Modelos que participavam de um concurso de beleza, na piscina do Hotel Glória, em 1953 FOTO: ACERVO JEAN MANZON
A ruína de Eike
Do Hotel Glória, que o ex-bilionário prometeu reformar, sobraram a fachada e pilhas de entulho
Mariana Filgueiras | Edição 85, Outubro 2013
Eram quase onze da manhã no dia 18 de setembro, uma quarta-feira ensolarada, quando começou um buzinaço em frente ao Hotel Glória, no Rio de Janeiro. O trânsito na rua do Russel estava encruado. Nenhum carro saía do lugar. Um taxista desceu para entender o que estava acontecendo, e percebeu que o problema era uma carreta com 6 metros de comprimento, abarrotada de entulhos, que tentava sair da garagem do antigo hotel. Como naquele trecho a rua já estreita se afunila ainda mais, o imenso veículo precisaria de um bom tempo para fazer a manobra e liberar o tráfego.
“Eike, seu m…!”, xingou o taxista, impaciente.
A baliza heroica levaria ainda vinte minutos. Quem estava ao volante não era o empresário Eike Batista, mas um dos seis operários que restaram dos cerca de 250 que chegaram a trabalhar na reforma do Hotel Glória, paralisada gradativamente desde o início da derrocada financeira do ex-bilionário.
Comprado por ele com alarde em 2008, para transformá-lo no “primeiro seis estrelas do Brasil”, e ficar pronto “a tempo da Copa”, o hotel fechou as portas no fim daquele ano. Em 2010, o BNDES liberou 146,5 milhões de reais do fundo ProCopa e teve início a reforma misteriosa. O projeto inicial, que teria uma torre de escritórios como edifício anexo, foi totalmente alterado no meio do caminho (corre entre ex-funcionários que Eike o teria considerado “muito clean”, e por isso contratou o designer americano Jeffrey Beers para refazer tudo). Detalhes do novo desenho só vieram a ser divulgados em abril de 2012, quando os custos da reforma já eram estimados em 300 milhões de reais. Enquanto isso, do canteiro de obras, só notícias trágicas: a demolição completa não pouparia azulejos e painéis históricos. Só a fachada foi mantida. Nem o charmoso Teatro Glória escapou.
“As obras não pararam só agora, não. O grosso, mesmo, já está parado há pelo menos um ano. O que eles fazem é fingir que estão fazendo alguma coisa, para não chamar a atenção”, comentou um morador do prédio 680, que fica ao lado, preferindo não se identificar.
O hotel, que seria rebatizado de Gloria Palace e teria como símbolo de excentricidade uma piscina com fundo transparente na cobertura, hoje está à venda por 225 milhões de reais – resultado da crise financeira que assolou o império de Eike Batista, e que fez o ex-magnata perder patrimônio e acumular dívidas. Do charmoso prédio neoclássico sobrou um gigantesco canteiro de obras em fase de desmanche. Os operários cuidam da remoção de entulhos, e uma equipe de três seguranças se reveza dia e noite na vigilância do local.
Sobrou também um bocado de indignação. O elefante branco é debatido em todas as reuniões da associação de moradores do bairro, que teme uma possível descaracterização do patrimônio histórico. As noivas do Outeiro da Glória, que usavam as suítes do hotel para se arrumar, estão possessas. O dono do Bar do Papagaio, que há trinta anos é vizinho do Glória, reclama que perdeu a freguesia.
“Antes, muitos funcionários do hotel vinham comer aqui”, contou o comerciante, que naquele dia servia dobradinha, num prato feito, a 13 reais. “Depois, vinha aquele batalhão de operários. Eles diziam que a comida do refeitório da obra era horrível, tinha gosto de estragada. Agora não vem mais ninguém de lá.”
O diretor do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU), Sydnei Menezes, lembrou que todo canteiro de obra tem uma licença de funcionamento, com prazo preestabelecido pela prefeitura, e, nesse período, não pode ficar abandonado. A Secretaria Municipal de Urbanismo confirma: a licença de Eike para o Hotel Glória expira no final de 2013.
“Estamos enviando um ofício ao Ministério Público para informar, o quanto antes, da ilegalidade de manter uma obra daquele porte completamente paralisada”, antecipou Sydnei, indignado. “Então é isso? Promete-se um novo hotel para a cidade e nada?”
E nada. São as opções usuais às promessas para a cidade que vai abrigar a Copa do Mundo no ano que vem: ou o casamento de orçamentos inflados com o atraso, ou nada. Foi assim com o Maracanã, com a Cidade das Artes, com a despoluição da Lagoa Rodrigo de Freitas. E, agora, com o Hotel Glória.
Corria o agitado ano de 1922, com a Semana de Arte Moderna, a fundação do Partido Comunista no Brasil, e o Hotel Glória foi inaugurado para receber os convidados estrangeiros das celebrações do Centenário da Independência. Projetado pelo arquiteto francês Joseph Gire, o mesmo do Copacabana Palace, tornou-se o primeiro prédio de concreto armado da América do Sul. Pela proximidade com a então sede do governo, o Palácio do Catete, passou a abrigar chefes de Estado. Jânio Quadros morou lá, assim como Getúlio Vargas e, bem depois, Fernando Collor de Mello.
Hospedaram-se no Glória personalidades como Albert Einstein, Maurice Béjart, Yuri Gagarin, Jane Fonda, Fidel Castro. Foi lá também que aconteceu o maior barraco carioca de 1954. A atriz Ava Gardner estava no Rio para divulgar o filme A Condessa Descalça e já tinha dado uma série de declarações polêmicas desde que desembarcara na cidade, atraindo toda a atenção da imprensa para si. Tomou um porre no hotel e quebrou tudo o que viu pela frente. “O animal mais belo do mundo”, segundo o cineasta Jean Cocteau, alegou não ter gostado da decoração do quarto de número 900. O gerente do Glória pediu que ela se retirasse dali, e a diva se transferiu para o Copacabana Palace, às duas da manhã, sem pagar a conta.
No Hotel Glória, eram muito famosos os concursos de beleza, como o “Rainha da Praia”, promovido pelo jornal Última Hora; as disputas de fantasias televisionadas (que aconteceram até o hotel fechar as portas, em 2008); e os bailes de debutantes, formaturas e Carnaval. O evento derradeiro do hotel foi o ensaio fotográfico em que a cantora Madonna conheceu o namorado Jesus Luz, em dezembro de 2008, à beira da piscina. Ela comentou que tinha gostado muito de um lustre que vira no corredor. Eike mandou tirar a peça do teto e a deu de presente à cantora.
Procurado para comentar a paralisação das obras de reforma do Hotel Glória e seus novos prazos de entrega, o Grupo EBX não respondeu às solicitações de entrevista. No início de setembro, foram desligados das empresas de Eike Batista os últimos cinquenta funcionários do setor de comunicação.
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