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    Adolescente que sofreu estupro coletivo numa favela do Rio em entrevista ao Fantástico

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Fatos e filmes – elo perdido

Raros filmes brasileiros em cartaz têm vínculos fortes com questões concretas contemporâneas

Eduardo Escorel | 02 jun 2016_18h13
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Sexta-feira passada (27/5) o canal HBO exibiu à tarde Terra fria (North Country), filme produzido pela Warner Bros Pictures, em 2005, baseado no livro Class Action: The Story of Lois Jenson and the Landmark Case That Changed Sexual Harassment Law, de Clara Bingham e Laura Leedy Gansler, sem edição brasileira. O livro trata do processo judicial movido, em 1988, por Lois Jenson contra a Eveleth Taconite Company, mineradora que opera no norte de Minnesota. Foi a primeira ação coletiva por abuso sexual nos Estados Unidos e resultou, dez anos depois, no pagamento de uma indenização de 3,5 milhões de dólares a 15 mulheres, na mudança da Lei de Abuso Sexual, além da empresa ter sido ordenada a educar seus funcionários sobre abuso sexual.

Depois de ampla difusão ocorrida na véspera pela internet, na manhã do dia da exibição de Terra fria pela HBO, a notícia do estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos, ocorrido na madrugada do domingo anterior (22/5) no Morro da Barão, na Praça Seca, Zona Oeste do Rio, chegou aos jornais impressos, com manchete de primeira página no Globo e longa matéria em página interna. O acaso aproximou o filme americano de 2005, baseado em caso real de abuso sexual, com a tragédia cotidiana, de 2016, refletida nas estatísticas do ano anterior que indicam a ocorrência de 705 estupros na Zona Oeste do Rio, e o total de 1610 em todo o município (dados publicados pelo Globo em 1/6).

Além da consternação causada pela violência cometida contra a adolescente, crime que, evidentemente, é mais grave e relevante do que quaisquer outras considerações que se possa fazer a respeito, quem por acaso tiver assistido a Terra fria não pode deixar de ter sentido a vitalidade que o chamado cinema de “denúncia social” muitas vezes preserva quando trata de questões sociais graves. Mesmo fazendo as devidas ressalvas quanto à glamourização usual de produções como Terra fria, persiste uma força subjacente, em especial em ocasiões como a de sexta-feira, na qual houve a improvável aproximação entre o filme americano e o estupro carioca.

A produção de 35 milhões de dólares, com um elenco estelar,  incluindo Charlize Theron no papel principal, reavivou a memória de vertentes possíveis e vigorosas do cinema, além do direito legítimo de ser uma forma de entretenimento – lidar com questões contemporâneas, dramatizando as mazelas do nosso tempo. Vertente da qual o cinema brasileiro, de forma geral, vem se mantendo distante.

Charlize Theron
Charlize Theron

No dia em que o estupro chegou aos jornais e Terra fria foi exibido na HBO, havia cerca de 14 filmes brasileiros em exibição no Rio. O número alto de títulos é enganoso, pois além de oferecerem poucas sessões por dia, todos juntos ocupavam percentual reduzido das salas, tomadas em sua grande maioria por Alice através do espelho, Angry Birds – o filme, Capitão América; guerra civil e X-Men: Apocalipse.

Além da presença discreta, apenas um ou outro desses filmes brasileiros em exibição têm vínculos mais fortes com questões concretas contemporâneas da sociedade brasileira. Nenhum ecoa, ainda que de forma indireta, a crise política e econômica que o país atravessa. Não é a toa que o cinema está praticamente ausente do oportuno levantamento das representações do estupro na arte brasileira, feito por André Miranda e Silvio Essinger no Globo de segunda-feira (30/5). A única referência ao cinema brasileiro feita na matéria é a Baixio das bestas (2006), de Cláudio Assis, no qual há o estupro coletivo de uma personagem, sequência controvertida, mas que ao menos na opinião de uma crítica “provoca e faz pensar ao mostrar um Brasil sujo e miserável, mas honesto,”

O que impede o cinema brasileiro de dedicar mais atenção a projetos de qualidade que tenham ressonância? Exceções de praxe à parte, é patente o desinteresse geral pela quase totalidade do que se produz. Nunca se investiu tantos recursos no setor quanto nos últimos anos e, no entanto, o resultado desse investimento é sofrível, desmentindo o lugar comum de que a qualidade deriva da quantidade. Ou seja, de que é preciso produzir muito para surgirem, de onde às vezes menos se espera, filmes bem sucedidos, tanto comercial quanto artisticamente, capazes de estabelecer elos em algum nível com a razão e o sentimento do público espectador.

Há pouco mais de um ano, em entrevista ao Globo, Paulo José declarou: “Parece que os diretores descobriram o macete de transformar um roteiro incipiente num filme medíocre, uma história banal conduzida por personagens igualmente banais. Há uma mistura ótima para o sucesso: atores e atrizes da TV fazendo caretas nas cenas de riso, vertendo lágrimas nas de emoção. A indigência aumenta quanto mais se quer captar uns trocados [através das leis de incentivo]. Não é um cinema honesto. Falo de modo geral. Ainda há quem faça cinema por necessidade de expressão, mas são poucos.”

Palavras que permanecem atuais.

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