O queniano Wainaina declarou publicamente que é gay no momento em que há uma onda de criminalização da homossexualidade na África FOTO: SVEN TORFINN_THE NEW YORK TIMES
Safári nas trevas
Um escritor sai do armário para entrar na história
Leandro Sarmatz | Edição 89, Fevereiro 2014
“Sou homossexual, mãe.” Foi assim que o escritor e jornalista Binyavanga Wainaina assumiu sua opção sexual em artigo publicado no último 19 de janeiro no site http://africasacountry.com. Dois dias depois, as portas do armário de Wainaina se escancararam globalmente quando o texto foi replicado pelo diário britânico The Guardian. Até aí, um comunicado de proporções bem pouco ou nada épicas. O queniano Wainaina, nascido em 1971, um nome respeitado dentro e fora da África, tem o direito de viver sua sexualidade da forma que mais lhe aprouver. Mas seu gesto teve uma poderosa conotação política. Nos últimos meses, diversos países africanos – como Uganda, Nigéria, Quênia e Camarões – endureceram ainda mais o tratamento dispensado a homossexuais, criando um clima de terror, desamparo e tristeza infinita (as agressões se tornaram cada vez mais comuns). A voz amplificada de um gay célebre e estimado nos círculos culturais tem ao menos o poder de fazer rodar pelo mundo o despautério africano.
Ao longo da semana de seu outing, a agitada conta do Twitter de Wainaina (@BinyavangaW), atualizada em média a cada duas horas durante a luz do dia, seria inundada por centenas de mensagens de apoio. Grande parte, a julgar pelos nomes e retratinhos expostos nos perfis, vinha de outros cidadãos africanos. E também de todos os quadrantes do vasto mundo anglófono. Gente ansiando por um canal de expressão, querendo falar e ser ouvida, algo comum em cenários repressivos. Com a diligência de um ativista, Wainaina replicava diversas mensagens, reverberava insatisfações, pontificava sobre a dura vida nos países do continente. Tentava, em suma, mostrar alguma esperança para aqueles que ainda habitam as zonas cinzentas da própria existência. “Eu sou, para qualquer um confuso ou em dúvida, um homossexual. Gay, e muito feliz”, tuitou.
Autor do elogiado One Day I Will Write About This Place [Um Dia Vou Escrever Sobre Este Lugar], a evocação de seus anos de formação em países como Quênia, Uganda e África do Sul, quando a ficção era seu único refúgio, Wainaina já havia demonstrado mipira, ou balls – colhões em suaíli e em inglês, as duas línguas oficiais do Quênia –, em 2007. Convidado naquele ano a discursar no Fórum Econômico Mundial na condição de “Jovem líder global”, recusou a honraria, com medo de se tornar estátua de si mesmo. Há galardões que podem ser paralisantes.
Melhor assim. Wainaina é um satirista. Parece desconfiar das boas intenções do establishment branco na abordagem de questões culturais, sociais e políticas do continente africano. Sabe que tudo, afinal, se resume ao Kurtz de O Coração das Trevas, de Conrad, ou a Eugene, o WASP [sigla em inglês para branco, anglo-saxão e protestante] que toma o rumo da África em busca da autenticidade perdida em Henderson, o Rei da Chuva, de Saul Bellow. Ficou célebre seu texto “How to Write About Africa” [Como escrever sobre a África], que saiu na edição 92 da Granta, no inverno de 2005, até hoje um dos mais divulgados na história daquela revista literária.
O artigo – sarcástico, impiedoso, deliciosamente desabusado – promovia um striptease da boa consciência ocidental, expondo as mais caras ilusões (ou deliberado autoengano) sobre a África, de uma forma que deixava livros como Orientalismo e Cultura e Imperialismo, de Edward Said, tão cerimoniosos em suas interpretações sobre o tema quanto uma audiência com o alto-comissário britânico na Basutolândia (atual Lesoto). Wainaina fazia picadinho de todas as abordagens a respeito do (perdão) “continente negro”. Em forma de ácido receituário, pregava coisas como “Sempre coloque no título palavras como ‘África’, ‘trevas’ ou ‘safári’”; “Para a capa de seu livro, nunca escolha a imagem de um africano bem ajustado, a menos que seja um ganhador do Nobel”, entre outras sugestões eivadas de venenosa ironia. Pior que ele tinha razão em tudo, ou quase. Fez um barulho tremendo. No YouTube é possível assistir a um filmete com o texto sendo recitado pelo ator Djimon Hounsou (Amistad; Diamante de Sangue). Dura apenas três minutos e dezesseis segundos. Concentra uma eternidade de clichês.
Wainaina, diretor do Centro Chinua Achebe para escritores e artistas africanos do Bard College, no estado de Nova York, voltaria ao tema em um texto de 2010 na revista Bidoun. Intitulado “How to Write About Africa II: The Revenge” [Como escrever sobre a África II: a vingança], explicaria que sua motivação para o primeiro artigo fora originada por um número da Granta dedicado à África, um amontoado de ideias feitas sobre o continente, sem que os africanos reais estivessem presentes, sendo apenas representados por homens com roupas cáqui. Escreveu imediatamente um longo e hidrófobo e-mail ao editor. Que para sua surpresa retornou sua mensagem, dizendo que aquele número da revista tinha sido produzido antes de ter assumido a redação e que no momento estava preparando uma nova edição sobre o continente. O queniano foi instado a colaborar, mas suas tentativas de escrever sobre Bob Geldof (o roqueiro irlandês que arquitetou o Live Aid, festival de música em benefício da África na década de 80) foram rechaçadas. Até que surgiu a ideia: que tal publicar, com a devida edição, seu longo e destemperado e-mail à redação? Pimba.
Na semana em que o texto sobre sua homossexualidade saiu, Binyavanga Wainaina completava 43 anos de idade. A comemoração de seu aniversário foi descrita pela imprensa africana como uma festa de debutante – ou coming-out party. Os amigos mais íntimos, claro, já sabiam. Vivendo atualmente em Nairóbi, a maior cidade do Quênia, o autor frequenta círculos relativamente arejados. Porém, a sombra da intolerância está lá. “A ideia de que não existe gay na cultura africana é uma mistura de puritanismo vitoriano legado pelas primeiras igrejas”, disse o autor numa entrevista ao site de notícias GlobalPost. Ou seja, de certa forma parece ser possível encontrar resquícios de colonialismo – como um espírito maligno das velhas histórias tribais que atemorizavam os brancos – a assombrar com suas trevas duradouras a mentalidade do continente africano.
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