Não há metrô mais profundo que o de São Petersburgo. Foi construído sob o pântano onde jazem ossadas de servos e prisioneiros
O filho da mãe
É uma mulher destruída. Os cabelos louros embranquecidos e esfiapados mal cobrem a cabeça oval e o rosto macilento, com dois olhos azuis aguados, manchados de preto, e os lábios muito finos, quase inexistentes, borrados de vermelho, como se o batom fosse o resquício de sangue de uma fenda cosida. A mulher o encara
Bernardo Carvalho | Edição 29, Fevereiro 2009
Andrei sai do quartel a tempo de chegar à praça da estação às nove da noite. Não deve ser visto. As ruas ainda não estão completamente desertas, mas a essa hora, pelo menos, sua figura solitária não despertará tanta suspeita quanto se passasse por ali de madrugada. Terá que voltar antes do último metrô, pelo mesmo motivo, para não ser visto como exceção. Leva a mochila vazia nas costas, como se estivesse de licença, a caminho de casa. É um disfarce inútil. No quartel, não engana ninguém. Não volta para casa desde que entrou para o serviço militar, vai fazer um ano. Não poderia voltar nem se estivesse de licença, já que foi expulso de casa. A mãe e a irmã vivem onde termina o país, sete fusos horários à frente. Não recebe notícias das duas desde que chegou a São Petersburgo. Mesmo se tivesse permissão, não se atreveria a ligar, correndo o risco de ter que falar com o padrasto, no caso de ele atender. As cartas que escreve eventualmente, à noite, não passam de exercícios de comunicação para não perder a prática, já que não pode enviá-las. Vai rasgá-las de qualquer jeito. Não conversa com ninguém. Não fala nem mesmo com as paredes, um vício de infância ao qual costumava recorrer, quando estava só, em Vladivostok, mas que interrompeu, providencialmente, nem que tenha sido por um espírito igualmente inconsciente de sobrevivência, quando chegou ao quartel. No dia da partida, em Vladivostok, a mãe foi ter com ele na estação. Apareceu de surpresa, quando Andrei já não a esperava, e lhe entregou um farnel para a viagem; disse ao filho que ele tinha a vida pela frente e o beijou na testa. Nem a raiva que a frase lhe despertou naquele momento – e que, no decorrer dos dias, ao longo da linha de trem até São Petersburgo, foi aos poucos sendo substituída pela saudade – seria capaz de fazê-lo desejar que a mãe soubesse o que a vida se tornou, que vida é essa que ele leva agora. O soldado na guarita sabe muito bem aonde é que ele vai (é possível que também tenha sido obrigado a passar pela mesma humilhação quando recruta) e não perde a oportunidade de fazer uma gracinha. Andrei finge que não ouve. Os rumores correm à boca miúda entre os soldados e os oficiais do regimento. A asneira foi ter retrucado, a sério, que era o único filho varão de sua mãe e, portanto, arrimo de família, quando o capitão, sem deixar transparecer o tom de zombaria, ameaçou mandá-lo para a guerra como punição por um descuido qualquer. Não há nada pior para um recruta do que se recusar a partir para a guerra – ou levar a sério a zombaria dos superiores. O que no início pode não ter passado de provocação se transformou em represália. Desde então, nunca mais teve paz. Se tivesse ficado calado, e se resignado à bazófia do capitão, possivelmente não teria sido selecionado para uma missão como esta, forçado a arrecadar verbas para completar o salário dos superiores e sustentar o quartel falido. No ponto de ônibus, ele ajusta o capuz do moletom. Segue à risca as instruções do sargento Krássin. É melhor não ser interpelado por policiais – a cabeça raspada não deixa dúvida quanto ao recruta que ele é e que a esta hora devia estar na caserna, a menos que seja um desertor. Até que não seria mau se, graças a um contratempo qualquer, ele fosse preso e obrigado a revelar a verdade à polícia. Mas, nesse caso, só um milagre o salvaria quando voltasse para o quartel no dia seguinte.
As regras mudaram na última hora (houve denúncias recentemente). Não é que o sargento tenha optado pelo perigo por puro sadismo, que não lhe falta, porque assim estaria pondo a própria operação sob ameaça. A exigência partiu do próprio cliente, um oficial da reserva que, para não ter de passar mais uma vez pelo constrangimento de explicar aos policiais durante a ronda noturna o que fazia com o carro parado, à noite, nas imediações do quartel – e, não os satisfazendo com a explicação, ser obrigado a suborná-los para não ser indiciado por atentado ao pudor, por corrupção de militares ou por outra delinquência qualquer –, estabeleceu regras mais seguras para si. É o recruta quem terá de arcar com o ônus de chegar até o ponto de encontro e voltar para o quartel, com o dinheiro, durante o horário de funcionamento do transporte público. Andrei sabe o que o espera. É a primeira vez, mas não é difícil imaginar. Procura não imaginar. Como o ônibus não vem, decide tomar o metrô. É um pequeno ato de insubordinação. O que lhe resta de livre-arbítrio é também o que aumenta a sua margem de risco. Procura não pensar em nada para não sentir vertigem no alto da escada rolante que desce até a plataforma subterrânea. O movimento dos degraus subindo e descendo lhe revolve o estômago. Não há metrô mais profundo que o de São Petersburgo. Foi construído sob um enorme pântano onde jazem as ossadas dos servos e prisioneiros que ergueram as fundações da antiga capital. Enquanto ele desce aos subterrâneos, seu olhar cruza com o de um rapaz – barba por fazer e cabelos sebentos, presos num rabo-de-cavalo –, que sobe pela escada rolante ao lado, para a superfície e o frescor da noite de final de verão. Se existissem almas que pudessem abandonar os corpos em movimento, deixava a carcaça seguir só, inconsciente, e tomava o corpo de alguém na escada rolante ao lado, que sobe para a rua, assumindo uma nova vida, fora do quartel. Às vezes imagina que, no seu lugar, um homem de brios tivesse preferido levar outra surra e passar, com sorte, uma semana na enfermaria. Mas uma coisa não elimina a outra. Não há escolha no regimento. A única vantagem da surra seria perder a consciência, esse peso que vai se tornando insustentável – se não fosse preciso recobrá-la e voltar para o quartel, para novas surras e punições. A verdade é que Andrei pode apanhar até cair, mesmo depois de ser humilhado. Não adianta querer entender por que o simples fato de ser quem ele é, um mero recruta, o obriga a fazer o que não quer. É o seu lugar e a sua hora. Não é ele quem está subindo as escadas rolantes no lugar do rapaz de cabelos sebentos. Está descendo aos infernos. Procura não imaginar para evitar a vertigem e a náusea. Tenta se convencer de que está apenas cumprindo ordens. Para poder seguir em frente com alguma dose de irresponsabilidade.
A esta hora, não há filas diante das portas que dão acesso aos trens, alinhadas dos dois lados da plataforma, à imagem de elevadores no lobby de um prédio comercial. Quem trabalha já voltou para casa e o movimento está reduzido a tipos solitários e eventuais. Pelo menos até a chegada do próximo trem de Moscou ou dos balneários, quando famílias carregadas de malas, voltando das férias, serão despejadas nas principais estações das cidades, infiltrando-se pelas artérias do transporte urbano, como uma inundação. Por enquanto, a estação de metrô onde ele entra está vazia. Poderia ter escolhido qualquer uma das portas, mas vai se plantar justamente atrás do único passageiro além dele na plataforma – um velho com uma sacola de supermercado em cada mão, que espera diante da segunda porta à direita e que se afasta, resmungando algo incompreensível mas que obviamente tem a ver com o recruta, ao perceber a presença dele às suas costas. O velho procura outra porta diante da qual possa esperar sozinho. A escolha de Andrei traduz uma lógica simplória e infantil, como se na companhia do velho tivesse menos chances de ser desmascarado – e sua missão, de ser descoberta pela polícia –, como se, aos olhos dos outros (que ali não estão), pudesse estar acompanhando o avô de volta para casa. Se o velho não tivesse mudado de porta, era bem capaz que Andrei tivesse se oferecido para ajudá-lo com as sacolas de supermercado. O trem chega e as portas se abrem. No vagão em que ele entra, há apenas uma mulher com maquiagem carregada. Andrei senta, sem se dar conta, no banco diante do dela. É uma espécie de compulsão inconsciente. Evita ficar sozinho. Como se a proximidade dos outros pudesse desviar a atenção de si mesmo. É uma mulher destruída. Os cabelos louros embranquecidos e esfiapados mal cobrem a cabeça oval e o rosto macilento, com dois olhos azuis aguados, manchados de preto, e os lábios muito finos, quase inexistentes, borrados de vermelho, como se o batom fosse o resquício de sangue de uma fenda cosida. A mulher o encara. Andrei a imagina careca, com a cabeça raspada, como ele, ou morta, de olhos fechados e mãos gélidas. Arruma o capuz para cobrir melhor a cabeça, e se encolhe. A mulher não tira os olhos dele. Está a ponto de dizer alguma coisa. Mas, quando enfim parece que ela vai abrir a boca inexistente, aquele rasgo vermelho, antes de ela poder lhe fazer uma pergunta, ele se levanta num salto e caminha sem objetivo até a frente do vagão. Sua estação é a próxima, ainda faltam 500 metros até a parada, mas ele não quer ouvi-la. Procura não imaginar o que a mulher tem a lhe dizer – ou o que poderia lhe perguntar.
E é também sem imaginar que ele avança como um rato pelos arredores da praça Vosstaniya, depois de ganhar a rua, com o capuz enfiado na cabeça baixa, a esgueirar-se entre os que sobraram pelas calçadas desde o final do dia – uns poucos bêbados e putas –, na direção do ponto de ônibus onde deveria ter descido se não tivesse tomado o metrô, contrariando as instruções que recebera do sargento Krássin. Os policiais em volta da estação estão mais preocupados em extorquir turistas estrangeiros que chegam e partem nos trens para Moscou com supostas irregularidades nos vistos, e carteiras cheias de dólares, do que em perder seu tempo com russos marginais que rondam a área à noite, sem dinheiro nos bolsos, à procura de uma oportunidade qualquer, mas o sargento o exortou a manter-se alerta assim mesmo. Na guerra, não se deve baixar a guarda, nunca. Onde a polícia parece ter outros interesses, é preciso redobrar a atenção. Na verdade, ele só precisa chegar ao ponto de ônibus. Avança, depressa, pela sombra. E, de repente, absorto em seus próprios pensamentos velozes, sem ter consciência de que voltou a falar com as paredes dos prédios e do que acaba de lhes dizer – que já não pode ficar sozinho, não vai aguentar mais um minuto sozinho –, ele sente um choque no ombro direito e se dá conta de que esbarrou em alguém, ou em alguma coisa. O baque desperta um ódio repentino, arranca-o do estado letárgico em que se meteu para poder cumprir a missão sem maiores conflitos de consciência. Faz dele um homem beligerante. Pela primeira vez, levanta a cabeça e olha para trás, pronto para a batalha. O vulto, curiosamente, também pára, se vira e olha para ele. Por um instante, os dois se encaram. Andrei reconhece o próprio ódio e a revolta nos olhos escuros do rapaz moreno como ele. Mas também o medo e a impotência que o obrigam a estar ali contra a sua vontade, como na guerra, porque não pode estar em outro lugar, porque não pode sair do seu corpo e ser outra pessoa. Reconhece, como num espelho, a consciência dos animais encurralados diante do ataque, os olhos das presas na iminência do bote. Tudo dura apenas um segundo. Lembra-se do que veio fazer e esquece o desconhecido. Esquece o espírito belicoso. Prossegue. A julgar pelo rosto do rapaz, ele próprio deve estar com uma expressão possessa. Ao se aproximar do ponto de ônibus, nota um carro parado e sente um calafrio. Guardou de cabeça o número da placa que o sargento lhe dera. Não há equívoco. O carro está lá. E Andrei está atrasado. Aperta o passo, curva-se ao lado da janela do passageiro e bate no vidro. Não dá para ver o interior. O motorista abre a porta e ele entra. Na sombra, não consegue distinguir o homem de meia-idade, que dá a partida assim que Andrei fecha a porta. Está com um paletó de lã. Andrei tem a impressão de já ter ouvido sua voz no quartel.
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