Cléo está presente
Estudante consegue que a universidade a reconheça como mulher
Tiago Coelho | Edição 108, Setembro 2015
Cléo diz que é geminiana, que é de lua – e tem dias em que está mais emotiva. Foi só por isso, explicou, que não soube como reagir. Era época de provas, e a biblioteca da Pontifícia Universidade Católica, no Rio de Janeiro, estava cheia. Cléo solicitou um livro. No balcão de entrega, o atendente chamou em voz alta: “Cleber.” Ninguém respondeu. Sentada num canto da sala, Cléo se levantou, caminhou até o guichê e parou na frente do funcionário. O rapaz tornou a chamar o nome que Cléo deixou de usar aos 16 anos. Acostumada a afirmar o gênero com que se identifica “desde sempre”, naquele dia ela não estava preparada. Apresentou-se, pegou o livro e saiu, mas não sem antes perceber os burburinhos e olhares à volta: “É como se o brilho nos olhos das pessoas mudasse. Te olham diferente, sabe? Como se tivesse um destaque negativo sobre você.”
Aos 35 anos, não era a primeira vez que a moça negra, alta e comunicativa tinha de enfrentar aquele tipo de situação. Mas, na sala de aula, Cléo Oliveira vinha contando com o apoio dos professores desde que entrou para o curso de serviço social na PUC, universidade predileta da jeunesse dorée carioca. Bastava uma breve conversa em voz baixa, e os docentes riscavam o nome de batismo de Cléo da lista de chamada, escrevendo ao lado o nome social, a caneta. Houve pelo menos uma vez, é verdade, em que um professor de outro departamento foi convidado para dar uma aula no curso de Cléo – e ela teve de passar pelo desconforto de ter seu nome de registro chamado em público. Deixou o nome ecoar na sala uma, duas vezes. Uma ou outra pessoa a olhava de soslaio. Ficou em silêncio. Esperou a aula terminar, foi até a mesa do professor e pediu que ele por gentileza corrigisse seu nome.
Ela não queria que episódios como o da chamada ou o da biblioteca se repetissem. Mas tentar mudar isso de forma definitiva impunha um dilema à estudante. No trajeto da Gávea, na Zona Sul do Rio, até o Irajá, bairro da Zona Norte onde mora, Cléo tinha tempo para refletir sobre o que fazer. Sabia que lutar pela substituição de seu nome nos registros da universidade traria uma exposição indesejada. “Eu sou uma mulher e sempre briguei para ser vista como tal”, ela disse. Encarar a burocracia da PUC atrairia sobre ela uma atenção que ela não buscava, traria para o primeiro plano sua condição de transgênero.
Quando menina, nos anos 80, Cléo viu uma reportagem no Fantástico sobre a modelo Roberta Close. Encontrou seu lugar no mundo: “Eu vi aquilo e pensei: ‘Eu sou assim, sou igual a ela.’ Eu sabia que era uma mulher, e percebi que daria para corrigir o erro.”
Poucos anos mais tarde, a vontade de usar roupas femininas e de se afirmar como mulher provocou desentendimentos entre a adolescente e a família. Aos 17 anos, saiu de casa pela primeira vez. Foi morar com Paty, uma transexual que se prostituía. Paty chamava Cléo para lhe fazer companhia na rua, queria bater papo com a amiga enquanto fazia ponto. Numa conversa recente, Cléo, que nunca se prostituiu, disse entender uma das razões, além da financeira, para muitas transexuais e travestis decidirem viver do sexo. “Durante meia hora de prazer, o homem a idolatra, a coloca em um pedestal. Mas a partir do momento em que ele goza, isso acaba e as mulheres trans voltam a se tornar o temor, a ameaça à virtude e à dignidade do homem. Muitas tentam compensar a invisibilidade e a exclusão da sociedade nessa meia hora.”
A vida nas ruas era, de toda forma, o oposto do que Cléo desejava. “Aquilo não me atraía, não tinha o glamour do feminino com que sempre sonhei.”
Cléo procurou a família, que impôs uma condição para que ela retornasse a casa: deveria se vestir como um homem. Ela aceitou. Decidiu que conquistaria o respeito dos pais aos poucos. Voltou a estudar, fez cursinho pré-vestibular e ganhou uma bolsa de estudos na PUC. Pouco a pouco, fez com que a família se acostumasse a sua feminilidade. Vestia roupas mais femininas, não fazia questão de esconder as calcinhas na gaveta, se maquiava. “Quando todos perceberam, já estavam convivendo com uma mulher.”
Faz três anos que Cléo namora Mailson Holtz, ourives e estudante de administração. Uma relação às claras, com direito a fotos românticas nas redes sociais. Ela sonha em ter uma casa, um cachorro e um gato. Já próxima de concluir a faculdade, trabalha como assistente social na creche Casa do Joel, no subúrbio. Numa manhã em julho, ajudava nos preparos para uma tardia festa de São João. As crianças, depois do almoço, dormiam profundamente. A mãe do pequeno Yuri chegou para buscá-lo por volta do meio-dia. Cléo acordou o menino com cuidado e o levou pelas mãos até o portão. Antes de ir embora, Yuri acenou as mãozinhas pequenas para a “tia” Cléo.
Já passava das dez da noite, os pilotis da PUC ficavam cada vez mais vazios, o campus da Gávea estava silencioso. Dava para ouvir os sons do rio Rainha, que corta a universidade, e dos insetos no bosque. Cléo contou que pouco depois daquele dia ruim na biblioteca, no final do ano passado, preferiu recorrer à burocracia da PUC – e pagar o preço da exposição – a ser novamente chamada por um nome em que não se reconhece.
Um funcionário da Diretoria de Admissão e Registro (DAR) disse que lamentava muito, mas não era possível fazer a alteração de seu nome nos documentos e registros acadêmicos. Ela pediu para falar com o diretor. “Só posso mudar com decisão judicial”, ele disse. Passo seguinte: Departamento de Serviço Social. Dali para o vice-reitor, dele para a assessoria jurídica e, por fim, o assunto chegou à reitoria. A resposta do reitor, o padre jesuíta Josafá Carlos de Siqueira, foi: “Façam a mudança.”
A mudança foi feita. O nome social de Cléo passou a constar de todos os seus documentos na universidade, embora ainda tenha que vir acompanhado do nome com que está oficialmente registrada na instituição. Tramita na Justiça, a passos lentos, um processo para alterar de vez sua carteira de identidade.
O sucesso de seus esforços, na PUC, tinha um preço. “Depois que essa história do meu nome foi divulgada, passei a ser Cléo, a trans. O rótulo sempre vem na frente e isso é um peso para carregar.”
A maior recompensa, de toda forma, já veio. No dia 4 de maio, quase um mês depois de dar início ao processo burocrático, Cléo chegou para o curso noturno na faculdade vestindo calça legging preta, camisa florida e sapatilha de oncinha. Fumou um cigarro do lado de fora do prédio, o que sempre faz antes das aulas. Quando entrou na sala, ocupada predominantemente por mulheres, notou que a professora e as colegas já esperavam por ela, ansiosas e animadas. Cléo se sentou enquanto começava a chamada. O nome que escolheu para si estava lá, entre os primeiros da lista. Cléo sorriu, levantou o braço e respondeu: “Presente.”
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