré já havia ficado para trás. Noticiada no dia seguinte com algum destaque, a madrugada de terror à margem da avenida Brasil praticamente sumiu da pauta depois de 48 horas. Pode-se especular qual seria o comportamento da imprensa caso as dez mortes, incluindo a de um policial, tivessem ocorrido entre moradores da Zona Sul.
“Por que nós nos dispusemos a conviver com isso é o que talvez seja mais enigmático. Nós naturalizamos de tal maneira essa brutalidade que sequer temos a percepção de que é extraordinário conviver com essa situação”, disse o sociólogo Luiz Eduardo Soares.
Uma semana depois de colher os depoimentos dos moradores da Maré, o coronel Ibis Pereira estava no quartel da PM, no Centro da cidade, discutindo com o comando as estratégias da polícia para enfrentar os manifestantes.
Três andares abaixo da sala onde o coronel conversava, os praças circulavam pelo pátio. Ele olhou em direção à porta e refletiu: “Os policiais reproduzem uma sociedade violenta. A polícia integra um sistema de justiça criminal que replica a lógica da penalização. O Código Penal é dirigido para uma classe. É controle social. Essa coisa de falar de impunidade é uma grande bobagem. Nossas cadeias estão lotadas. Mas de quem?”
Ao contrário do que se costuma dizer, o Brasil não é o país da impunidade. O país tem a quarta população carcerária do mundo. Em 2013, havia 550 mil encarcerados em presídios brasileiros. Desses, em torno de 12 mil (ou 2,18%) cumprem pena por homicídio. Dois terços dos presos, 367 mil pessoas, foram encarcerados sob a acusação de tráfico de drogas ou crime contra o patrimônio.
Sem alterar o tom de voz, Ibis insistiu no seu ponto: “Uma bomba de gás lacrimogênio que estoura no Leblon tem muito mais efeito sobre a imprensa e o resto da sociedade do que dez cadáveres na Maré”, disse. Pela dimensão do que ocorreu nos dias 24 e 25, ele achava que a repercussão seria maior. “A cobertura foi estranha. Um policial e mais nove pessoas mortas. Não entendi por que não teve repercussão maior”, disse, e a seguir tentou uma explicação: “Há muito tempo essas mortes já se tornaram comuns. Fazem parte do que se espera. A sociedade raciocina da seguinte forma: eles vendem drogas, estão armados e o Estado vai combatê-los. A morte pelo enfrentamento é o que se espera. Dez pessoas mortas e a gente não é capaz de entender como horror.”
Ele acredita que a cobertura da mídia está ajudando a anestesiar a nossa sensibilidade. “Por isso a gente bate palma para o Tropa de Elite e glamoriza o capitão Nascimento. Entender como aquele psicopata virou herói brasileiro, a ponto de a plateia bater palmas quando ele tortura um usuário de drogas com um saco plástico na cabeça, é um caminho para se decifrar a violência policial. Talvez as pessoas esperem isso da polícia e até queiram isso. Desde que não seja na porta do seu apartamento. Se for na favela, tudo bem. A favela ainda é a senzala e a polícia é o capitão do mato. E o que mais me angustia é que não vejo saída para isso.”
Menos de um mês depois dos conflitos dos dias 24 e 25, a vida na Nova Holanda, no Parque Maré e no Parque União parecia ter voltado ao normal. Nas tardes em que passei por lá, o comércio estava aberto, as ruas fervilhavam de gente, carros, vans, motos e bicicletas congestionavam as vias estreitas. Em várias delas, o cheiro de churrasquinho e frango assado se misturava ao de maconha.
Traficantes, bastante jovens em sua maioria, vendiam maconha, cocaína e crack embalados em pacotes expostos sobre pequenas mesas montadas nas calçadas, junto ao comércio. Tinha-se a impressão de que eram barraquinhas de frutas ou de uma bugiganga qualquer, tamanha a naturalidade com que os moradores passavam por elas. Meninos aparentando 12 anos desfilavam em motos com cigarros de maconha na boca. Outros andavam com sinalizadores pendurados no pescoço para serem detonados em caso de chegada da polícia.
O pedreiro Robson Guimarães, que fora baleado na varanda da casa da mãe, já estava em sua casa, recuperando-se da cirurgia. A casa, um sobrado, estava arrumada com esmero. Toda a obra foi realizada por ele. Deitado na cama, Robson mostrou os curativos. Explicou que não pode fazer o exame de corpo de delito para ver a origem da bala porque ela está alojada na costela. “Os médicos disseram que não têm como tirá-la daí porque corro o risco de ficar paraplégico.” Como ele não paga o INSS, está em casa sem receber salário. Não sabe quando voltará a trabalhar. Reclamou de ter sido forçado a dar queixa na polícia. “Eu queria ter ficado quieto aqui. Não quero confusão. Não tenho raiva da polícia. A favela é uma maravilha”, disse ele, com resignação. Sua mulher, Célia, uma jovem morena de olhos verdes e cabelos encaracolados, me acompanhou pela rua. Ela tem uma visão diferente daquela do marido. Não vê a hora de ir embora da Maré. Contou que no dia em que Robson foi baleado ela estava em frente de casa conversando com as amigas. Viram o confronto entre os traficantes e a polícia na rua ao lado da sua. Foi o tempo de abrir a porta e se atirarem umas por cima das outras. “Outro dia minha filha me falou que um amigo de 12 anos entrou para o tráfico. Como ele, tem muitos. Eu não queria ver minha filha sendo criada num ambiente desses”, desabafou.
O serralheiro Cezar de Oliveira também acredita que na favela poucos conseguem ficar alheios ou não ser atingidos pela marginalidade. “Outro dia eu estava vendo um filme em que meu filho Betinho aparecia ainda criança. Vi os amiguinhos dele em volta e fiz minha matemática. De dez, um virou estudante, o outro trabalhador. Os outros oito entraram para o tráfico. Que futuro eles terão? O mesmo do meu filho”, disse, em tom de lamento.