Usando peças de Lego, o professor de língua inglesa Kevin Griffith e seu filho Sebastian, de onze anos, reconstruíram cenas do catatau caleidoscópico de David Foster Wallace FOTOS: KEVIN AND SEBASTIAN GRIFFITH
Graça infinita
A gente faz o que eles mandam a gente fazer. Eles dizem que aqui é Orgulho sem Bagulho
David Foster Wallace | Edição 98, Novembro 2014
Na noite seguinte ao piquenique gelado e meio constrangedor de celebração conjunta do Dia da Interdependência para a Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool de Enfield, da Phoenix House de Somerville e da tristeza que era a reabilitação juvenil Nova Escolha de Dorchester, a funcionária da Ennet Johnette Foltz levou Ken Erdedy e Kate Gompert com ela para uma Discussão para Novatos do NA em que o tema era sempre a maconha: como cada viciado da reunião tinha se arranjado problemas terríveis de vício da maconha já desde o primeiro baseado, ou como tinham ficado ligados a drogas mais pesadas e tinham tentado mudar para a erva para largar as drogas originais e mas aí tinham ficado com problemas ainda mais terríveis com a erva do que tinham com as coisas pesadas originais. Essa era supostamente a única reunião do NA da Grande Boston explicitamente devotada à maconha. Johnette Foltz disse que queria que Erdedy e Gompert vissem o quanto estavam completamente não isolados e não solitários em termos da Substância que tinha derrubado os dois.
Havia coisa de talvez duas dúzias de viciados novatos em recuperação ali na sacristia anecoica de uma igreja chique do que Erdedy imaginou só podia ser ou West Belmont ou East Waltham. As cadeiras estavam dispostas no tradicional círculo amplo do NA, sem mesas e com todo mundo equilibrando cinzeiros no colo e acidentalmente chutando copinhos de café. Todo mundo que levantava a mão concordava sobre as formas insidiosas com que a maconha tinha detonado seu corpo, mente e espírito: a maconha destrói lenta mas totalmente era o consenso. O pé balouçante de Ken Erdedy derrubou o seu café não uma mas duas vezes enquanto os NAs se revezavam para concordar sobre a pavorosa decadência psíquica que tinham suportado tanto durante a dependência ativa da maconha quanto durante a desintoxicação de maconha: o isolamento social, a lassidão angustiada e a hiperautoconsciência que então reforçava a antissocialidade e a angústia – a alienação emocional cada vez maior, a pobreza afetiva e depois a catalepsia emocional plena –, a análise obsessiva de tudo e finalmente a estase paralítica que resulta da análise obsessiva de todas as implicações possíveis tanto de levantar do sofá quanto de não levantar do sofá – e aí a dura via sintomática infinda da Abstinência de delta-9-tetra-hidrocanabinol: i. e. desintoxicação de ganja: a perda de apetite, a mania, a insônia, a fadiga crônica, os pesadelos, a impotência, a interrupção de ciclos menstruais e da lactação, a arritmia circadiana, os súbitos suores tipo-sauna, a confusão mental, os tremores motores finos, o excesso particularmente desagradável de produção de saliva – vários novatos ainda segurando copinhos institucionais de baba embaixo do queixo –, a angústia generalizada, os agouros, o pavor e a vergonha de sentir que nem os doutores nem os próprios nas das drogas pesadas tinham muita empatia ou compaixão pelo “viciado” derrubado pelo que todos achavam ser o barato mais modesto da mãe natureza, a Substância mais benigna que existia.
Reportagens apuradas com tempo largo e escritas com zelo para quem gosta de ler: piauí, dona do próprio nariz
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