Só para fumantes
Quantas palavras podem ser formadas com as oito letras de Marlboro? Mar, lobo, mal, lambo, bar, amor, bolor, rombo...
Julio Ramón Ribeyro | Edição 8, Maio 2007
Sem ter sido um fumante precoce, a partir de certo momento minha história se confunde com a história de meus cigarros. Do meu período de aprendizado não guardo nenhuma lembrança nítida, salvo o primeiro cigarro que fumei, aos catorze ou quinze anos. Era um cigarro de fumo claro, marca Derby, que um colega me ofereceu na saída do colégio. Acendi-o muito assustado, à sombra de uma amoreira, e depois de dar algumas tragadas me senti tão mal que passei a tarde toda vomitando, e jurei a mim mesmo não repetir a experiência.
Juramento inútil, como tantos outros que se seguiram, já que, anos mais tarde, quando ingressei na faculdade, metros antes de atravessar o velho saguão já tinha riscado o fósforo e acendido o cigarro. Eram então os Chesterfield, cujo aroma adocicado guardo até hoje na memória. Um maço durava dois ou três dias, e para poder comprá-lo tinha que me privar de outros caprichos, pois naquela época vivia de bicos. Quando não tinha cigarros nem dinheiro para comprá-los, roubava-os do meu irmão. Ao menor descuido, já havia deslizado a mão na jaqueta dele, dependurada numa cadeira, e surrupiado um cigarro. Digo isso sem nenhuma vergonha porque ele fazia o mesmo comigo.
Ao subir de preço, os Chesterfield volatilizaram-se de minhas mãos e foram substituídos pelos Incas, escuros e nacionais. Aquele tabaco não devia ser muito bom, mas era o mais barato que se encontrava no mercado. Em algumas vendas, eram oferecidos em metades ou quartos de maço, em canudinhos de papel de seda. Dava vergonha tirar um desses canudinhos do bolso. Eu sempre tinha uma caixinha vazia, onde punha os cigarros comprados picado. Mesmo assim, os Incas eram um luxo, comparados a outros cigarros que fumei naquele tempo, quando minha necessidade de tabaco aumentou sem que o mesmo acontecesse com os meus recursos: um tio militar me trazia do quartel cigarros da tropa, amarrados, como se fossem fogos de artifício, produto repugnante, onde era possível encontrar pedaços de cortiça, farpas, palhas e uns raros fiapos de tabaco. Mas não me custavam nada, e se deixavam fumar.
Quando entrei na faculdade de direito, consegui um trabalho como horista para um advogado, e assim pude dispor de meios necessários para assegurar meu consumo de tabaco. O pobre Inca foi para o inferno, condenei-o à morte feito um vil conquistador e me pus a serviço de uma potência estrangeira. A voga então era o Lucky. A linda caixinha branca com um círculo vermelho era a minha preferida. Milhares desses maços passaram por minhas mãos, e nas volutas de seus cigarros estão contidos meus últimos anos de direito e meus primeiros exercícios literários.
Os escritores, de modo geral, têm sido e são fumantes. Mas é curioso que não tenham escrito livros sobre o vício do cigarro, como têm escrito sobre o jogo, a droga, o álcool. Onde estão o Dostoievski, o De Quincey ou o Malcolm Lowry do cigarro? A primeira referência literária ao tabaco que conheço data do século XVII, e figura no Don Juan de Molière. A obra começa com a frase: “Diga o que disser Aristóteles e toda a filosofia, não existe nada comparável ao tabaco… quem vive sem tabaco não merece viver”. Ignoro se Molière era fumante – embora naquela época o tabaco fosse aspirado pelo nariz, ou mascado. Os grandes romancistas do século XIX – Balzac, Dickens, Tolstói – ignoraram por completo o problema do tabagismo, e nenhuma de suas centenas de personagens, pelo que lembro, tiveram qualquer coisa a ver com o cigarro. Para encontrar referências literárias a esse vício é preciso chegar ao século XX. Na Montanha mágica, Thomas Mann põe estas palavras nos lábios de seu herói, Hans Castorp: “Não entendo como se pode viver sem fumar… Quando acordo, fico contente em saber que poderei fumar durante o dia, e quando como tenho o mesmo pensamento. Sim, posso dizer que sim, que como para poder fumar… Um dia sem tabaco seria o cúmulo do aborrecimento, seria para mim um dia absolutamente vazio e insípido e se, pela manhã, tivesse que dizer hoje não posso fumar, acho que não teria coragem de me levantar”. A observação me parece muito penetrante e revela que Thomas Mann deve ter sido um fumante encarniçado, o que não o impediu de viver até os oitenta anos. Mas o único escritor que tratou do tema do cigarro extensamente, com uma agudeza e um humor insuperáveis, é Italo Svevo, que lhe dedica trinta páginas magistrais de seu romance A consciência de Zeno. Depois dele, não vejo nada digno de nota, a não ser uma frase no diário de André Gide, que também morreu octogenário e fumando: “Escrever é para mim um ato complementar ao prazer de fumar”.
Em Paris as coisas ficaram pretas. Aconteceu que um dia não pude mais comprar cigarros, e tive de cometer um ato vil: vender meus livros. Eram apenas 200, ou algo assim, mas eram os de que eu mais gostava, aqueles que eu arrastara por países, trens e pensões durante anos, e que tinham sobrevivido a todos os avatares da minha vida vagabunda. Eu tinha ido largando por toda parte casacos, guarda-chuvas, sapatos e relógios, mas daqueles livros nunca quis me desprender. Suas páginas anotadas, sublinhadas ou manchadas conservavam as marcas de meu aprendizado literário e, de certa forma, de meu itinerário espiritual.
Bastou começar. Um dia eu disse a mim mesmo: “Este Valéry talvez valha um pacote de americanos de fumo claro”, no que me enganei, já que o bouquiniste que o aceitou pagou-me apenas com o suficiente para comprar uns dois maços. Depois me desfiz dos meus Balzac, e cada um deles se transformava automaticamente no respectivo maço de Lucky. Meus poetas surrealistas me decepcionaram, pois não davam para mais do que um Players britânico. Um Ciro Alegría com dedicatória, em que depositei muitas esperanças, só foi aceito porque de quebra acrescentei a ele o teatro de Tchekhov. Flaubert, fui soltando aos pouquinhos, o que me permitiu fumar durante uma semana os primitivos Gauloises. Mas a pior humilhação foi quando me animei a vender o último que me restava: dez exemplares de meu livro Los gallinazos sin plumas, que um bom amigo teve a coragem de editar em Lima. Quando o livreiro viu a tosca edição em espanhol, de autor desconhecido, esteve a ponto de jogá-la na minha cabeça. “Aqui a gente não recebe isso. Vá até a Gilbert, onde compram livros por peso.” Foi o que fiz. Voltei para o hotel com um maço de Gitanes. Sentado na minha cama, acendi um cigarrinho e fiquei olhando para a minha estante vazia. Meus livros tinham literalmente virado fumaça.
Dias mais tarde, eu errava desesperadamente pelos cafés do Quartier Latin à procura de um cigarro. Tinha começado o verão, cruel verão. Todos os meus amigos ou conhecidos, por mais pobres que fossem, tinham abandonado a cidade, de carona, bicicleta ou como fosse, rumo ao campo ou às praias do sul. Paris parecia-me povoada de marcianos. Ao chegar a noite, com apenas um café no estômago e sem fumar, eu estava à beira da paranóia. Mais uma vez, recorri ao Boulevard Saint-Germain, começando pelo museu Cluny, em direção à Place de la Concorde. Em vez de inspecionar os terraços infestados de turistas, meus olhos tendiam a varrer o chão. Quem sabe! Talvez achasse uma nota jogada, uma moeda. Ou uma bituca. Vi algumas, mas estavam esmagadas ou molhadas, ou alguém passava naquele instante e um resto de dignidade me impedia de apanhá-las. Perto de meia-noite, eu estava na Place de la Concorde, ao pé do obelisco, cuja espigada figura não tinha para mim outro simbolismo que o de um gigantesco charuto. Hesitava entre prosseguir minha ronda até os grandes bulevares ou regressar derrotado ao meu hotelzinho da Rue de La Harpe. Aventurei-me pela Rue Royal, e vi sair do Maxim’s um cavalheiro elegante, acendendo um cigarro na calçada e despachando o porteiro à procura de um táxi. Sem vacilar, me aproximei dele e, no meu francês mais correto, disse: “O senhor faria a gentileza de me oferecer um cigarro?”. O cavalheiro deu um passo atrás, horrorizado, como se um monstro execrável e noturno irrompesse na ordem de sua existência, e, pedindo auxílio ao porteiro, esquivou-se e desapareceu no táxi que chegava.
Um fluxo de sangue subiu-me à cabeça, a tal ponto que temi desabar no chão. Como um sonâmbulo, voltei sobre meus passos, atravessei a praça, a ponte, cheguei até o calçadão à beira do Sena. Apoiado no parapeito, olhei para as águas escuras do rio e chorei copiosa, silenciosamente, de raiva, de vergonha, feito uma mulher qualquer.
Prossegui minha vida errante por diferentes cidades, albergues e ocupações, deixando em todo lugar espirais de fumaça e bitucas esmagadas, até que fui parar novamente em Paris, num apartamento de três cômodos, onde pude reunir uma coleção de sessenta cinzeiros. Não por mania de colecionador, mas para ter sempre à mão algo onde jogar bitucas e cinzas. Tinha adotado então o Marlboro, pois essa marca, que não era melhor nem pior do que as muitas que já tinha provado, sugeriu-me uma brincadeira gramatical que praticava assiduamente. Quantas palavras podiam ser formadas com as oito letras de Marlboro? Mar, lobo, mal, lambo, bar, lombo, amor, bolor, rombo, orar, bolo etc. Tornei-me invencível no jogo, que impus entre meus colegas da Agência France Presse, onde trabalhava na época. Essa agência, vou dizer de passagem, era não só uma fábrica de notícias, mas também o empório do tabagismo. Por meio de estatísticas, eu sabia que a profissão mais dada ao tabaco era a de jornalista. E pude verificá-lo mais tarde, já que as salas de redação, a qualquer hora do dia ou da noite, eram antros espaçosos onde dezenas de homens teclavam desesperadamente em suas máquinas de escrever, sugando sem descanso charutos, cachimbos e cigarros de todas as marcas, em meio a uma espessa bruma nicotínica, a ponto de eu me perguntar se estavam reunidos ali para redigir as notícias ou para fumar.
Foi precisamente na era do Marlboro e do meu trabalho na agência que me arrebentei. Não é meu propósito estabelecer uma relação de causa e efeito entre essa marca de cigarros e o que me aconteceu. A verdade é que uma tarde caí na minha cama e comecei a morrer, para grande alarme da minha mulher (pois enquanto isso, além de fumar, tinha me casado e tido um filho). Minha velha úlcera estomacal perfurou e uma hemorragia inestancável ia me evacuando do mundo pela via inferior. Uma ambulância de sirene estridente levou-me em estado de coma até o hospital, e graças a transfusões de sangue maciças pude voltar a mim. Isso é horrível e não exagero nos detalhes para não cair no patético. O dr. Dupont cicatrizou a minha úlcera em duas semanas de tratamento e me deu alta com a recomendação expressa – além dos remédios e do regime alimentar – de não mais fumar.
Não mais fumar! Inocente dr. Dupont. Ignorava com que tipo de paciente tinha topado. Dois meses mais tarde, incorporado mais uma vez ao meu trabalho na agência de notícias, entre centenas de raivosos fumantes, eu atirava no cesto todo dia um par de caixinhas de Marlboro vazias. M-a-r-l-b-o-r-o. Minha brincadeira gramatical enriqueceu: broma, rolar, rabo, ramo, borla etc. Isso pode ter graça, mas assim como encontrei novas palavras, tive novas hemorragias, e novas ambulâncias foram me levando ao hospital, entre apitos e sirenes, para me deixar exangue diante dos olhos horripilados do dr. Dupont. A ambulância se transformou, de certa forma, em meu meio normal de locomoção. O dr. Dupont me entregava em casa sempre recauchutado, depois de eu jurar que deixaria o cigarro, e ele ameaçando renunciar da próxima vez aos paliativos e me enfiar a faca sem contemplações. Ameaça que me deixava impávido, e a melhor prova disso é que na quarta ou quinta entrada no hospital me dei conta de que para fumar não era necessário que me dessem alta: bastava subornar uma enfermeirinha para que ela comprasse um maço. De Marlboro, naturalmente: orla, robalo, borra, rolo etc. Eu tinha escondido no guarda-roupa, dentro de um sapato. Duas ou três vezes ao dia, tirava um cigarro, fechava-me no banheiro, dava várias tragadas frenéticas e lançava os restos na privada.
A faca do dr. Dupont foi a minha espada de Dâmocles, com a diferença que comigo ela caiu. Isso aconteceu anos mais tarde, quando o Marlboro e seu estúpido jogo de palavras – bar, broa, lar, ralo, rabo etc. – tinha sido substituído pelo Dunhill, em seu lindo estojo bordô com friso dourado. Encontrava-me então em Cannes, seguindo um novo tratamento para me libertar do tabaco, após uma última temporada no hospital. O dr. Dupont tinha decretado distração, esportes e repouso, receita que minha mulher, transformada na mais zelosa guardiã de minha saúde e extirpadora do vício, se encarregou de aplicar e controlar escrupulosamente. Ocupava minhas jornadas no jogging matinal, banhos de sol e de mar, longa sesta, remo em bote de borracha e bicicleta crepuscular. Isso tudo alternado com refeições saudáveis e atividades espirituais, embora moderadas, como jogar paciência, ler romances de espionagem e ver novelas na televisão. Esse calendário não deixava nenhuma fissura por onde pudesse se infiltrar um cigarro, tanto mais que minha mulher não me abandonava nem de dia, nem de noite. Em um mês eu estava bronzeado, fornido, saudável e até bonito, eu diria. Mas no fundo, bem no fundo, sentia-me insatisfeito, desassossegado, por momentos incrivelmente triste. De nada servia perceber melhor a pureza do ar marinho, o aroma das flores e o sabor das comidas, se a própria existência tinha se tornado insípida.
Um dia não agüentei mais. Convenci minha mulher de que dali em diante iria para a praia uma hora antes que ela e meu filho, para aproveitar melhor os benefícios daquela vida saudável e recreativa. No trajeto comprei uma caixinha de Dunhill, e como era arriscado conservá-la comigo ou escondê-la em casa, procurei um canto afastado na praia, onde fiz um buraco, guardei-a, cobri com areia e pus em cima, à maneira de sinal, uma pedra ovalada. Então, de manhãzinha, saía de casa com passo de ginasta, sob o olhar espantado de minha mulher, que observava da sacada, orgulhosa de minha disposição atlética, sem suspeitar que o objetivo dessa corrida não era melhorar minha forma nem bater nenhum recorde, mas chegar ao buraco na areia o quanto antes. Desenterrava meu pacote e fumava uns dois cigarros, lenta, concentrada, angustiosamente até, porque sabia que seriam os únicos do dia. Esse estratagema, reconheço, pôde servir para meu prazer e para afagar minha engenhosidade, mas me rebaixara em minha própria consideração, uma vez que tinha consciência de estar violentando minhas promessas e traindo a confiança da minha mulher. Além disso, o meu plano não ficou isento de imprevistos, como naquela manhã em que cheguei ao meu reduto e não achei a pedra oval. O empregado que era encarregado de passar o rastelo na praia para limpá-la tinha sido substituído por outro, mais diligente, que não deixou uma só pedrinha na areia. Por mais que escavasse por todo lado, não achei minha caixinha. Decidi então comprar cinco maços e fazer cinco buracos, marcados com cinco sinais, abrindo cinco probabilidades para a minha paixão.
Aqui entramos na parte mais dramática do assunto, com a reaparição do dr. Dupont, suas sondas e sermões, e sobretudo sua faca premonitória. Mal ou bem, apesar de minhas doenças e problemas ligados com o abuso do tabaco, cheguei a conviver com eles e seguir em frente, como se diz, e de quebra seguir dando tragadas uma atrás da outra. Até que fui vítima de uma doença que nunca tinha conhecido: a comida ficava engasgada na garganta e eu não conseguia engolir coisa alguma. Isso se tornou tão freqüente que fui ver o dr. Dupont, mas dessa vez não de ambulância, só para variar. Dupont alarmou-se muitíssimo, esperou no hospital para me submeter a novos exames e, em poucos dias, sem explicações claras, eu rodava numa maca, rumo à sala de operações. Acordei sete horas depois, cortado feito uma vaca e costurado como uma boneca de pano. Tubos, sondas e agulhas saíam por todos os orifícios do meu corpo. Tinham tirado parte do duodeno, quase todo o estômago e um bom pedaço do esôfago.
Estava morrendo, ou melhor, “me extinguindo docemente”, como diriam as enfermeiras. A cada dia, perdia alguns gramas e ficava mais cansado em ter que me submeter à prova de pesagem. O chefe da clínica veio me ver e ordenou, como última medida, que eu fosse alimentado à força. Enfiaram-me uma sonda de borracha pelo nariz e, por meio dela, através de um êmbolo enorme, dispararam alimentos moídos no meu estômago. A sonda tinha que ser conservada de forma permanente, com sua ponta visível grudada na testa com um esparadrapo. Era tão terrível que depois de dois dias arranquei-a e joguei-a no chão. O chefe da clínica voltou para me passar um sermão, e como resisti a que tornassem a colocá-la, retirou-se, despeitado, dizendo antes de sair: “Não ligo a mínima. Mas daqui você não sai até não aumentar de peso. Toda a responsabilidade é sua”.
Não voltei a ver aquele imbecil, mas vi uns seres peludos, sujos e descamisados que foram surgindo por trás dos arbustos que eu enxergava da cama, através dos amplos janelões. Atrás desses arbustos, estavam construindo um novo pavilhão, e como já tinham erguido o primeiro andar, os operários e seus trabalhos eram visíveis do meu quarto. Pela pele citrina, deduzi que vinham de lugares quentes e pobres, de Andaluzia, do sul de Portugal, da África do Norte. O que primeiro me surpreendeu foi a celeridade e a variedade de seus movimentos. Apareciam e desapareciam subindo com tijolos, sacos de cimento, baldes d’água, ferramentas de carpintaria, num vaivém contínuo, que não conhecia tropeços nem improvisações. Imaginei o esforço que faziam e, por uma espécie de substituição mental, senti-me terrivelmente cansado, a ponto de baixar as persianas da janela. Mas ao meio-dia voltei a abri-las e comprovei que aqueles homens, que eu supunha curvados pelo cansaço, estavam sentados em círculo sobre o telhado, rindo, interpelando-se, comunicando-se com gestos largos. Era a pausa para o almoço, e eles engoliam com avidez os alimentos que tinham tirado de marmitas e sacolas de plástico, e bebiam garrafas de vinho no gargalo.
Aqueles homens eram aparentemente felizes. E eram ao menos por uma razão: porque encarnavam o mundo dos sãos, enquanto nós, o mundo dos doentes. Senti então algo que raras vezes tinha sentido, inveja, e pensei que de nada serviam quinze ou vinte anos de leitura e escrita, recluso como estava, entre moribundos, enquanto aqueles homens simples e iletrados estavam solidamente implantados na vida, da qual recebiam os prazeres mais elementares. Minha inveja redobrou quando, depois do almoço, fiquei vendo-os puxar maços, bocetas de fumo, papel de enrolar, e acenderem seus cigarros de sobremesa.
Essa visão me salvou. Foi a partir daquele momento que estalou em mim a chispa que mobilizou toda a minha inteligência e a minha vontade de sair da prostração e, conseqüentemente, da minha reclusão. Não desejava outra coisa senão me reintegrar à vida, por mais ordinária que fosse, sem outra ambição senão poder, como aqueles operários, comer, beber, fumar e desfrutar das recompensas de um homem comum e sadio. Para isso, era imperioso vencer a prova da balança, mas como fosse impossível comer naquele lugar e aquela comida, recorri a um estratagema. Cada manhã, antes da pesagem, enfiava nos bolsos do pijama algumas moedas de um franco. Progressivamente, fui acrescentando moedas de cinco francos, as maiores e mais pesadas, que trocava com o entregador de jornais. Consegui assim aumentar algumas centenas de gramas, o que ainda não era suficiente, nem probatório.
Pedi então à minha mulher que trouxesse de casa um jogo completo de talheres, alegando que com eles talvez pudesse me alimentar melhor do que com os toscos talheres da clínica. Eram os sólidos e caros talheres de prata que minha mulher tinha adquirido num momento de delírio, apesar da minha oposição, e que agora, desviados de sua finalidade, tornavam-se realmente preciosos. Como não podia escondê-los nos bolsos, fui colocando-os nas meias, a começar pela colherinha de café, até chegar na colher de sopa. Uma semana depois, tinha ganhado dois quilos, e mais ainda quando costurei os talheres de peixe nas cuecas. As enfermeiras estavam espantadas com a recuperação, que não combinava com minha aparência. Um galeno me fez uma visita, revisou meus boletins de pesagem, examinou-me, interrogou-me, e dias depois a direção emitiu a autorização de partida. Horas antes que minha mulher viesse me buscar num táxi, eu já estava de pé, vestido, olhando uma vez mais pela janela para os operários ágeis, lépidos, aéreos, e diria angelicais, que terminavam de erguer o segundo andar daquele novo pavilhão dos condenados.
Não preciso dizer que uma semana depois de sair da clínica eu podia me alimentar moderadamente, mas com apetite; após um mês, bebia um copo de vinho tinto nas refeições; e um pouco mais tarde, ao celebrar meu quadragésimo aniversário, acendi meu primeiro cigarro, com a aquiescência de minha mulher e o indulgente aplauso dos amigos.
Acendo outro cigarro e penso que já é hora de botar um ponto final neste relato, cuja escrita tem me custado tantas horas de trabalho, e tantos cigarros. Não é minha intenção tirar dele uma conclusão, nem uma moral. Que seja tomado como um elogio ou uma diatribe contra o tabaco, para mim dá no mesmo. Vejo com apreensão que só me resta um cigarro, de modo que digo adeus a meus leitores e vou em busca de mais um maço.
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