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Deus é química
Adão, Eva, o Senhor, traficantes e policiais durante um tiroteio em Ipanema
Fernanda Torres | Edição 35, Agosto 2009
Rio de Janeiro. Forte tiroteio. O som das balas e dos estampidos cada vez mais próximo. Adão e Eva sentados numa mesa de frente para uma pequena tevê. Os dois assistem à cobertura do enterro do papa João Paulo II no Jornal Nacional. Canto Sacro. Rajadas de metralhadora. O barulho dos tiros aumenta.
Adão: Começou cedo, hoje.
Eva continua a ver tevê, está emocionada com o enterro do papa.
Tevê (em off): A beatificação de Karol Wojtyla já está sendo…
O tiroteio não dá trégua, Adão vai olhar.
Adão:Não é possível…
Estrondo de bomba. Adão sai da janela e vai até a porta, olha o olho mágico, volta para a janela.
Eva: Você está esperando alguém?
Adão:Eu… não… não.
Eva: Melhor fechar a janela.
Adão:Melhor blindar a janela. Tem um Caveirão vindo pra cá pela rua Teixeira de Melo. Ih! Não acredito. O velho do 3° andar atravessando a rua, está levando o cachorro pra passear… saiu correndo… se escondeu atrás do poste… Ih! Acertaram o pneu do Caveirão na esquina! Ó, o velho correu… ih…caiu, caralho, levantou… caiu.
Grita para fora.
Adão:Entra logo, ô velho via…!
Eva: Sai da janela. Vai acabar chamando uma bala descaralhada dessas pra cá.
Barulhão lá fora. Cachorro grunhindo. Gritos de homens, portas de carro batendo, comandos, tropas.
Adão:Desceram uns quarenta homens de escopeta pra trocar o pneu… vem ver. Tudo com colete à prova de bala. Fizeram uma paredinha pro velho atravessar. Minha Nossa Senhora, estão com muito medo. Tem um com o cachorro no colo, está fazendo o coitado de escudo! Vem ver!
Eva: O papa morreu!
Adão: O papa era contra o planejamento familiar, ó no que deu!
Eva:Não fala assim do papa!
Adão: Parece até que você vai à igreja…
Grande estrondo. Estilhaços quebram o vidro da janela. Um sapato voa para dentro. Adão volta correndo para olhar.
Adão: O velho explodiu!
Eva: Que velho?
Adão: O do cachorro!
Eva: Explodiu?!
Adão: Era um homem-bomba!
Eva: Não existe homem-bomba no Brasil!
Adão: Existe, sim. O velho do 3º andar.
Curiosa, Eva acaba abandonando o enterro do Santo Padre e vem olhar a janela de esguelha. Ficam os dois encostados na parede para não servirem de alvo.
Adão: Ali, ali, ó!
Eva: Minha Nossa Senhora…
Barulho de sirene, gritos, tiros.
Adão: Por que não liberam?! Ia acabar logo com essa violência…
Eva: Essa miséria toda sem ter como ganhar a vida!? Vai descer o morro e assaltar a gente.
Silêncio. Tiroteio forte.
Adão: Assim ele não vem.
Eva: Quem não vem?
Adão: O quê?
Eva: Como o quê? Quem não vem?
Adão: Ninguém, eu falei ninguém vem, nem vai… nesse sentido.
Eva: Você falou “ele” não vem. Quem não vem? Você ligou de novo pra Pizzaria?
Adão: Eu…
Eva: Com essa guerra, aí fora, você me liga de novo pra Pizzaria!
Adão: Mas eu liguei para a da Barra.
Eva: E qual é a diferença da da Barra para a do Leblon?
Adão: É mais longe! Ninguém conhece a gente.
Eva: Você ligou daqui?
Adão: Não! Eu liguei da rua, eu sei que você é paranóica com telefone.
Eva: Eu não sou paranóica com porra nenhuma. Você concordou, eu fui no dr. Pantoja, inventei que estava triste e ele me receitou um estimulante cerebral de última geração, chega amanhã, caramba! O dr. Pantoja me garantiu: é a felicidade em pílula. Não dava pra esperar? Você jurou que a gente não ia mais ficar ligando pra Pizzaria, você jurou.
Adão: Eu não gosto de remédio.
Eva: Mas qual é a diferença?
Adão: Parece doença, não gosto.
Eva: Que horas você ligou?
Adão: De tarde.
Eva: E falaram que ele vinha?
Adão: Falaram que ele vinha.
Eva: Então ele vem.
Eva se levanta para fechar a janela. Grita para fora.
Eva: Cadê o Exército que não aparece?
Fecha a janela estilhaçada, uma bala atravessa o que resta do vidro. Eva é atingida, sente uma pontada e, sem ar, vai atrás de Adão, que checava o olho mágico da porta.
Adão: Ninguém…
Eva cai dura na cadeira, emborcada na mesa, a caminho da porta.
Eva: Ai…
Adão: Que foi? O que é que houve?
Eva: Acho que me deram um tiro.
Adão: Que é isso na sua blusa… é sangue?
Eva: Que… sangue? Sangue! Ai! Ai! Meu Deus, é sangue. Me deram um tiro? Vê aí se me deram um tiro!
Adão: É… está parecendo…
Eva: Ai meu Deus Santíssimo, eu vou morrer? Vê aí se eu vou morrer!
Adão deita Eva sobre a mesa.
Adão: Calma!
Eva: Calma! Calma! Você me liga pra Pizzaria e depois vem dizer pra eu ter calma?
Adão: Mas o que é que tem eu ligar pra Pizzaria?
Eva: Você acha que pessoas como eu levam tiro por quê? Porque pessoas como você gostam de ligar pra Pizzaria!
A campainha toca. Os dois param. Adão, aflito, deixa Eva em cima da mesa e vai até a porta. A campainha insiste.
Eva: Não me deixa aqui, não me deixa aqui…
Olha no olho mágico. Volta o rosto grilado.
Adão: Não é ele.
A campainha toca de novo.
Eva: E quem é, então?
Adão: Nunca vi, não sei.
Eva: Não abre, não abre. Pode ser a polícia.
Adão: Tem quinhentos traficantes dando tiro aí embaixo, por que que a polícia ia bater aqui?
Eva: Será que a favela está invadindo o prédio?
Adão: Quem é?
Professor (em off): É da Pizzaria.
Eva: Não abre!
Professor (em off): O Outro não pôde vir.
Adão abre a porta. O Professor entra de capacete e mochila de motoboy. Carrega pizzas. Usa jaleco de cientista e um foulard.
Professor: Onde é que eu ponho?
Adão: Pode ser na mesa, por favor.
O Professor põe as pizzas na mesa.
Professor: Ela está ferida?
Adão: Tomou um tiro, não sei, não vi na hora. Acho melhor levar prum hospital.
Professor: Não tem como. Está arriscado de ela levar mais bala se sair aí fora.
O Professor entrega uma notinha fiscal para Adão.
Adão: Não mandaram mais nada pra mim?
Professor: Está chegando.
Adão: Ah…
Professor: Vocês não vão comer?
Eva: Eu não pedi pizza nenhuma.
Adão: Estou meio embrulhado.
Professor: Se importa se eu…? Estou na rua desde cedo.
Eva e Adão se olham, constrangidos.
Eva: Não.
Adão: Quer beber alguma coisa?
Professor: Coca-Cola, se tiver.
O Professor se senta à mesa, abre uma pizza, tira um pedaço e come. Adão traz a Coca-Cola. Eva, combalida, fica ao lado das pizzas.
Eva: É o outro que está vindo com a encomenda?
Professor: Não, é um professor amigo meu, o Outro não conseguiu passar. Fecharam o Dois Irmãos, o Rebouças e a Linha Vermelha, tem barricada até na entrada do aeroporto. A Pizzaria ligou, eu sou do serviço de emergência.
O tiroteio piora.
Adão: Quando eu me lembro de Ipanema…
Professor: Ipanema era ótima.
Adão paga o Professor pela pizza. Mais bombas estouram lá fora.
Eva: Será que vou morrer de bala perdida em Ipanema? Fiz tanta coisa boa em Ipanema. Perdi minha virgindade em Ipanema.
Adão: Você nunca me falou.
Eva: No capô de um Puma branco… Era muito apertado dentro…
Adão: Dentro de onde?
Eva: Do Puma. Aí nós saímos e eu deitei…
Adão: Não vamos começar com detalhes de dentro.
Eva: Depois, traguei meu primeiro cigarro…Tanta coisa, meu Deus, tanta coisa… Pra morrer na praia. Alguém tem um Free?
Adão: Não tem ninguém morrendo aqui.
O Professor dá um cigarro a Eva.
Professor: Enquanto vou tomando Coca-Cola vejo o mundo caminhando para a Terceira Guerra Mundial.
Eva: Estão sequestrando até em Florianópolis.
Sirenes de viaturas policiais, tiros ao fundo.
Professor: Não incomoda ter que ligar pra Pizzaria? Ficar sustentando essa guerra aí fora?
Eva: Eu não liguei, foi ele quem ligou.
Adão: Eu não me dou com bebida. Fazer o quê?
Professor: Eu fui pra Índia e depois entrei para o Narcóticos Anônimos.
Toca a campainha. Antes que Adão ou Eva se mexam, o Professor já abriu a porta.
Eva e Adão: Não abre!
Baba Da, de turbante e jaleco, entra com uma caixa preta grande, que põe sobre a mesa. Cumprimenta os presentes com um namastê. Repara em Eva em cima da mesa.
Professor e Adão: Ela tomou um tiro.
Com incrível destreza, Baba Da arranca a bala com os dentes, estanca o ferimento, faz uma atadura, rasgando a parte de baixo do seu jaleco. Dá um passe em Eva.
Eva: Arghhhhh…
Baba Da checa a sala, quer ver se está grampeada. Eva sente alguma melhora e se senta na mesa.
Professor: Baba Da e eu fomos professores da USP.
Adão:Eu nunca conheci um vapor professor da USP.
Professor: Doutorandos em psicologia, antes de Baba descobrir a Índia.
Baba Da: Eu interceptei o chamado da Pizzaria.
Professor: A verdade é que Baba habita o cume do Himalaia e se comunica conosco através de seu guia espiritual, o anjo Emmanuel.
Eva: Emmanuel? Não era o guia do Chico Xavier?
Adão: Não tem nada a ver com o Chico Xavier.
Eva: Ué, mas o guia do Chico Xavier chamava Emannuel.
Professor: Baba Da me fez entender que o que importa na vida “é estar preparado”. É o homem mais realizado que já conheci.
Eva: Mas vocês são o quê? Espíritas? Eu não estou entendendo.
O Professor abre uma caixa. Adão na expectativa.
Adão: Como assim, o que é que eles são? Cadê? Vamos acabar logo com isso.
O Professor tira da caixa um balde com terra, sementes, pazinha, luz artificial. Um Kit Amsterdã. Junto, um pezinho de Cannabis. Adão se desconcerta. Com cuidado, o Professor começa a plantar o pé no vaso.
Baba Da: Por que proíbem, se consomem; por que consomem, se proíbem?
Adão: Essa é a questão.
Eva: Porque faz mal pra saúde.
Professor: Viver faz mal pra saúde.
O Professor transplanta a muda para o kit.
Professor: O ser humano sempre experimentou substâncias com o objetivo de alterar a sua percepção do real.
Baba Da: Desde os tempos de Deméter, há 3 500 anos.
Professor: Nos anos 60, eu e Baba trabalhávamos em pesquisas com psicoativos na USP. Durante a Guerra Fria, o Pentágono nos descobriu. Criaram centros na Amazônia, no México, importaram pajés… Muitos colegas foram obrigados a promover testes durante as sessões de paulada que comiam soltas nos porões dos quartéis.
Baba Da: Queriam descobrir uma maneira de controlar a mente.
Professor: Nós não, jamais servimos aos interesses das forças ocultas, aplicávamos os alunos na busca da cordialidade e da fé.
Baba Da: Por isso fomos expulsos da universidade.
Professor: O pai milico de um estudante pediu a nossa cabeça porque o filho fugiu de casa depois de uma de nossas sessões e só apareceu, meses depois, numa comunidade gay de Mauá. Era um rapaz de Mogi-Guaçu que gostava de repetir: Jesus é lindo! Jesus é lindo!
Baba Da: Jesus sempre aparecia para ele.
Professor: Nós estávamos nos primórdios de pesquisas que anos mais tarde nos levariam aos antidepressivos. Mas confundiram tudo, fomos tachados de porra-louca. Saíram reprimindo, perseguindo; deu no que deu.
Bomba lá fora.
Professor: Fui preso em um teatro em São Paulo na semana em que decretaram o Ato Institucional nº 5. Em seguida, veio o exílio, os amigos perdidos… foi um horror.
Baba Da e o Professor acabam de plantar a Cannabis. O Professor acende a luz do Kit Amsterdã, oferece a Adão.
Professor: Regue duas vezes ao dia. Floresce daqui a três meses.
Adão: Como assim três meses? Só veio isso?
Baba Da: Só isso? A agricultura, meu filho, 5 mil anos de conhecimento!
Adão: Se a polícia me pega com o kit em casa pode me tirar o apartamento.
Eva: Joga isso fora.
Professor: Por que é que você acha que nós viemos aqui, hoje, debaixo de tiro?
Adão: Mas, meu Deus, não foi pra trazer a pizza e os 200 gramas…
Professor: E alternativas para essa encruzilhada que você está vivendo.
Baba Da: Vocês não percebem? O fato de o Professor se encontrar aqui, esta noite, é um acontecimento de dimensões míticas. O Professor morreu há quinze anos!
Professor: Eu sou o fantasma do seu pai.
Eva: Eu falei pra não abrir a porta.
Adão: Você me dispersou com a história do Puma…
Professor: Deixei este mundo aos 70 anos, doando meu corpo à ciência. Uma junta de cientistas e cirurgiões da Taubaté Cria Foundation assinou o óbito e serrou meu pescoço, separando a cabeça do resto do corpo. Minha cabeça foi guardada numa caixa coberta de gelo, submetida à temperatura de 273 graus abaixo de zero, e aí permaneceu por mais de dez anos à espera de um reimplante.
O Professor tira o lenço do pescoço e revela uma cicatriz.
Adão e Eva: Criogenia?
Baba Da e o Professor vêm para um microfone na frente do palco.
Professor: Há cinco anos, graças à conquista do genoma e às avançadas pesquisas da nanotecnologia, fui reconectado a este corpo por uma equipe de bioquímicos coreanos, e hoje estou aqui para narrar uma breve história do meu tempo e das conclusões que dele tirei.Música!
Música heavy-metal.
Eva: E eu pensei que ele fosse o entregador de pizza…
Adão: E eu pensei que ele fosse o vapor…
Um cogumelo atômico. Começam os flashbacks do Professor.
Professor: No dia em que se completavam meus 33 anos, minha mãe se matou com gás.
Professor: Enquanto carregava o corpo de minha mãe, me lembrei de uma frase que ela havia dito uma semana antes, pelo telefone, sobre alguém que se suicidara.
Eva: Morreu linda, fez com gás, meu filho.
Professor: Eu devia ter escutado melhor a minha mãe.
Mãe: No dia 9 de agosto de 1945 jogaram uma bomba atômica em Hiroshima. Depois você saiu de casa, meu filho, e seu pai voltou a beber. Eu passei a ter certeza de que a humanidade ia acabar num holocausto nuclear. Lia tudo sobre Nagasaki no jornal, a revista Manchete, a Coréia e a corrida armamentista. Já acordava esperando o fim do mundo.
Professor: Era agosto, o mês do desgosto, dez anos depois da bomba; minha mãe se matou de depressão, até então, um mal sem cura.
Som de um galo cacarejando e uma chuva forte no brejo.
Minas, julho de 1965.
Professor: Numa tarde em que havia chovido, numa fazenda colonial em Minas, me refazendo da morte de minha mãe, chamaram uma velha pra me benzer. Eu estava muito mal. Ela fez o sinal da cruz e perguntou…
Mineira: Ocê conhece chá de cogumelo, meu filho?
O Professor segue a velha pelo pasto.
Mineira: Tem que ver o estrume do zebu, só serve do zebu. Depois que chove e abre o sol, ocê vai atrás do cocô do bicho que é lá que o cujo floresce, mas, também, morre logo, tem que sair no pasto assim que clareia a luz. Você vai falar com Deus, meu filho, ele vai te aconselhar.
Mineira recolhe cogumelos de cocôs de vaca espalhados pelo palco.
Mineira: Ocê sabe que os bicho são mais parente dos fungo do que das planta? É ciência, meu filho, é ciência.
Mineira oferece um para o Professor.
Professor: Não tem perigo de comer?
Mineira engole um punhado grande de cogumelos. Cai dura.
Professor: Eu comi.
Professor cai duro. Efeito ecstasyante no palco.
Deus (em off): Foi muito bom você ter me visto. Se você não me visse, eu nem sei o que ia ser de você.
Professor: Se minha mãe tivesse experimentado aquilo, talvez ela não…
A campainha toca e Baba Da abre a porta. Enfermeira Alemã entra com um vidrão cheio de saquinhos de mel e um receituário médico.
Professor: Uma grande empresa farmacêutica da Europa se interessou pela nossa pesquisa.
Enfermeira Alemã: Cultivamos um pedaço de terra com flores silvestres e regamos com uma mistura concentrada do cogumelo de zebu. O jardim cresceu frondoso. Cercamos uma área grande de forma que as abelhas só se alimentassem do nosso jardim. Recolhemos um mel avermelhado e eu, antes de pôr na geladeira, passei uma colher grande do mel numa torrada integral e comi. Descobriu-se, depois, que as abelhas potencializam os efeitos do ácido ao produzirem o mel. Fiquei parada, em pé, por oito, nove horas seguidas, não sei precisar. Quando me encontraram no laboratório, ainda com um pedaço de torrada na mão e a porta da geladeira entreaberta, eu não falava nem me mexia. Fiquei assim por mais dois dias. Por dentro, o drama universal, rolando, tombando, caindo, correntes de energia, piscando, zunindo, gemendo. Vibrando, bzzzzzzzzz… ondas de voz, de luz… Vocês têm que experimentar isso.
Professor: Abandonamos as amarras acadêmicas para dividir nosso conhecimento com quem estivesse interessado. Padres, pais de família, o pessoal da mpb, os garotos da une, para toda a orla de Ipanema, poetas, atores, professores, cineastas, músicos.
Baba Da: Fosse o que Deus quisesse!
[Música:]This is the glory of the age of Aquarius/ The age of Aquarius, Aquarius, Aquarius!
Todos distribuem flores para a platéia de Hair. Enfermeira Alemã passa com o vidrão cheio de saquinhos de mel e se junta aos outros na platéia.
Enfermeira Alemã: Estamos distribuindo drogas a voluntários a título de pesquisa. O senhor gostaria de tomar?
Professor: O projeto tem a aprovação do comitê ético da universidade.
Baba Da: Cogumelo de zebu, interessado?
Professor: Nós fornecemos, o senhor toma e depois conta o que aconteceu. Gostaríamos de comparar com as outras drogas que o senhor já usa.
Enfermeira Alemã:Fuma? Cheira? Bebe? Cogumelo de zebu é algo novo para você?
Baba Da: É uma triptamina, da família da melanina e da serotonina… Se dá para arrumar algum?
Enfermeira Alemã: Já teve angina? Tonturas? Desmaios? Hepatite? Artrose? Pressão alta? Sofre de fobias? Já se sentiu deprimido a ponto de não conseguir sair de casa?
Professor: Pode ir ali, fazer xixi nesse potinho…
O espectador com um potinho é retirado da platéia.
Enfermeira Alemã: Três é o que eu aconselho a tomar. Sete é uma dose forte, dez já me causa paralisia.
Professor: Dez é muito.
Baba Da: Essa senhora aqui quer treze.
Abrem as balinhas, tomam. Música do Led Zeppelin. Luzes e cores como naquelas festinhas com luz estroboscópica. Os três se encaminham para o palco, a coisa ganha um certo ar de missa pagã. Dançam, enlouquecem. Batidas na porta.
Policial (em off): Polícia!
Adão e Eva, desesperados, arrumam o Kit Amsterdã de forma que o pé de Cannabis pareça um abajur. Professor e Baba Da se escondem debaixo do abajur. Guardam o flagra debaixo do tapete. Um policial entra no palco e dá uma dura em Eva e Adão.
Policial: Foi daqui que ligaram para a Pizzaria?
Adão: Não.
O Policial vê a pizza sobre a mesa.
Adão: Quer dizer, foi.
Eva: Ele que ligou.
Policial: E como é que o senhor me explica que mora em Ipanema e encomenda pizza na Barra da Tijuca?
Adão: Eu gosto muito dessa pizza.
Policial: Fria?
Adão: É… fria… ela fica muito boa.
Policial: E foi só pizza que vocês pediram?
Eva: Ele que pediu.
Adão: Foi, foi só pizza.
Policial: Mais nada?
Adão: Não. Nada, não.
Policial: Porque meus colegas deram uma batida, lá, nessa Pizzaria da Barra e o endereço daqui estava nessa listinha.
O Policial tira uma nota da Pizzaria do bolso.
Policial: “Duas pizzas e 200 gramas.” Duzentos gramas de quê?
Adão: Deve ser de queijo ralado.
O Policial continua observando, vai até Eva.
Policial: Isso aí no seu ombro: machucou?
Eva: É, eu caí.
Policial: Isso não está com cara de queda.
Adão: Ela levou um tiro, seu Policial.
Policial: De quem?
Eva: De ninguém, eu fui olhar a janela.
Policial: Essa história está muito mal contada. Vocês conhecem o velho do 3º andar?
Eva: Eu não gosto de vizinho.
Adão: A gente é contra cachorro no prédio.
Policial: O desgraçado explodiu o cachorro e levou um bando dos meus colegas com ele, parece que era evangélico… Evangélico, você acredita? Ele tinha algum amigo muçulmano?
Adão e Eva: Ah… não sei informar, difícil sair dizendo…
O Policial encara a platéia. O espectador que havia sido retirado para fazer xixi no potinho volta para sentar. O Policial vai até o espectador.
Policial: O senhor quer me contar alguma coisa?… Tem certeza? O senhor bebeu? Esse cara está estranho…
O tiroteio piora lá fora, desvia a atenção do Policial, ele vai até a janela, se coloca em posição de tiro e manda bala. Revidam lá de fora. Algumas balas atingem a sala. Adão e Eva se abaixam.
Eva: Entendeu, seu Policial, como é que eu levei tiro?
Policial: Apaga a luz! Apaga essa merda dessa luz.
Continua a atirar. Eva e Adão se arrastam e apagam as luzes. Só sobra o abajur, com a muda de Cannabis, aceso, bem perto do Policial. Ele vai apagar.
Policial: O quê que é isso?
O Policial avança para os dois com o pé de Cannabis na mão.
Policial: O que é que esse pé de fumo está fazendo aqui?
Adão: Seu Policial, essa guerra aí fora. Estou fazendo mal a quem?
Policial: Não tem vergonha na cara, não? Me defender um vício! Você acha que os meus colegas estão levando tiro, aí fora, pra você vir plantar o seu pé de fumo aqui dentro? É pra isso, ô playboy? É pra isso?!
O Policial parte agressivamente para cima de Adão.
Eva: Não seria melhor resolver isso de outra maneira?
Policial: Que maneira?
Eva: Uma outra maneira…
Policial: Quanto dinheiro vocês estão recebendo para essa pouca vergonha?
Adão: Nada. Juro, nem um centavo.
Policial: Então para que se meter num negócio desses?
Adão: Para abrir a cabeça com relação à natureza humana.
Policial: Estou vendo que vocês são usuários…
Adão e Eva: É, usuários, nós somos usuários.
Policial: O que é que vocês querem? Eu fiz uma apreensão grande hoje, posso ver o que sobrou lá na delegacia. Então… estamos conversados? Vocês falam comigo, eu vejo o que é que eu posso fazer e depois a gente acerta, fica bom assim?
Deixa uma presa para os dois.
Adão e Eva:… Fica, fica tudo bem…
Policial: Vamos fazer as coisas dentro da lei, não é verdade?
Adão: Sem dúvida, é bem melhor dentro da lei…
Policial: Que foi?
Eva: Nada… é que eu fiquei… fiquei meio chocada.
Adão:Pelo amor de Deus…
Eva: Não, sinceramente, o senhor é da polícia.
Policial: Você sabe quanto é que eu recebo por mês?
Adão: Pois é…
Eva: Mesmo assim não justifica.
Policial: Quer dizer que a madame acha que o jeito de eu viver vai de encontro com os princípios dela?
Adão: Não, não é isso que ela quis dizer.
Eva: É isso sim, é isso que eu quis dizer.
Policial: A madame quer ver um policial honesto?
Eva: Gostaria muito.
Adão:É claro que ela não gostaria.
Eva: Gostaria sim.
Policial: Então, vamos pra delegacia.
Eva: Não tem nada a ver o que o senhor está dizendo.
Policial: Como não tem, minha filha? Vamos passar a noite no xadrez. Acho bom ir juntando dinheiro pra conversar com o delegado.
Eva: Mas eu não liguei pra Pizzaria.
Adão: Eu liguei, eu estou arrependido, seu guarda.
Policial: Está todo mundo arrependido aqui, meu filho.
O Policial leva os dois algemados. Barulho de porta de camburão batendo, na rua.
Fernanda Torres, atriz e escritora, é autora do romance Fim, da Companhia das Letras
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