Com 6,5 bilhões de dólares, a cidade ganhará 212 mil empregos. O prefeito já comprou uma nova máquina de calcular FOTO: ROGÉRIO REIS_2007
A força de 60 ivete sangalos
Além de financiar petrofolias, os bilhões de dólares da Petrobras podem tirar Itaboraí da letárgica produção de anões de jardim
Renato Lemos | Edição 5, Fevereiro 2007
Mais ou menos como os meteorologistas e as meninas que buscam namorados escondidos entre as linhas do horóscopo, Paulo Valentim presta atenção em sinais. Acredita em sinais quase tanto quanto crê em Santo Expedito, o santo das causas impossíveis. Os seus negócios – tanto quanto os de Expedito – às vezes dependem de indícios que poucos são capazes de enxergar. Mudanças climáticas repentinas, por exemplo, fazem os lucros escorrerem pelo ralo. Já feriados na sexta-feira, ou o lançamento de um novo desenho animado da Disney, causam efeito inverso. Desde que a Petrobras anunciou a construção de um complexo petroquímico em Itaboraí – a poucos quilômetros do seu local de trabalho -, Valentim tenta interpretar mais esse sinal. Um sinal portentoso e complicado como o aquecimento global. Valentim ainda não sabe dizer se o dinheiro do petróleo será bom ou ruim para os seus anões de jardim.
Paulo é dono de uma barraca que vende anões à beira da BR-101, na saída de Itaboraí. Além dos amiguinhos de Branca de Neve, que saem por R$ 25 o time completo, ele negocia panela, garça, réplicas do Cristo Redentor (de tamanhos que vão de 50cm a 1,50m), vaso, águia, golfinho, Shrek e Fiona de mãos dadas e, a última moda entre os bonequinhos de barro, pererecas assanhadas, com biquíni, óculos escuros e peitinhos pontudos. Andam vendendo bem, as pererecas. Têm potencial para desbancar Dunga, Atchim, Mestre, Feliz, Soneca, Dengoso e Zangado do posto de estrelas da companhia. Isso se a Petrobras deixar.
“Nuvem pros lados da Baía de Guanabara é sinal de chuva e venda fraca, nuvem na serra de Teresópolis é sol na Região dos Lagos e venda forte”, disse Valentim numa tarde nublada do mês passado, “mas ainda não sei que tipo de nuvem é a Petrobras: pode trazer progresso e também pode trazer violência”, especula Paulo Valentim, um moreno atarracado que esculpe as peças para a mulher, Déia, pintar.
A cerâmica é a principal atividade econômica da cidade de 220 mil habitantes, a cerca de 50 quilômetros do centro do Rio de Janeiro. Itaboraí fica no meio do caminho de quem vai do Rio para Cabo Frio ou Búzios. Até há dez anos, a BR-101 cortava a cidade ao meio, mas uma variante desviou o trânsito, levando as churrascarias de rodízio e as barracas de cerâmica para a periferia. Itaboraí virou um ponto fora da curva. A cidade hoje é mais notada pelos engarrafamentos na estrada Niterói-Manilha na volta dos fins de semana prolongados. Niterói, sabe-se, é Niterói. Manilha é Itaboraí.
A cidade já teve os ciclos da madeira, do açúcar, do café e da laranja. Nos últimos tempos, tenta-se criar avestruz. O bicho tem uma carne boa para as artérias, quase zero de colesterol. O preço é que é salgado, em torno de R$ 60 o quilo. É quase cinco vezes o preço do filé mignon. Não é mercadoria que se venda em qualquer açougue. Por isso, é improvável que se deslanche o ciclo do avestruz.
Os ciclos anteriores não deixaram marcas de riqueza na paisagem urbana. À exceção de uns poucos prédios de estilo colonial espalhados em torno da praça no centro histórico. Ali ficam a Prefeitura, a Câmara Municipal e o Teatro João Caetano (o ator e dramaturgo é um dos orgulhos locais, ao lado do romancista Joaquim Manuel de Macedo, autor de A moreninha). Em 2000, uma pesquisa do IPEA, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, apontou Itaboraí como o mais miserável entre todos os municípios do Rio de Janeiro.
De lá para cá mudou pouco, embora alguns políticos defendam que houve um progresso “relativo” em educação e saúde. Mudanças de verdade só a partir de abril agora, quando devem começar os trabalhos de terraplanagem para a construção da primeira das fábricas da Petrobras. Aí, por mais que os sinais do céu desmintam, os anõezinhos de jardim deverão adquirir um micropapel na economia de Itaboraí. Os números da estatal não admitem diminutivos.
Estão previstos 412 mil empregos diretos e indiretos, sendo 212 mil deles logo na primeira fase do projeto; 150 mil barris de petróleo processados por dia; 3,5 milhões de toneladas de derivados produzidos ao ano; 30 mil novos profissionais treinados na região. Em 2012, quando terminarem as obras de infra-estrutura, e o empreendimento estiver a pleno vapor, o Complexo Petroquímico terá investido 6,5 bilhões de dólares. Números que fizeram o prefeito Cosme Salles comprar uma nova calculadora para o seu gabinete. “A antiga não conseguia acomodar todos aqueles zeros”, justificou.
Eleito em segundo mandato pelo PT (na primeira eleição era do PDT), Cosme administra um orçamento anual de R$ 170 milhões, a maior parte dele de verbas dos governos federal e estadual. Tudo dinheiro carimbado, com destino certo. O que é da educação só pode ir para a educação, o que é da saúde só pode ir para a saúde. De recursos próprios, Itaboraí teve, ao longo de 2006, apenas 40 milhões para desembolsar. Após o início das operações do Complexo, a previsão é de que, só de taxas (IPTU, ICMS, royalties, etc.), a cidade vá arrecadar cerca de R$ 18 milhões por mês. O equivalente a 60 ivete sangalos.
Ivete sangalo é, no vocabulário dos especialistas do setor, o nome dado à moeda que circula entre os municípios beneficiados pelo dinheiro do petróleo. Um ivete sangalo está valendo, em média, R$ 300 mil, preço de um show da cantora baiana, incluindo o deslocamento em jatinho. A adoção da nova moeda é resultado da enorme quantidade de shows promovidos pelas prefeituras do norte fluminense que, sem saber mais onde aplicar o dinheiro dos royalties, investem em micaretas e carnavais fora de época. A moeda poderia se chamar chiclete com banana também. Ou calypso. Ou mesmo o apelo popular de babado novo. Ficou ivete.
A oportunidade de bancar petrofolias gerou uma verdadeira guerra de bastidores quando o Rio de Janeiro foi escolhido para sediar o projeto da Petrobras. São Gonçalo queria. Itaguaí queria. Campos, com o robusto aval da ex-governadora Rosinha Matheus, queria também. Ficou com Itaboraí. A facilidade da prefeitura em fazer acordos com o governo petista em Brasília teve maior peso na balança que Rosinha. “Em outros lugares que abrigaram a Petrobras, o que se viu foi a formação de uma cidade partida entre empregados e não-empregados da empresa, ou entre ricos e pobres”, avalia Janô Beserra de Araújo, o secretário municipal de Governo. “Temos de investir com critério, já que em pouco tempo estaremos na segunda colocação em arrecadação no estado.” Não é uma evolução qualquer. Hoje a cidade está em 65º lugar em arrecadação, entre 92 municípios. Pular para a vice-liderança, tendo só a capital à frente, é como sair da quarta divisão direto para a disputa da final na primeira.
Estar na primeira divisão tem seu preço. Itaboraí, no último censo, registrou a média de 87 homicídios por 100 mil habitantes. É alta. A região metropolitana do Rio teve sessenta homicídios a cada 100 mil, por ano. Com a chegada de novos moradores, o número tende a crescer. Pelo menos a julgar pelos panfletos colados nos postes da cidade: “Prepare-se: o Pólo Petroquímico espera por você. Faça curso de defesa pessoal com bastão tonfa”.
O bastão tonfa é uma arma criada na China e utilizada pelo exército israelense. Às vezes, aparece em filmes de gangues rodados em Hong Kong. É um instrumento pontiagudo, que exige perícia de quem o manuseia e machuca à beça quem está do outro lado. Os promotores do anúncio pretendem treinar seguranças para cuidar dos executivos. Estima-se que o salário de um segurança possa alcançar R$ 1.200 por mês. Um dinheiro bom. Principalmente considerando que o PIB per capita na cidade é de R$ 4,7 mil, ao ano. Já Macaé, município também bafejado pela Petrobras, tem PIB per capita de R$ 120 mil.
A riqueza súbita gera outros efeitos. Já há políticos dispostos a transferir o título eleitoral para lá. O ex-prefeito de Niterói, Jorge Roberto Silveira, segundo o noticiário local, seria um deles. A ex-senadora, e atual secretária de Ação Social do estado, Benedita da Silva, outra. Os dois juram que é tudo boato. “Itaboraí não é terra de ninguém, isso aqui tem dono”, diz, irritada, a camelô Valdete dos Santos, que garante tirar R$ 300 por mês vendendo chiclete e bala Juquinha. Ela não deixa de ter razão.
Jesus Cristo é o atual dono de Itaboraí. É o que está escrito em duas placas colocadas na entrada e na saída da Vinte e Dois de Maio, avenida que cruza a cidade: “Itaboraí: propriedade do Senhor Jesus Cristo”. De uma ponta a outra, são oito quilômetros de pista esburacada, quatorze quebra-molas, uma casa de shows, um único hotel (R$ 75 a diária de casal em quarto com ar- condicionado; R$ 60 com ventilador de teto), meia-dúzia de agências bancárias, três radares de velocidade e uma praça acanhada. A avenida retrata bem uma cidade que tem mais mulheres do que homens, mais barro do que asfalto, mais drogaria do que mercado, mais vans do que ônibus, mais funk do que samba. Nenhum cinema. Nos últimos tempos foram abertas mais igrejas evangélicas do que botequins. A fé ali não é fenômeno recente.
No dia 26 de janeiro de 1968, a imagem do Cristo Crucificado da igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Porto das Caixas, sangrou. O sangue escorreu das chagas da estátua, no joelho, tornozelo e pulso. O fenômeno foi atestado por um laboratório de análises que concluiu: “As pesquisas realizadas evidenciam tratar-se realmente de sangue, cuja origem e espécie fogem à nossa responsabilidade técnica”. Na década de 1970, a paróquia, num recanto agradável e afastado do centro de Itaboraí, recebia 200 ônibus de romeiros em dias comuns. O número dobrava nos fins de semana. Hoje, a igrejinha (erguida sobre as ruínas da original de 1595) só lota nos horários de bênção. Mas ainda atrai muita gente.
Quando o padre Luiz Antônio Mascarello, um gaúcho de 49 anos com forte sotaque italiano, anuncia a bênção, o fiéis erguem garrafas de água, retratos de filho doente e chaves de casa. Estão ali em busca de proteção. Ou de um milagre qualquer. Depois que a missa termina, vão em fila indiana até o altar para ver mais de perto a imagem que sangrou. É uma escultura de 1,30m numa cruz de 2m. Ninguém pode tocá-la: uma tela impede que o suor das mãos – e um ou outro espertinho que teimava em arrancar lascas para levar de lembrança – danifique a estátua de mais de 300 anos.
O comércio é diversificado em frente à igreja. Há fitinhas, réplicas da imagem do Cristo na cruz, garrafas para a água benta e medalhas de todos os tipos. Barracas religiosas se misturam a outras nem tanto. Há cachorro-quente, churrasquinho e cerveja. Há também as que vendem cosmético, brinquedo e CD pirata. No fim da fila, um ambulante vende calcinhas a R$ 2. Três calcinhas – sendo uma com a inscrição “Pode vir quente que eu estou fervendo” – saem por R$ 5.
“A Igreja não vê o sangue como um milagre, mas como um fenômeno”, explica o padre Mascarello. “É como se o Cristo, ao sangrar, quisesse mostrar o seu dedo.” Ele acha que a chegada da Petrobras pode dar um novo movimento ao lugar. Novamente o dedo do Senhor? O padre responde: “Vai vir muito dinheiro para cá. Mas acho que a cidade tem que se preparar melhor para receber isso. Não existe milagre nesse campo. Coisas essenciais como a rede de esgotos e escolas preparatórias têm que ser postas em prática desde já”. Mascarello tem participado de reuniões com representantes do governo, da empresa e das associações de moradores.
O local escolhido pela Petrobras para sediar seu empreendimento é vizinho à paróquia do Cristo Crucificado. A maior parte do complexo ficará na Fazenda Macacu, a quatro quilômetros da igreja. O atrativo do lugar são as ruínas de um convento franciscano datado de 1650. É uma construção impressionante. As paredes externas, como um enorme esqueleto, ainda permanecem de pé. O interior foi comido pelo tempo e o mato está em toda parte. A idéia da estatal é recuperar o imóvel e transformá-lo em um museu.
Em torno da fazenda, o projeto prevê a preservação da mata original, das árvores frutíferas e dos rios limpos que desembocam nos fundilhos de uma Baía de Guanabara que, pelo menos naquele pedaço, tem seus mangues intactos. Quem quiser se instalar ali terá que seguir as regras da empresa. Para isso a região, que até setembro era área rural, virou área estritamente industrial. Um acordo na Câmara Municipal deu um jeitinho no antigo Plano Diretor, abrindo espaço para novas fábricas. E o preço dos imóveis foi parar na lua.
Uma fazenda que seria vendida por R$ 2 milhões, há seis meses, vale hoje R$ 10 milhões. O fenômeno, no entanto, não alcançou o centro da cidade, onde um apartamento de sala e três quartos continua valendo os mesmos R$ 160 mil. “As pessoas de classe média vão preferir morar no Rio ou em Niterói e vir para o trabalho todos os dias, por isso esse tipo de imóvel não deve se valorizar muito. Ao contrário dos terrenos rurais”, avalia Floreci Coutinho, dono de uma imobiliária na cidade, que esfrega as mãos todas as vezes que pronuncia as sílabas da palavra pe-tro-bras. “Ser vizinho da Petrobras é como ter apartamento com vista para o mar”, diz ele.
O mar em Itaboraí, fora a nesga da Baía de Guanabara, é uma miragem. O lugar é quente, as planícies são vastas, o mormaço toma conta das coisas, as meninas usam pouca roupa, os meninos não largam os chinelos de dedo, as pererecas se enfiam em biquínis e os morros na região central não ultrapassam os 50m de altura. Desde que viu o negócio da laranja ser esmagado pela força dos produtores de São Paulo, a cidade virou definitivamente um ponto de passagem. Só. A chegada da Petrobras é vista como a chance de o município sair do compasso de espera e preencher as lacunas que o tempo morto lhe tem reservado.
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